11.2.10

Número 356

O ÚLTIMO BREQUE

Há quem associe Carnaval com folia, alegria, fantasia. Hoje, caso voltasse a fazer versos carnavalescos, rimaria Carnaval com nostalgia. Sim, das festas de Momo, só me restaram saudade e lembranças. Também algumas boas surpresas, como descobrir que ainda sei inteiro o “Vai passar” do Chico Buarque, entre outros temas que sempre cantávamos na juventude. Pular quatro noites faz parte daquelas rotinas de outrora as quais pergunto a razão de ter, há longo tempo, abandonado. Não sendo a resposta muito fácil, ou indolor, me faço de surdo diante da questão – perdoe-me o trocadilho.

Porém (ah, porém), sempre chega fevereiro. Com ele, a onipresença do Carnaval nos veículos de comunicação. É o que basta para eu voltar 25, trinta anos e recordar alguns instantes em que o tempo deixava de fazer muito sentido – períodos de caráter imortal. Incrível era eu, com tão pouca idade, já ter a consciência de que fazia algo simples, porém sublime: gravava de modo perene na memória a sensação de transcendência da música e da dança. Sorvia com prazer indescritível a energia de um baile, de uma avenida, de centenas de almas transformando fantasias individuais em coletivas.

Neste quesito, posso me considerar um privilegiado. No bloco que construímos desde pequenos até taludos (nós em idade, o bloco em número de componentes), tínhamos um fac-símile de escola de samba: porta-bandeira, destaques, passistas, samba-enredo, bateria... Éramos bem recebidos na avenida e nos salões de clubes. E, momentos antes de qualquer apresentação, toda atenção convergia para mim, mão direita erguida empunhando a baqueta. Um lapso de silêncio e concentração, quase imperceptível para quem assistia à distância, antecedia o disparo de sons. Alertas, bloco e bateria aguardavam o rufar do meu repinique. Creia: é a mesma sensação de pressentir e segurar o inevitável orgasmo, que explodirá logo a seguir, com a potente marcação do primeiro surdo.

Pode parecer exagero de cronista dar tanta importância para um simples breque de repinique. Creditar uma elevação desproporcional à chamada de uma bateria e um protagonismo tolo para quem quer que o faça. Mas todos os que já praticaram algum esporte, seja vôlei, futebol ou tênis, sabem que o destino da bola é decidido nos momentos que antecedem o contato, quando do enquadramento corporal. Pois, igualmente, quem puxa o samba tem um único compasso para enquadrar música e músicos. Não pode falhar. Como se diz, pura adrenalina! E, ainda por cima, é preciso impor para todos aquilo que se costuma chamar de intenção: o ânimo que guiará ritmistas, passistas e público. Experimentar essa responsabilidade, chamando-a para si com o braço erguido, é uma das emoções que deixaram saudade. Sem dúvida, foi uma honra.

Talvez seja um pouco melancólico ficar recordando as passagens que, pela força e representatividade, tornaram-se eternas na vida da gente e nunca mais serão reprisadas. Mas nem tanto. Triste seria nada ter de bom para lembrar. Sim: quando o assunto é Carnaval, há quem só fale do pisão no pé sofrido em uma noite, da moreninha que lhe escapou no girar do salão, do amor que saiu abraçado em outro alguém, da ressaca depois de passar da medida na cerveja. Isso é circunstancial, acontece para todo mundo e não foi diferente comigo. Lamentável, doído de verdade, é saber que também puxei, no breque final de repinique, o encerramento de uma Era. Um caso raro em que o samba desandou logo depois do bloco se calar.

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