Número 461
Rubem Penz
A Invenção de Hugo Cabret, baseado no livro homônimo de Brian Selznick e dirigido por Martin Scorsese, filme indicado para 11 categorias no Oscar de 2012, é uma obra imperdível por muitos motivos. É belo, divertido, tocante. Sem livrar a infância de sofrimento nem a maturidade de amargura, consegue ser um libelo de esperança. Como as peças de uma máquina, cada personagem cumpre sua função na trama. E tudo funciona muito bem!
Hugo (Asa Butterfield), órfão de um relojoeiro (Jude Law), vive na Paris do entre guerras. Habita as entranhas da estação férrea cumprindo o serviço do sumido tio alcoólatra: a manutenção dos diversos relógios do lugar. Alimenta-se do que consegue suprimir das bandejas das cafeterias, escapando do olhar vigilante do inspetor, interpretado com humor contido por Sacha Baron Cohen. O menino também rouba peças de uma pequena oficina de brinquedos para tentar consertar o único legado do pai: um misterioso autômato que sabe escrever. Conhece Isabelle (Chloe Moretz), sobrinha de Georges, dono da oficina – personagem que cresce muito na trama e é interpretado por Ben Kingsley. Hugo e Isabelle experimentam muitas aventuras.
Lá pelas tantas da trama, enquanto as crianças fogem da severa perseguição do inspetor e seu dobermann, Isabelle é levada para dentro das paredes do prédio, percorrendo os sinistros corredores que levam aos relógios e ao quarto do amigo. A menina pergunta como ele consegue viver sozinho e incógnito dentro da estação. Segundo Hugo, enquanto os relógios estiverem funcionando ninguém desconfiará de nada – por isso é tão zeloso em seu trabalho. Foi nessa hora que parei para pensar: quanto tempo, energia e cuidado dispensamos durante a vida para que nossos próprios relógios da estação estejam funcionando...
A parcela mais exposta de nós é justamente os ponteiros que procuramos deixar ao máximo ajustados. Por dentro de nossas paredes podemos estar famintos. Podemos estar solitários. Podemos estar sofrendo muitas dores e angústias. Em nossas entranhas pode existir o órfão que um inspetor persegue implacavelmente para encaminhar à instituição apresentada para nos abrigar (será?). Por isso, damos corda em nossos relógios com tanta aplicação – uma pequena desordem aparente põe em risco nossos segredos. Enquanto o relógio estiver funcionando, ensina Hugo, ninguém desconfiará de nada.
Mas nossa camada aparente também pode sufocar a magia de uma personalidade glamorosa. É o caso de Georges: exilado numa pequena oficina de brinquedos, a vítima predileta dos furtos de Hugo sufoca no tic-tac da monotonia um passado de muita inventividade e brilho. Acredita que será capaz de esconder de todos, principalmente de si mesmo, sua verdadeira história e vocação. Deixa que os rumores de sua morte se espalhem para assumir com a esposa Jeanne (Helen McCrory) uma expatriação voluntária. É um mago desencantado.
Longe de mim afirmar que isso, de sempre expor um comportamento ajustado como um relógio, seja algo errado ou condenável. Contudo, na trama de A Invenção de Hugo Cabret, e desconfio que também na vida, as relações só conseguem se constituir harmoniosas (algo diferente de ordenadas) quando a verdade vem à tona. Novas possibilidades se abrem apenas quando as relações de pertencimento se estabelecem e restabelecem; quando o que estava escondido se torna claro; quando, enfim, as dores são assumidas. No filme, até isso acontecer, Hugo e Georges viveram nas sombras de seus exatos ponteiros, alimentando unicamente a engrenagem das aparências.
Bom, caso você ainda não tenha assistido ao filme, está em cima da hora!
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