15.6.07

Número 219

 
 

O RELÓGIO DE OURO

 

Tenho hoje no pulso o relógio que era do meu falecido pai. Ocorreu o mesmo com ele, primogênito em sua casa. Só meio diferente: coube-lhe o relógio do meu avô com vinte e poucos anos. Dessa passagem, sei apenas o que me foi contado, pois na época eu era vaga especulação biológica. Agora, entendo que, quando meu avô faleceu, o pai morreu um pouco com ele também. Sei disso por essa pequena morte que levo no braço. E sei que ele, por ter sido órfão bem mais jovem, morreu muito mais do que eu neste momento da vida.

 

O relógio do meu avô era de ouro. Como disse, mudou-se para o pulso do filho muito adiantado. Não estava nem perto de ser a hora, e o relógio já marcava-lhe o destino. E se a hora estava errada, o destino sofreu muitas alterações. Esse tempo que não existiu matou grande parte dos sonhos do meu pai. Precisou de muitos, mas muitos anos para ele acertar os ponteiros de suas próprias metas. Chegou a temer faltar-lhe as horas para este intento. Me consola ser a testemunha de que partiu em dia com a vida. Só quisera ter sido um pouco mais tarde.

 

O nobre metal que emoldurava o relógio do meu avô foi um fardo para aquele braço jovem. Tanto que o pai acabou perdendo-o numa caçada – história que ouvi dezenas de vezes, dita com um ruminante e inconformado sofrimento. No fundo, é provável que o relógio nunca tenha chegado a lhe ser justo no pulso. E afundou, justamente, em um banhado, como quem busca a sepultura. Mas quem disse que ele deixou o pulso do pai? Não: mesmo ausente, pesou-lhe para sempre o infortúnio.

 

O relógio que me coube não é o de ouro. Muito melhor não ser aquele. Rogo para que não seja! Espero ter recebido o relógio certo, bem no tempo. A relíquia cujo maior valor seja estimativo, que mesmo em que pese na saudade, seja leve na lembrança. Um relógio que me informe as horas, os minutos e os segundos como quem fala de outros tempos. Que me oriente do mesmo modo como meu pai fazia, para que minhas futuras mortes sejam mais suaves, chegadas na hora marcada.

 

Agradeço à mãe por estar com esse relógio no pulso, agora. Influenciou em sua decisão o fato de eu mesmo tê-lo presenteado ao pai, cinco ou seis Natais atrás. E não lhe parecia justo o relógio parar na gaveta. A mãe sempre conta, emocionada, que o pai pedia muito pelo relógio quando estava na UTI – um dos tantos carinhos proibidos no hospital. Lá, só o relógio de ouro se fazia presente, assombrava-lhe o pulso, marcava a hora da morte. Aquele mesmo que nunca deveria ter sido seu tão cedo. E que o pai findou por devolver para o meu avô, quero crer, em justa hora.

2 comentários:

Anônimo disse...

Adorei essa, Rubem !
Achei emocionante o modo como a vida e a literatura se entrelaçam.

Abraço
Adriana Germann

Rubem Penz disse...

Muito grato, Adriana!
Abração!
Rubem

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