CONSERVADOR RADICAL
Das tantas possibilidades de classificação dos homens em diferentes grupos – gordos ou magros, fiéis ou disponíveis, otimistas ou informados – uma delas é fazê-lo entre radicais ou conservadores. Difícil, mas necessário, é saber se você é um radical nato, talhado para suportar as exigências que as atitudes extremas impõem, ou um conservador sem noção do perigo. Da mesma forma, é muito útil investigar o dom para a ponderação, pois um radical na condição de “murista” pode quebrar a cara por não ter, no DNA, o equilíbrio necessário para se manter neste patamar. Para isso existe a juventude. Veja o meu caso como exemplar.
Durante toda a minha vida fui convidado a flertar com o perigo. Já me propuseram parceria em aulas de pára-quedismo, mergulho submarino, alpinismo, rafting, kitesurf. Já estive perto de topar envolvimentos com mulheres malucas, sociedade com golpistas, transas sem preservativo, carona de estranhos. Também não foi por falta de oportunidade que levei uma vida distante das drogas ilícitas, dos rachas de automóvel, dos pastéis de rodoviária, dos sogros violentos, da filiação partidária. Aprendi a recusar educadamente: não é para mim. Tudo porque fui vacinado na juventude com passagens radicais mal sucedidas, das quais sobrevivi com poucas seqüelas – mas muitos ensinamentos. Como a memorável passagem pelo tobogã.
Foi em Florianópolis. Devia ter meus vinte anos. Até aquele momento, olhava com desconfiança para o tal brinquedo de parque. Se por um lado ele me prometia segundos de velocidade e emoção, por outro dava margem a muitas possibilidades. Já naquela altura, reconhecia no meu destino a ação constante do improvável, o ímã do infortúnio, o pendor pelo ineditismo. Porém, estava de namorada nova, que pedia a minha companhia para tal passagem. Éramos, os dois, toboganicamente virgens. Eu – óbvio! – não confessei a lacuna no currículo para a menina. Vesti a armadura dos homens vividos e sustentei a pose de encorajador.
Estávamos em dois casais. Pagamos o ingresso e partimos em busca de grandes aventuras. Nossos amigos, experientes, foram primeiro. Lá de baixo, sorriram para nós. E chamaram: venham! É delicioso! Minha namorada quis desistir. Seria vexatório naquele momento. Eu, acreditando na armadura metafórica, propus tutela: desceremos juntos, lado a lado, minha donzela. Dê-me a mão, Branca de Neve. Seremos felizes para sempre na contagem de três. Um, dois...
No três, ela fincou o pé. E desistiu sem soltar a minha mão. Só que eu partira. Resultado: quando livre, deixei o ápice da montanha deitado, sem equilíbrio, até meio de viés. Na primeira ondulada abandonei o contato com o solo e, a partir dali, devo ter pousado umas três ou quatro vezes, a cada uma de forma mais desengonçada. O que sobrou de mim, chocou-se com violência nos sacos de areia do final da pista sob o som de aplausos. Os pés estavam para cima. Se fosse um desenho animado, o tapetinho chegaria logo depois, encostando em minha cabeça com segundos de atraso. Como era a vida real, quem chegou na seqüência foi a namorada, que escutara do funcionário a orientação de jamais – jamais! – deitar-se no tobogã, para não abusar da velocidade.
Como disse, podemos dividir as pessoas em radicais ou conservadores. No meu caso, evitar o radicalismo é questão de conservar a integridade física e mental. Sou parceiro para uma partida de vôlei, xadrez, par-ou-ímpar. Topo relacionamentos estáveis e duradouros, misto-quente na rodoviária, voto secreto. Viver no Brasil já garante uma dose quase inadmissível de incertezas. Sou um conservador radical porque, fora de eixo, saio invariavelmente esfolado. Assombra-me o fantasma do tobogã.
Das tantas possibilidades de classificação dos homens em diferentes grupos – gordos ou magros, fiéis ou disponíveis, otimistas ou informados – uma delas é fazê-lo entre radicais ou conservadores. Difícil, mas necessário, é saber se você é um radical nato, talhado para suportar as exigências que as atitudes extremas impõem, ou um conservador sem noção do perigo. Da mesma forma, é muito útil investigar o dom para a ponderação, pois um radical na condição de “murista” pode quebrar a cara por não ter, no DNA, o equilíbrio necessário para se manter neste patamar. Para isso existe a juventude. Veja o meu caso como exemplar.
Durante toda a minha vida fui convidado a flertar com o perigo. Já me propuseram parceria em aulas de pára-quedismo, mergulho submarino, alpinismo, rafting, kitesurf. Já estive perto de topar envolvimentos com mulheres malucas, sociedade com golpistas, transas sem preservativo, carona de estranhos. Também não foi por falta de oportunidade que levei uma vida distante das drogas ilícitas, dos rachas de automóvel, dos pastéis de rodoviária, dos sogros violentos, da filiação partidária. Aprendi a recusar educadamente: não é para mim. Tudo porque fui vacinado na juventude com passagens radicais mal sucedidas, das quais sobrevivi com poucas seqüelas – mas muitos ensinamentos. Como a memorável passagem pelo tobogã.
Foi em Florianópolis. Devia ter meus vinte anos. Até aquele momento, olhava com desconfiança para o tal brinquedo de parque. Se por um lado ele me prometia segundos de velocidade e emoção, por outro dava margem a muitas possibilidades. Já naquela altura, reconhecia no meu destino a ação constante do improvável, o ímã do infortúnio, o pendor pelo ineditismo. Porém, estava de namorada nova, que pedia a minha companhia para tal passagem. Éramos, os dois, toboganicamente virgens. Eu – óbvio! – não confessei a lacuna no currículo para a menina. Vesti a armadura dos homens vividos e sustentei a pose de encorajador.
Estávamos em dois casais. Pagamos o ingresso e partimos em busca de grandes aventuras. Nossos amigos, experientes, foram primeiro. Lá de baixo, sorriram para nós. E chamaram: venham! É delicioso! Minha namorada quis desistir. Seria vexatório naquele momento. Eu, acreditando na armadura metafórica, propus tutela: desceremos juntos, lado a lado, minha donzela. Dê-me a mão, Branca de Neve. Seremos felizes para sempre na contagem de três. Um, dois...
No três, ela fincou o pé. E desistiu sem soltar a minha mão. Só que eu partira. Resultado: quando livre, deixei o ápice da montanha deitado, sem equilíbrio, até meio de viés. Na primeira ondulada abandonei o contato com o solo e, a partir dali, devo ter pousado umas três ou quatro vezes, a cada uma de forma mais desengonçada. O que sobrou de mim, chocou-se com violência nos sacos de areia do final da pista sob o som de aplausos. Os pés estavam para cima. Se fosse um desenho animado, o tapetinho chegaria logo depois, encostando em minha cabeça com segundos de atraso. Como era a vida real, quem chegou na seqüência foi a namorada, que escutara do funcionário a orientação de jamais – jamais! – deitar-se no tobogã, para não abusar da velocidade.
Como disse, podemos dividir as pessoas em radicais ou conservadores. No meu caso, evitar o radicalismo é questão de conservar a integridade física e mental. Sou parceiro para uma partida de vôlei, xadrez, par-ou-ímpar. Topo relacionamentos estáveis e duradouros, misto-quente na rodoviária, voto secreto. Viver no Brasil já garante uma dose quase inadmissível de incertezas. Sou um conservador radical porque, fora de eixo, saio invariavelmente esfolado. Assombra-me o fantasma do tobogã.
2 comentários:
Já fui um radical, quando tinha uns quinze anos e uns cinqüenta quilos a menos...
Excelente, o texto.
Beto,
Quinze anos podem me tirar que fico até mais bonito. Mais cabeludo, com certeza. Mas, se perco cinquenta quilos, fico devendo!
Obrigado e um abraço,
Rubem
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