1964
O ano de 1964 é, para mim, impossível de ser esquecido. Mesmo que eu quisesse, lá está ele na certidão de nascimento, na carteira de identidade, de motorista e em todo e qualquer cadastro que venha a preencher. Sim, foi quando eu nasci. Por outros motivos, os meados da década de sessenta estarão para sempre na lembrança do povo brasileiro. Brotaram ali os denominados anos de chumbo, a ditadura militar, nosso mais recente período de rompimento democrático. E, entre a alegria de comemorar o aniversário e a tristeza ao lamentar os fatos históricos, o sentimento que me surge com mais força quando este ano é citado é outro: o medo.
Em 31 de março de 64, data convencionada para marcar o início do levante que tirou Jango da presidência, eu ainda estava na barriga da minha mãe. Teoricamente, nada poderia temer. Mas a vida me deu mostras de que fetos e recém nascidos são criaturas reféns dos sentimentos da genitora. E, na época, minha mãe tinha muito, muito medo. A empresa onde meu pai era diretor estava na lista de estabelecimentos a serem incendiados por militantes de organizações inspiradas em ideologias totalitárias de orientação esquerdista. O patrimônio obtido a partir do trabalho do meu avô, que chegara do interior à cidade de Porto Alegre aos quatorze anos de idade com uma única muda de roupa na mala, corria o risco de virar cinzas. Daí o justificável medo.
Dito isso, não deixo a menor sombra de dúvidas de que fui criado em um lar apoiador das ações militares. Ou, simplificando, de direita. Meu pai viveu defendendo a tese pela qual os quartéis, aqui e em outros países da América Latina, livraram suas nações de grupos financiados, treinados e submissos à Cortina de Ferro, e que pretendiam transformar nossa ordem política e social em uma enorme Cuba. E, isso ocorrendo, ele estaria condenado à prisão ou morte. É impossível adivinhar como seria o Brasil neste caso, pois hipóteses não passam de exercícios de ficção e, assim, não se sustentam. O único parâmetro confiável é o da realidade: meu pai faleceu sem ver a ilha de Fidel abandonar um severo regime ditatorial, bastante impermeável às idéias opostas.
Na medida em que eu e minhas irmãs mais velhas fomos crescendo, todos os nossos heróis surgiam, que ironia, como homens de esquerda. Músicos, escritores, jornalistas, atores, mestres e amigos sofriam com o cerceamento de suas palavras e ações. As idéias que não habitavam no exílio se escondiam em metáforas, resistindo na medida do possível à censura. Multiplicavam-se os relatos de perseguição, morte e tortura. O livre pensar, por si, já era um libelo subversivo. E o medo de que uma palavra mal interpretada levasse a nós, ainda meninos, para os porões da ditadura, voltou para a minha casa. Afinal, claro, engrossávamos as fileiras que pediam o final da ditadura. Tudo o que condenava o Brasil a uma vida miserável de Terceiro Mundo era culpa da falta de democracia. Acreditávamos que o voto viria a nos redimir.
Por fim, a liberdade saiu vencedora. A redemocratização lenta e gradual, muito comemorada na conquista do primeiro governo civil, tanto mais quando pelo voto direto, sepultou o silêncio. Raiou a esperança já desejada e prometida em verso e prosa. Os militares voltaram para a caserna e o medo de emitir opiniões esmoreceu. O cálice de vinho tinto de sangue foi afastado; a noite terminou; o sol nasceu; as flores venceram os canhões. O Parlamento redigiu a Constituição Cidadã. O voto colocou, então, um a um, os principais nomes e partidos de esquerda nas diversas esferas do poder.
Hoje, trinta e um de março de dois mil e nove, no momento em que escrevo esse texto, a ditadura militar volta a ser pauta. Na mesma edição de jornal, pipocam notícias nada abonadoras sobre os poderes Executivo e Legislativo. A violência e a roubalheira crescentes denunciam a falência do Judiciário. Como em um círculo vicioso, o medo renasce em meu coração: o calote vexatório apresentado pela democracia brasileira redime, justifica ou permite cogitar governos de exceção? Temo, profundamente, que alguém responda que sim. Quero morrer acreditando que o voto continuará a ser a melhor maneira de impedir que a liberdade, cujas asas estão abertas sobre nós, defeque em nossas cabeças.
O ano de 1964 é, para mim, impossível de ser esquecido. Mesmo que eu quisesse, lá está ele na certidão de nascimento, na carteira de identidade, de motorista e em todo e qualquer cadastro que venha a preencher. Sim, foi quando eu nasci. Por outros motivos, os meados da década de sessenta estarão para sempre na lembrança do povo brasileiro. Brotaram ali os denominados anos de chumbo, a ditadura militar, nosso mais recente período de rompimento democrático. E, entre a alegria de comemorar o aniversário e a tristeza ao lamentar os fatos históricos, o sentimento que me surge com mais força quando este ano é citado é outro: o medo.
Em 31 de março de 64, data convencionada para marcar o início do levante que tirou Jango da presidência, eu ainda estava na barriga da minha mãe. Teoricamente, nada poderia temer. Mas a vida me deu mostras de que fetos e recém nascidos são criaturas reféns dos sentimentos da genitora. E, na época, minha mãe tinha muito, muito medo. A empresa onde meu pai era diretor estava na lista de estabelecimentos a serem incendiados por militantes de organizações inspiradas em ideologias totalitárias de orientação esquerdista. O patrimônio obtido a partir do trabalho do meu avô, que chegara do interior à cidade de Porto Alegre aos quatorze anos de idade com uma única muda de roupa na mala, corria o risco de virar cinzas. Daí o justificável medo.
Dito isso, não deixo a menor sombra de dúvidas de que fui criado em um lar apoiador das ações militares. Ou, simplificando, de direita. Meu pai viveu defendendo a tese pela qual os quartéis, aqui e em outros países da América Latina, livraram suas nações de grupos financiados, treinados e submissos à Cortina de Ferro, e que pretendiam transformar nossa ordem política e social em uma enorme Cuba. E, isso ocorrendo, ele estaria condenado à prisão ou morte. É impossível adivinhar como seria o Brasil neste caso, pois hipóteses não passam de exercícios de ficção e, assim, não se sustentam. O único parâmetro confiável é o da realidade: meu pai faleceu sem ver a ilha de Fidel abandonar um severo regime ditatorial, bastante impermeável às idéias opostas.
Na medida em que eu e minhas irmãs mais velhas fomos crescendo, todos os nossos heróis surgiam, que ironia, como homens de esquerda. Músicos, escritores, jornalistas, atores, mestres e amigos sofriam com o cerceamento de suas palavras e ações. As idéias que não habitavam no exílio se escondiam em metáforas, resistindo na medida do possível à censura. Multiplicavam-se os relatos de perseguição, morte e tortura. O livre pensar, por si, já era um libelo subversivo. E o medo de que uma palavra mal interpretada levasse a nós, ainda meninos, para os porões da ditadura, voltou para a minha casa. Afinal, claro, engrossávamos as fileiras que pediam o final da ditadura. Tudo o que condenava o Brasil a uma vida miserável de Terceiro Mundo era culpa da falta de democracia. Acreditávamos que o voto viria a nos redimir.
Por fim, a liberdade saiu vencedora. A redemocratização lenta e gradual, muito comemorada na conquista do primeiro governo civil, tanto mais quando pelo voto direto, sepultou o silêncio. Raiou a esperança já desejada e prometida em verso e prosa. Os militares voltaram para a caserna e o medo de emitir opiniões esmoreceu. O cálice de vinho tinto de sangue foi afastado; a noite terminou; o sol nasceu; as flores venceram os canhões. O Parlamento redigiu a Constituição Cidadã. O voto colocou, então, um a um, os principais nomes e partidos de esquerda nas diversas esferas do poder.
Hoje, trinta e um de março de dois mil e nove, no momento em que escrevo esse texto, a ditadura militar volta a ser pauta. Na mesma edição de jornal, pipocam notícias nada abonadoras sobre os poderes Executivo e Legislativo. A violência e a roubalheira crescentes denunciam a falência do Judiciário. Como em um círculo vicioso, o medo renasce em meu coração: o calote vexatório apresentado pela democracia brasileira redime, justifica ou permite cogitar governos de exceção? Temo, profundamente, que alguém responda que sim. Quero morrer acreditando que o voto continuará a ser a melhor maneira de impedir que a liberdade, cujas asas estão abertas sobre nós, defeque em nossas cabeças.
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