Número 465
Rubem Penz
Era uma casa amarela, dois pisos, nenhuma identificação na fachada. Bem poderia ser uma residência particular, uma clínica, um escritório, um prostíbulo, um cassino clandestino. Mas não era nada disso. Ali funcionava um clube. Um clube secreto. Toda noite o portão de ferro art deco era destravado para entrarem, uma a uma, pessoas que falavam uma senha ao interfone.
A senha tinha uma particularidade: mudava todos os dias. Como era passada adiante, ninguém sabia ao certo. Certo, mesmo, é que o sistema funcionava, pois jamais entrara alguém que não deveria estar ali. Quando o sol desenhava o contorno do horizonte e os garçons começavam a empilhar as cadeiras sobre as mesas, olhos e ouvidos se dirigiam ao Adroaldo, o barman, responsável pela escolha da palavra chave:
– Adroaldo, qual é a senha?
– Albatroz.
Clóvis, de todos o mais detalhista, mantinha uma lista de todas as senhas desde a abertura do clube. Sobre ele pesava a obrigação de jamais deixar uma palavra se repetir. Mas Adroaldo era de uma originalidade infalível:
– Adroaldo, qual é a senha?
– Virabrequim.
Na ocasião em que Clóvis fora hospitalizado, Heleno tomou para si a incumbência e, dia após dia, anotava a senha inédita: cumeeira, miragem, fuzil, rubi, endométrio, joio, orvalho, quibe, cedilha...
Um mistério, a habilidade de Adroaldo: senhas sempre fáceis de guardar e difíceis de serem adivinhadas. Alguns malandros, percebendo a dinâmica, até tentavam: alface, cizânia, braile, redondilha. Ninguém jamais acertou. Na madrugada, vinha Adroaldo: Pipa. Mas de vinho ou papagaio? – alguém indaga. O barman nunca respondia. O caso dele era com a senha, não com significados ou sinônimos.
Até o dia em que Adroaldo não apareceu no trabalho. Falecera. Mal súbito. Deixara como último legado a irônica e macabra senha da noite: miocárdio. No clube, muitos brindes em sua memória. Saudade, melancolia. E, na promessa de manhã, quando as cadeiras começaram a subir sobre as mesas, ninguém sabia para quem dirigir o olhar, de quem ouvir a próxima senha.
Miguelão, que atendera no bar, tomou a tarefa para si:
– Aquarela!
Alguns segundos depois, Heleno vetou: aquarela fora a senha em 17 de outubro de 1975. Felpa, disse Miguelão. Senha de 1982, em 3 de agosto. Sabonete! Essa apareceu em 1979, 2 de abril. Ilíaco? 7 de fevereiro de 1969. Pluma? Recente: 2002, 11 de março. Em mais de quarenta anos, Adroaldo não repetira uma só senha. Naquela amanhecer, Miguelão tentou vinte e três delas sem êxito.
– Senha! – gritou Fabinho, desesperado.
Finalmente. Jamais o termo senha havia servido de senha. Porém, na noite seguinte, sete estranhos acertaram a palavra, algo que a obviedade faria prever, mas o desespero deixou que acontecesse.
Heleno chegou a propor a troca de sistema, quem sabe com controle biométrico. Mas o clube havia se tornado folclórico justamente pela inexpugnável sequência de palavras chave. Além do mais, Clóvis, de sua clínica de saúde, mandara um torpedo: se mudassem o sistema, ele fugiria apenas para incendiar a casa.
Faz três meses que a casa amarela está com suas janelas e seu portão de ferro fechados. O mato cresce no pequeno jardim. Dentro, móveis estão brancos de pó. O piano desafina. Jaz uma história. Também sete corpos ocultos pelo tabuado.
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2 comentários:
Bom dia Mestre!
Muito bom! Fiquei na espera de uma nova senha... acho que até vou sonhar com ela!...
Beijos
Olha, Cris, diz que toda noite pessoas arriscam uma senha lá na frente da casa. Porém, já pensou se o portão se abre?
Beijos, Rubem
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