RÉQUIEM PARTICULAR
Dentre os cronistas que não canso de visitar há os que me surpreendem, os que me encorajam e os que me deliciam, quando não tudo ao mesmo tempo. Destes, Paulo Mendes Campos. Dono de uma prosa contaminada até a última gota de sangue pela poesia, ele é doador universal para todos os que almejam a verdadeira literatura pelo caminho da crônica. Seus textos sempre conseguem nos fazer pensar na vida, mesmo quando se referem a um tempo e espaço que não coincidem com o nosso.
Foi o que aconteceu enquanto eu lia Réquiem para os bares mortos. Em suas orações, Mendes Campos cita casas cariocas que faleceram muitos anos antes de eu nascer, na distante Porto Alegre: Vermelhinho, Alvear, Bar Nacional e do Hotel Central, entre outras. Há ali, porém, uma saudade tão germinal que faz brotar no peito do leitor uma melancolia que se transfere para as próprias lembranças. Afinal, quem já cruzou a casa dos quarenta anos, como eu, e não viu fecharem cortinas de amados bares para sempre, não pode dizer que tenha verdadeiramente vivido.
Meu primeiro bar, por exemplo, findou incendiado depois de permanecer morto e insepulto por, talvez, uma década. Não era um bar de cidade, mas de praia, contíguo ao salão de festas do Hotel Vendaval. Ambiente em que, durante o dia, coabitavam crianças comprando picolés e adultos abrindo os serviços etílicos com horas de antecipação. À noite, na medida em que a meninada se recolhia, ele testemunhava jovens em seus preliminares jogos de sedução, incursões musicais e, claro, nos primeiros tropeços alcoólicos. Em retrospectiva, fico surpreso – até comovido – com o pessoal que nos atendia: há que se ter paciência e carinho com os calouros da vida noturna.
Em Porto Alegre, são raras as casas que frequentei na juventude ainda vivas. Uma das que mais deixa saudade é o Espaço IAB, bar do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Ponto de convergência da intelectualidade gaúcha nos anos oitenta, seus drinques tinham o sabor do momento brasileiro. Diante do mesmo cardápio, escorados no mesmo balcão, estudantes que espremiam os bolsos para pagar a noite ao lado de profissionais bem sucedidos da arquitetura, psicologia, jornalismo e artes. No IAB, minha nascente banda de jazz consolidou algo muito maior do que uma carreira musical: forjou a cumplicidade que resiste por incontáveis compassos.
Outro falecido, do qual nem a linda casa ficou para a história, é o bar e restaurante Lugar Comum. Tempo de se ir aos shows no Teatro Leopoldina, na Av. Independência e, depois, descer a pé à Rua Santo Antônio – todos para o mesmo Lugar, degustando a culinária brasileira ao som de música instrumental. Mais tarde, quando o Leopoldina se tornou o Teatro da OSPA, abriu nos altos da mesma casa a lendária Sala Jazz Tom Jobim, palco de músicos inesquecíveis. Hoje, parece que era sempre inverno quando cruzávamos a porta de vidro daquele sobrado – uma atmosfera mais européia do que tropical. Só não há mais piano ou franguinho à mineira para aquecer a alma.
Claro que falta espaço na crônica para descrever com detalhes minhas lápides. Contar das fotos que as ornamentam, falar dos nomes que ali se encontram. Não existe outro cemitério, porém, no qual se possa depositar flores em homenagem aos bares mortos: só a lembrança. E toda oração, para cada um de nós, será muito particular, fale de Porto Alegre, do Rio, Belo Horizonte ou Paris. Assim mesmo, sirvo-me de Campari com água tônica, limão e gelo. Depois, em pensamento, brindo com Paulo Mendes Campos e contigo, por todos os bares e cronistas que viveram e morreram por nós.
Dentre os cronistas que não canso de visitar há os que me surpreendem, os que me encorajam e os que me deliciam, quando não tudo ao mesmo tempo. Destes, Paulo Mendes Campos. Dono de uma prosa contaminada até a última gota de sangue pela poesia, ele é doador universal para todos os que almejam a verdadeira literatura pelo caminho da crônica. Seus textos sempre conseguem nos fazer pensar na vida, mesmo quando se referem a um tempo e espaço que não coincidem com o nosso.
Foi o que aconteceu enquanto eu lia Réquiem para os bares mortos. Em suas orações, Mendes Campos cita casas cariocas que faleceram muitos anos antes de eu nascer, na distante Porto Alegre: Vermelhinho, Alvear, Bar Nacional e do Hotel Central, entre outras. Há ali, porém, uma saudade tão germinal que faz brotar no peito do leitor uma melancolia que se transfere para as próprias lembranças. Afinal, quem já cruzou a casa dos quarenta anos, como eu, e não viu fecharem cortinas de amados bares para sempre, não pode dizer que tenha verdadeiramente vivido.
Meu primeiro bar, por exemplo, findou incendiado depois de permanecer morto e insepulto por, talvez, uma década. Não era um bar de cidade, mas de praia, contíguo ao salão de festas do Hotel Vendaval. Ambiente em que, durante o dia, coabitavam crianças comprando picolés e adultos abrindo os serviços etílicos com horas de antecipação. À noite, na medida em que a meninada se recolhia, ele testemunhava jovens em seus preliminares jogos de sedução, incursões musicais e, claro, nos primeiros tropeços alcoólicos. Em retrospectiva, fico surpreso – até comovido – com o pessoal que nos atendia: há que se ter paciência e carinho com os calouros da vida noturna.
Em Porto Alegre, são raras as casas que frequentei na juventude ainda vivas. Uma das que mais deixa saudade é o Espaço IAB, bar do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Ponto de convergência da intelectualidade gaúcha nos anos oitenta, seus drinques tinham o sabor do momento brasileiro. Diante do mesmo cardápio, escorados no mesmo balcão, estudantes que espremiam os bolsos para pagar a noite ao lado de profissionais bem sucedidos da arquitetura, psicologia, jornalismo e artes. No IAB, minha nascente banda de jazz consolidou algo muito maior do que uma carreira musical: forjou a cumplicidade que resiste por incontáveis compassos.
Outro falecido, do qual nem a linda casa ficou para a história, é o bar e restaurante Lugar Comum. Tempo de se ir aos shows no Teatro Leopoldina, na Av. Independência e, depois, descer a pé à Rua Santo Antônio – todos para o mesmo Lugar, degustando a culinária brasileira ao som de música instrumental. Mais tarde, quando o Leopoldina se tornou o Teatro da OSPA, abriu nos altos da mesma casa a lendária Sala Jazz Tom Jobim, palco de músicos inesquecíveis. Hoje, parece que era sempre inverno quando cruzávamos a porta de vidro daquele sobrado – uma atmosfera mais européia do que tropical. Só não há mais piano ou franguinho à mineira para aquecer a alma.
Claro que falta espaço na crônica para descrever com detalhes minhas lápides. Contar das fotos que as ornamentam, falar dos nomes que ali se encontram. Não existe outro cemitério, porém, no qual se possa depositar flores em homenagem aos bares mortos: só a lembrança. E toda oração, para cada um de nós, será muito particular, fale de Porto Alegre, do Rio, Belo Horizonte ou Paris. Assim mesmo, sirvo-me de Campari com água tônica, limão e gelo. Depois, em pensamento, brindo com Paulo Mendes Campos e contigo, por todos os bares e cronistas que viveram e morreram por nós.
2 comentários:
Brindemos. Ao Lugar Comum, inclusive, com as suas cumbuquinhas quentinhas, queijos em cubinhos, e a Sala Jazz, no mezzanino ... Aflora em mim uma impressão que tinha, embora nunca tivesse verbalizado, ao lembrar do bar: pairava ali uma atmosfera de um bar de inverno, realmente.
Fui um frequentador eventual, mas tinha uma amiga jornalista, fissurada e verdadeira enciclopédia em matéria de jazz, que era assídua e apaixonada pela casa. Mais recentemente, quando fazia esse inventário dos bares, o Lugar Comum me ocorria sempre entre os primeiros da lista. Estranhamente, pra mim, pouca gente se lembra. Hoje moro na Santo Antônio, e quando passo por ali não consigo mais identificar a sua localização exata. Adicionei esse texto e, a partir de agora, ao citar o bar, vou recomendá-lo.
Estive no Vermelhinho - soube que era muito frequentado por Vinícius de Morais, provavelmente acompanhado por Paulo Mendes, já que eram grandes amigos -, na Cinelândia, perto do Amarelinho, que ficava ao lado da Câmara Municipal, em frente à Praça Foriano e a Biblioteca Nacional. Talvez estivesse fechado na época em que a crônica foi escrita, e tenha sido reaberto depois.
Armando,
O Vermelhinho era frequentado por todos eles! É citado por Rubem Braga, Vinícius, Paulo MC, Millor...
O Lugar Comum ficava quase defronte a rua André Puente (Poente?). Vivi, ainda bem jovem, ares de metrópole civilizada. Saudade!
Muito grato pelo comentário!
Abraços, Rubem
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