ACHADOS E PERDIDOS
O que é a leitura de crônicas, senão uma visita periódica à sala de achados e perdidos? Dessas que fazemos pela força do hábito, quase como o abrir da geladeira para dar uma espiada na própria fome. Ou, quem sabe, movidos pela clara impressão de que estamos a todo o momento perdendo coisas no caminho, distraídos ou apressados, e que, com certeza, alguém juntou para nós.
É nessa sala de achados e perdidos que encontramos, por exemplo, a nossa infância. Aquele medo do escuro, a teatralidade do Natal, o ataque de risos durante a missa. A amizade descomprometida do colega de escola, a primeira paixão e, logo em seguida, a descoberta de que, naquela altura, ainda não estávamos preparados para as conseqüências do amor. Encontramos a mãe jovem, a irmã implicante, as chegadas e partidas do pai. Lembranças que pareciam perdidas até nos depararmos com elas ali, na crônica.
É nessa sala de achados e perdidos que encontramos os postais da viagem inesquecível chamada juventude. Paisagens que nem existem mais – a começar pela nossa própria silhueta –, mas que a memória registrou em fotos divertidas, relatou tudo em detalhes ali no verso, endereçou para a eternidade e deixou para o tempo a tarefa de selar. Encontramos muitos sonhos caídos de nossos bolsos sem que tenhamos notado sua ausência – que falta faz uma niqueleira na hora de guardar os centavos da vida – os quais agora perderam sua validade. Mas, na crônica, são resgatados para a nossa coleção.
É nessa sala de achados e perdidos que encontramos aquele detalhe que ainda ontem estava bem na nossa frente e, displicentes, deixamos que fosse levado pelo vento (ainda assim, mantenha as janelas abertas). Encontramos a mentira do político, a beleza da cura, a simplicidade do gesto, a violência das palavras, o encantamento da solidariedade. Encontramos também, meu Deus!, o sorriso franco que nem imaginávamos ter perdido. Encontramos os primeiros passos do filho, o ranço do chefe, o batom da esposa, ovos de gema cor-de-laranja, máscaras, sujeira embaixo do tapete. Como um espaço tão pequeno de texto pode abrigar tanta coisa perdida?
É nessa sala de achados e perdidos que encontramos uns aos outros, todos em busca do que, em algum tempo, nos escapou. É quando ela vira, também, sala de bate-papos, com suas polêmicas e celebrações; revelações e preconceitos; partilhas e apropriações indébitas. Encontramos muita discordância, algumas inamistosas. Mas coincidências e identificações em número superior ‒ ainda bem! Encontrar-se na crônica é uma experiência tranqüilizadora: significa que não estamos loucos e os outros também pensam/sentem o mesmo que nós.
E o cronista é este sujeito meio à toa que vive perdido e, ao mesmo tempo, vive de achados. Se ninguém soltasse aquela frase peculiar, se todos guardassem os temores apenas para si, ou se o acaso não espalhasse os papéis em nossas mesas, o cronista estaria frito. É quando junta uma ilusão antes de ela entrar na boca-de-lobo, ao reparar em uma sutileza esquecida no espaldar da cadeira, no instante em que é o único que viu a graça rolando escada abaixo, nestes momentos o cronista se torna o fiel depositário do cotidiano. No jornal, no blog ou no livro, a porta desta sala de achados e perdidos estará sempre franqueada para quem se dispuser a ler. Bisbilhotar o que os outros perderam, ou mesmo procurar um espelho. Assim, sem muita pretensão, como quem abre a geladeira para averiguar a própria fome.
O que é a leitura de crônicas, senão uma visita periódica à sala de achados e perdidos? Dessas que fazemos pela força do hábito, quase como o abrir da geladeira para dar uma espiada na própria fome. Ou, quem sabe, movidos pela clara impressão de que estamos a todo o momento perdendo coisas no caminho, distraídos ou apressados, e que, com certeza, alguém juntou para nós.
É nessa sala de achados e perdidos que encontramos, por exemplo, a nossa infância. Aquele medo do escuro, a teatralidade do Natal, o ataque de risos durante a missa. A amizade descomprometida do colega de escola, a primeira paixão e, logo em seguida, a descoberta de que, naquela altura, ainda não estávamos preparados para as conseqüências do amor. Encontramos a mãe jovem, a irmã implicante, as chegadas e partidas do pai. Lembranças que pareciam perdidas até nos depararmos com elas ali, na crônica.
É nessa sala de achados e perdidos que encontramos os postais da viagem inesquecível chamada juventude. Paisagens que nem existem mais – a começar pela nossa própria silhueta –, mas que a memória registrou em fotos divertidas, relatou tudo em detalhes ali no verso, endereçou para a eternidade e deixou para o tempo a tarefa de selar. Encontramos muitos sonhos caídos de nossos bolsos sem que tenhamos notado sua ausência – que falta faz uma niqueleira na hora de guardar os centavos da vida – os quais agora perderam sua validade. Mas, na crônica, são resgatados para a nossa coleção.
É nessa sala de achados e perdidos que encontramos aquele detalhe que ainda ontem estava bem na nossa frente e, displicentes, deixamos que fosse levado pelo vento (ainda assim, mantenha as janelas abertas). Encontramos a mentira do político, a beleza da cura, a simplicidade do gesto, a violência das palavras, o encantamento da solidariedade. Encontramos também, meu Deus!, o sorriso franco que nem imaginávamos ter perdido. Encontramos os primeiros passos do filho, o ranço do chefe, o batom da esposa, ovos de gema cor-de-laranja, máscaras, sujeira embaixo do tapete. Como um espaço tão pequeno de texto pode abrigar tanta coisa perdida?
É nessa sala de achados e perdidos que encontramos uns aos outros, todos em busca do que, em algum tempo, nos escapou. É quando ela vira, também, sala de bate-papos, com suas polêmicas e celebrações; revelações e preconceitos; partilhas e apropriações indébitas. Encontramos muita discordância, algumas inamistosas. Mas coincidências e identificações em número superior ‒ ainda bem! Encontrar-se na crônica é uma experiência tranqüilizadora: significa que não estamos loucos e os outros também pensam/sentem o mesmo que nós.
E o cronista é este sujeito meio à toa que vive perdido e, ao mesmo tempo, vive de achados. Se ninguém soltasse aquela frase peculiar, se todos guardassem os temores apenas para si, ou se o acaso não espalhasse os papéis em nossas mesas, o cronista estaria frito. É quando junta uma ilusão antes de ela entrar na boca-de-lobo, ao reparar em uma sutileza esquecida no espaldar da cadeira, no instante em que é o único que viu a graça rolando escada abaixo, nestes momentos o cronista se torna o fiel depositário do cotidiano. No jornal, no blog ou no livro, a porta desta sala de achados e perdidos estará sempre franqueada para quem se dispuser a ler. Bisbilhotar o que os outros perderam, ou mesmo procurar um espelho. Assim, sem muita pretensão, como quem abre a geladeira para averiguar a própria fome.
5 comentários:
Que beleza de texto, Maninho! Pura poesia em prosa...
c'
Obrigado, Carla!
Beijo para ti!
Mano
Uma bela analogia, muito bem desenvolvida. Realmente, você dá uma dimensão à crônica que ela merece. Quando penso em escrever uma crônica, mesmo que seja sobre um fato atual, não tem jeito: preciso remexer nos meus ´armários´ e me perder, ou me achar, no que vou me encontrar por lá.
Grande abraço.
Pois é, Mansur,
O fazer crônico é um tema que rende até crônicas. E gosto de explorá-lo (sem exageros).
Abraço Porto-alegrense,
Rubem
Metalinguagem é isso aí. E se os grandes cronistas são capazes de escrever grandes crônicas até sobre os fatos mais irrelevantes (pelo menos teoricamente), por que não do ato de fazer a crônica?
Abraços.
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