PÉTALAS
Bem me quero velho contador de histórias. Crônico aumentador de histórias. Inventor de histórias. Todas elas menores do que uma fração de mini-conto. Muitas sem pé nem cabeça – histórias minhocas. Algumas, poucas, com chance de conter moral. Relatos de outros tempos, mas ainda capazes de seduzir netos, sobrinhos netos, filhos dos vizinhos: a meninada.
Mal me quero velho repetitivo. Incapaz de uma nuance, de um improviso. Cheio de certezas e verdades. O senhor dos fatos com dedo em riste a pressionar uma única tecla. O primeiro a desdizer qualquer fantasia, sonho ou mentira saudável. Duro como uma foto três por quatro. Previsível. Árido. Impermeável. Temido e respeitado.
Bem me quero velho de corpo. Gordinho, se engordar. Enrugado ao permanecer esquálido. Calvo, mas penteadinho. Parceiro para longas caminhadas e pequenas peraltices. Modelo de saúde, não de beleza. E, ao contrário do preceito dos mágicos, com os olhos mais rápidos do que as mãos. Aprendendo – que fazer – anatomia pelo método mais dolorido: a dor.
Mal me quero velho de alma. Talvez preservado por fora, mas carcomido no âmago. Ranzinza. Impaciente. Plúmbeo como um céu eternamente armado para temporais. Puído e desbotado como um uniforme em desuso, mofando no baú cadeado. Rancoroso, se pobre. Avaro, contando com a boa sorte do destino. Ensinando anatomia pelo método mais dolorido: a dor.
Bem me quero velho espiritualizado. Humilde. Aprendiz. Apto para sorrir da dificuldade crescente. Leve, sim, para que a vida – e a morte – ocorram obedecendo a lei do menor esforço. Amoroso sem ser trouxa, cauteloso sem ser covarde, alegre sem ser ignorante. Desapegado de tudo o que me invejam: com meus pássaros voando soltos, fora de gaiolas.
Mal me quero velho materialista. Senhor de escravos, carcereiro, majestade. Egoísta até o último suspiro, motivo de chacota, causador de lágrimas. Vampiro. Preconceituoso, prepotente, hipocondríaco. Assombrado por conspirações, incrédulo na humanidade, pessimista contumaz. Alguém que não tenha sentimentos, e sim interesses.
Bem me quero velho se estiver valendo a pena. Se não causar dano ou sofrimento. Se conseguir me reconhecer no espelho. Se a dignidade me acompanhar. Se merecer a companhia dos mais jovens. Se contar com alguns da minha geração para traçar paralelos. Se continuar um pouco útil. Se não estiver devendo. Se, vivo, não pareça morto.
Mal me quero um velho esquecido pela morte. Isso, mais do que tudo, será o fim. E, na derradeira pétala, para que não mal me queiram, o bem me quero.
Bem me quero velho contador de histórias. Crônico aumentador de histórias. Inventor de histórias. Todas elas menores do que uma fração de mini-conto. Muitas sem pé nem cabeça – histórias minhocas. Algumas, poucas, com chance de conter moral. Relatos de outros tempos, mas ainda capazes de seduzir netos, sobrinhos netos, filhos dos vizinhos: a meninada.
Mal me quero velho repetitivo. Incapaz de uma nuance, de um improviso. Cheio de certezas e verdades. O senhor dos fatos com dedo em riste a pressionar uma única tecla. O primeiro a desdizer qualquer fantasia, sonho ou mentira saudável. Duro como uma foto três por quatro. Previsível. Árido. Impermeável. Temido e respeitado.
Bem me quero velho de corpo. Gordinho, se engordar. Enrugado ao permanecer esquálido. Calvo, mas penteadinho. Parceiro para longas caminhadas e pequenas peraltices. Modelo de saúde, não de beleza. E, ao contrário do preceito dos mágicos, com os olhos mais rápidos do que as mãos. Aprendendo – que fazer – anatomia pelo método mais dolorido: a dor.
Mal me quero velho de alma. Talvez preservado por fora, mas carcomido no âmago. Ranzinza. Impaciente. Plúmbeo como um céu eternamente armado para temporais. Puído e desbotado como um uniforme em desuso, mofando no baú cadeado. Rancoroso, se pobre. Avaro, contando com a boa sorte do destino. Ensinando anatomia pelo método mais dolorido: a dor.
Bem me quero velho espiritualizado. Humilde. Aprendiz. Apto para sorrir da dificuldade crescente. Leve, sim, para que a vida – e a morte – ocorram obedecendo a lei do menor esforço. Amoroso sem ser trouxa, cauteloso sem ser covarde, alegre sem ser ignorante. Desapegado de tudo o que me invejam: com meus pássaros voando soltos, fora de gaiolas.
Mal me quero velho materialista. Senhor de escravos, carcereiro, majestade. Egoísta até o último suspiro, motivo de chacota, causador de lágrimas. Vampiro. Preconceituoso, prepotente, hipocondríaco. Assombrado por conspirações, incrédulo na humanidade, pessimista contumaz. Alguém que não tenha sentimentos, e sim interesses.
Bem me quero velho se estiver valendo a pena. Se não causar dano ou sofrimento. Se conseguir me reconhecer no espelho. Se a dignidade me acompanhar. Se merecer a companhia dos mais jovens. Se contar com alguns da minha geração para traçar paralelos. Se continuar um pouco útil. Se não estiver devendo. Se, vivo, não pareça morto.
Mal me quero um velho esquecido pela morte. Isso, mais do que tudo, será o fim. E, na derradeira pétala, para que não mal me queiram, o bem me quero.
4 comentários:
Esta é uma daquelas crônicas que merecem estar em todas as antologias escolares do mundo.
Beto,
Bem me quero contando com a amizade de pessoas generosas como você!
Abraços,
Rubem
"Calvo, mas penteadinho" - essa é ótima.
Este é o Rubem Poeta?
Zulmara,
Calvo e escabelado é dose, não é?
Ah, a poesia...
Abraço,
Rubem
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