23.6.11

Um olhar por onde pisamos

Número 427
Rubem Penz
Estamos vivendo um tempo de contradições inexplicáveis. Por um lado, nada anda mais esvaziado em sentido do que nossas agremiações político-partidárias: desde a redemocratização brasileira, é cada vez mais frequente sobreviverem de alianças esquizofrênicas, ideários de ocasião, loteamento de cargos e polêmicas de fachada. Por outro lado, nunca antes tais estruturas detiveram tanto poder, espalhando seus tentáculos em todos os níveis.
Vicejam no noticiário rivalidades partidárias permeando eleições de entidades de classe e estudantis; em conselhos administrativos, tutelares ou consultivos; na escolha de diretorias em empresas públicas, autarquias e fundações; na indicação para tribunais, representações diplomáticas e econômicas... Enfim, os membros de uma sigla ou outra disputam cada milímetro de comando e de influência, ora acusando o oponente disso e daquilo, ora compondo acordos de mútuo benefício.
A última fronteira administrativa a ser cruzada pelos partidos talvez seja o condomínio onde moramos. Mas, no ritmo em que os vampiros avançam sobre o sangue social, nem as assembléias condominiais escaparão.
– Questão de ordem! – brada Oswaldo do 202. – Estamos faz meia hora discutindo o suposto cocô do dachshund da dona Zaida, enquanto questões fulcrais da administração esperam na pauta. Como o fato de nosso prestador de serviços de jardinagem ter contratos com todos os condomínios administrados pelo partido do síndico!
– O senhor diz isso porque não foi o seu Persa que acabou emporcalhado por um filho de pés sujos! – rebate Jurema do 901.
– Com licença, eu estou me dirigindo à mesa: não converso com os neo-liberais que moram nas coberturas.
– Só se for aqui nesse prédio! No Colinas Verdejantes, do outro lado da rua, três das quatro coberturas são habitadas por seus correligionários. Todos sabem!
– Por favor, gente! Vamos voltar ao assunto do momento – suplica o presidente da mesa. – Quem vota a favor de termos 12 câmeras vigiando as áreas internas, e que as imagens sirvam de prova para multar os donos de cães?
– Sem nenhum acréscimo à taxa condominial? – pergunta seu Jair do 605.
– Impossível – corrige o síndico. – Não temos previsão orçamentária para fazer frente a essa nova despesa legislativa.
– Revise os contratos superfaturados das floriculturas... – diz Oswaldo.
– Eu não vou ficar aqui escutando acusações sem provas de gente ligada à máfia dos elevadores! Com licença que estou perdendo a transmissão do jogo do meu time lá em casa.
– Pois eu espero que leve uma goleada, corrupto sem-vergonha!
– Secretário, faça constar na ata essa ofensa! E pode escrever aí que eu desafio a oposição a sentir o peso dos meus argumentos ali fora!
– Só se for agora!
(...)
– Putz, só um instante que eu pisei numa m...

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2 comentários:

Maria Lucia disse...

Ando me perguntando se estas mazelas da nossa jovem democracia acontecem só por aqui. Em geral, devido ao nosso crônico "complexo de vira-latas", tendemos a acredirar que "só mesmo no Brasil". Mas, será?
De qualquer forma, é uma m...
beijo
p.s. adorei a reunião do condomínio.

Rubem Penz disse...

Maria Lúcia, a resposta é, certamente, não. Talvez (tomara) nossa condição venha do fato de a democracia ser jovem, e não nossa. É a esperança de sairmos, um dia, da m... Nem que seja nas gerações de filhos e netos! Beijos, grato,
Rubem

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