23.1.09

Número 301

EM RUÍNAS

Na praia da infância e juventude, na mesma quadra onde minha mãe ainda preserva nossa casa de veraneio, um prédio resta aos pedaços. Ele esteve por muitos anos com ares de abandono, até ser consumido por um incêndio. Uma paisagem que, antes do fogo, maculava minha memória sob forma de cicatriz, agora escancara vísceras apodrecidas. Ela me dói. Dor compartilhada por veranistas tradicionais, da minha e de gerações anteriores, quando não se consegue evitar o nobre endereço de esquina. Mesmo não tendo qualquer responsabilidade sobre o trágico destino do lugar, uma parte fundamental da minha vida agoniza sob os destroços.

Refiro-me ao salão principal de um antigo hotel, desativado – se não me trai a memória – no final da década de oitenta. Até então, era sol de um sistema humilde de poucas casas em sua órbita. Metros quadrados de uma edificação encantadora em sua simplicidade, fonte inesgotável de luz e calor humano. Destino para onde convergiam todos os habitantes, atraídos por um magnetismo explicado, em parte, por ser o principal centro de serviços da época. Mas, também, pelo carinho verdadeiro com que as pessoas ali compartilhavam.

Era lá que buscávamos o jornal cedo da manhã, encontrando vestidas e perfumadas as mesas de café. No ambiente do bar, poucos já repercutiam as boas e más notícias do dia, ainda quentes. Defronte ao hotel cruzávamos a caminho do mar, carregados de guardassóis e esteiras. Diante dele passávamos na volta, exaustos, esfomeados, cobertos de areia e sal. Também ao hotel, um pouco mais tarde, voltávamos de roupas limpas e barriga cheia, sedentos por um picolé. Dependendo de encontros e desencontros, íamos para casa ou partíamos para os mais variados endereços, gozando de liberdade e autonomia conquistadas desde seis ou sete anos de idade.

À noite, de cabelo lambido e roupa caprichada, quase toda a praia se encontrava no salão principal, no bar e nos avarandados do hotel. Havia mesas de pife, canastra e sete e meio. Ainda no carteado, o ruidoso dorminhoco acontecia bem longe da televisão, iluminada pelas telenovelas. Muita correria de crianças para dentro e para fora. Os jovens ocupavam os bancos externos, ambiente ideal para o namoro, conversa fiada ou cantoria ao som do violão. Nem a chegada da madrugada espantava o pessoal, até o inevitável cartão vermelho em nome da tranquilidade dos hóspedes... Afinal, em poucas horas, as mesas do café estariam novamente postas, já teriam chegado os exemplares do novo jornal, trocariam bons-dias os primeiros pescadores.

No hotel acontecia o divertido bingo de cartelas marcadas com feijões. E a gincana, o carnaval infantil e adulto, bailes de casais. Rodas de samba de tarde inteira. Nossos encontros de antes e depois do vôlei e futebol. Defronte ao hotel era o ponto de partida do bloco carnavalesco para praias vizinhas, ponto de referência para quem viesse de outro lugar, relógio-ponto marcando meus primeiros vinte anos. Um palácio cuja maior riqueza foi construir a minha e outras tantas histórias simples, anônimas, irrisórias. Ou grandiosas.

A ruína que hoje me entristece contrasta com os relatos apaixonados que não poupo fazer aos meus filhos quando conto do hotel. Se ainda estivesse ativo, aposto que sua estrela seria capaz de vencer até mesmo o obscurantismo da violência, cujo resultado foi a transformação de todas as casas da praia em prisões gradeadas. Seu magnetismo, quem sabe, ainda seria capaz de promover novos encontros. Porém, ao contrário, os escombros do prédio expõem o cadáver insepulto de outro tempo. Um tempo sem videogame, sem celular, sem computador. Tempo de verões arrastados, tranquilos e doces como as músicas de Caymmi. Nas ruínas deste tempo, habita a agonia de minh’alma.

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