Número 433
Rubem Penz
Fez-se a luz, Adão, costela, Eva, paraíso etc. Todo mundo conhece o percurso do Homem, ou o tanto de água que rolou debaixo da parreira até dar no que deu. Mas sempre há nuances a serem exploradas por quem se dedica a investigar o insuspeitado. E não custa nada remontar a cena que alterou o rumo das coisas para, com isso, tirar lições. Do princípio:
Antes de tudo, era o caos. Algo como sexta-feira, dezenove horas, chovendo cântaros, dois acidentes envolvendo caminhões, véspera de feriadão. Saldo bancário no vermelho, ponteiro da temperatura do carro no vermelho, semáforo piscando no vermelho, um descontrolado atolando o dedo na buzina. Num momento parecido com esse, o Criador, em sua elevada benevolência, ao som de um coral de anjos e inspirado pelo mais puro sentimento, resolveu pôr ordem no galinheiro. E fez-se a luz; também surgiu a Natureza com seus vales e montanhas; oceanos, lagos, nuvens e areia brancas. Tudo pronto para o eleito: o Homem.
Logo após o sopro de vida na argila inerte, nasceu Adão, aquele que era feliz e não sabia. Vivia no que mais tarde seria convencionado chamar de CNTP (condições normais de temperatura e pressão). Clima goiano: amanhecia numa temperatura amena, esquentava um pouco no bom sol, chovia confortavelmente e, à noite, era sempre recomendável se cobrir. Sem umidade ou rinite, sem ácaros, sem roupa que nunca seca no varal ou um gole da maldita para enfrentar o vento Minuano.
Impossível ficar melhor? Eis que de sua costela nasce Eva. Ah, a mulher! Evolução da espécie, arte final para seu rascunho, companheira criada por Deus para estar sempre ao seu lado, mas que, por excelência de projeto, estaria sempre à sua frente. Movimentos de uma felina, charme de uma felina, unhas de uma felina, humor de uma felina... E memória de elefante. Adão já não mais precisava se preocupar em fazer agrados ao Criador – bastava atender Eva e seu dia estaria tomado, suas noites garantidas, o mundo em completo sentido. Deus poderia tirar suas férias em paz, afinal.
Pois, Adão e Eva, insatisfeitos com aquilo que parecia perfeito, entediados com tanta harmonia e fartos de beleza, ambicionaram o fruto proibido. E logo ali, adiante da cerca, estava a macieira do vizinho. Nela, auspiciosa, a suculenta maçã. A mulher disse vá até lá e apanhe uma para mim. O homem ponderou que poderia dar galho. Ela fez beicinho, mas ele parecia irredutível. Então, cochichando ao ouvido, Eva prometeu alguma coisa que Deus não deveria ouvir. E Adão saltou por sobre a cerca feito cão que ouviu a sineta de Pavlov. Só que o vizinho viu. E sua mulher, uma verdadeira cobra, indignada, fez queixa para o síndico do Condomínio Horizontal Paradiso.
Barraco! De um lado, Adão defendia-se com a tese de que seria um grande pecado apodrecerem as maçãs no pé sem que ninguém apanhasse. De outro, a cobra rebatendo que o casal não merecia habitar o Paradiso – deveriam ser expulsos. Eva subiu nas tamancas e disse que vizinhos intolerantes do tipo que prega regras apenas para os outros transformaram o Paradiso em um inferno. Blasfêmia: tudo o que o síndico esperava para tomar o partido da cobra. E assim, em breve resumo, fica explicado porque deu no que deu.
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