Pestana tirou o boné e coçou a cabeça. Seu olhar acompanhava as formigas levarem pedaços de flor em fila indiana para fora do avarandado. Ponderava aquela proposta – nem sabia nadar tão bem. Quer dizer, saber sabia, disse, mas não o bastante para salvamentos. Além do mais, fazia tempo que não entrava fundo no mar. E, na última vez, em Tramandaí, fora da temporada, passou um aperto danado quando precisou enfrentar um repuxo tipo bandeira vermelha.
– Olha aí: escondendo o jogo! – retrucou Paulo, ao seu lado. – Você até sabe qual a bandeira precisava colocar naquele dia! Fica tranqüilo... Eu vou lá, faço uma surpresa para a Jurema, nem anoitece e estou de volta. Enquanto isso, você fica em meu lugar ali na guarita, cheio de pose e sendo chamado de salva pela meninada.
– Bom, e se alguém pedir socorro?
Paulo fez a volta para ficar diante do amigo, segurou-lhe os ombros com as duas mãos. Sacudiu-o até seu olhar subir à tona.
– Aí o Jair tira o sujeito da água, ora. Você fica com a corda, só dando linha para o cara, que é um peixe. E então? Conto contigo?
Despediram-se na Interpraias: Paulo, paisano, apanhou a condução para Arroio Teixeira. Pestana, de uniforme, seguiu caminhando até a beira do mar. Bóia e corda. Bandeira debaixo do braço. Ele e o Jair.
Uma das crianças que sempre rondam a guarita dos salva-vidas perguntou as horas. Passa das quatro e meia. Foi o salva Pestana quem respondeu, olhando para o Jair e dando razão ao amigo Paulo. Certo ele de aproveitar o dia com a fulana – escapou-lhe o nome. Aquilo era uma rotina meio morta, mesmo. Não acontecia nada. Antes de receber a resposta, uma gritaria e um corre-corre fizeram com que os salva-vidas saíssem em disparada. Jair com a bóia. Pestana logo atrás. Mas eles só molharam até o joelho: o mar tinha devolvido alguém que se afogara bem longe dali, pela experiência de Jair.
– Isso deve ter acontecido de manhã. Fica aqui e eu vou achar o carro da Brigada. Eles acionam o DML no rádio.
– Mas se perguntarem alguma coisa, o que eu digo? – confidenciou Pestana.
– Embroma. Quando eu chegar, sai de fininho que eu digo que comigo estava o Paulo. Uma mão lava a outra, não é?
O homem se investiu de autoridade. Sem muita conversa, tratou de manter os curiosos a uma distância regular do corpo. Era uma questão de ocupar-se e nem pensar no risco de dar algum problema. No momento em que Jair voltou, o improvisado substituto saiu enrolando a corda; foi até a guarita, recolheu o restante do material e abandonou a praia.
Insone, Pestana caiu cedo da cama. Procurou a notícia no jornal:
A empregada doméstica Jurema Santos Silva, 23 anos, natural de Canoas, é o décimo segundo caso de afogamento no Litoral Norte gaúcho. Ontem, seu corpo já sem vida foi retirado do mar pelos salva-vidas Jair Melo e Paulo Castro entre Capão Novo e Praia do Barco, cerca de nove quilômetros ao sul de Arroio Teixeira, balneário onde a moça trabalhava. Segundo testemunhas da investigação, ela foi vista pela última vez cedo da manhã, enquanto deixava a residência acompanhada de um homem não identificado. Em seu depoimento, Jair creditou os hematomas no pescoço da vítima a uma provável tentativa de salvamento. Para ele, "Dentro d'água, qualquer bem intencionado pode causar a morte de alguém. Seguro está o banhista em nossas mãos".
2 comentários:
Impressionante como o crime perfeito e' facil de ser cometido no Brasil. Outro dia uma amiga Brasileira que mora aqui na Inglaterra comentava que gostava de assitir um seriado de TV chamado CSI (Crime Scene Investigation). Um assunto leva ao outro acabamos conversando sobre a maneira como crimes sao investigados no Brasil. O problema ai e' que existem muitos (demais) "Crime Scenes", mas muito pouco "Investigation", sem contar as variadas formas de corrupcao policial. O crime sugerido pelo artigo, entretanto, foi ainda foi mais arriscado de ser cometido do que os crimes cometidos pelos varios politicos da nacao, para os quais a impunidade e' ainda maior.
Caro (a),
CSI e Contos Contíguos são peças de ficção: um bom lugar para cometer e desvendar crimes perfeitos. Por outro lado, corre um boato no Planalto que quem encontrar um político corrupto na cadeia ganha um cartão corporativo do governo...
Abraço,
Rubem
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