23.9.08

Número 284



VÔO DE TAXI

Foram muitas as implicações da entrada em vigor da nova lei brasileira versando sobre a combinação de álcool e direção que, leio agora, aumentará o valor das multas. Por ela ser draconiana, penalizando com severidade o motorista que apresentar o menor traço de alcoolemia, reflexos negativos foram sentidos nas casas noturnas – especialmente em bares e restaurantes. Outros setores, com destaque para os serviços de táxi, desta vez saíram ganhando. Os pronto-atendimentos agradeceram a maior tranqüilidade na madrugada, e isso merece ser comemorado: as vidas poupadas. Porém, na mesma proporção em que os cidadãos ao volante decidiram não beber, quem resolveu deixar o carro em casa se viu autorizado a enfiar o pé na jaca. E isso sempre traz conseqüências.

Táxis costumam andar ao rés-do-chão, se considerarmos assim também os viadutos e elevadas. Entretanto, na medida em que a noite avança, o trânsito se desobstrui e a fiscalização some, alguns voam, mesmo sendo isso apenas uma metáfora autorizada a cruzar sinais vermelhos. Porém, voando ou andando devagar, o certo é que os motoristas têm colhido passageiros cada vez mais altos. Obrigado a deixar o automóvel na garagem, um ou outro apela para o sistema da compensação: uma vez que já estou de castigo, o negócio é transgredir. E tome trago! Beber migra de possibilidade para obrigação. Beber muito, um ato de protesto. Se o whisky era para Vinícius de Moraes “o cão engarrafado”, agora ele passa a ser “o cara-pintada on the rocks”.

A coleta de passageiros que exageraram na bebida está exigindo adaptações aos motoristas de táxi. A primeira, e talvez mais importante, é uma acuidade auditiva que beira a decodificação de mensagens cifradas. Compreender o endereço indicado por alguém que enrola a língua é complicado e exige talento. Piora com nomes bem difíceis de pronunciar até mesmo em estado natural, justamente por não serem em português: Rua Comendador Rheingantz, Rua Zamenhoff, Praça Gustavo Langsch. Isso quando o pobre sabe para onde deseja ir. Exagero? Não, pois eu vivi uma situação dessas dando uma carona certa madrugada – história que prometi jamais transformar em crônica, apesar da extrema tentação.

Outra adaptação é desenvolver uma espécie de talento para a consultoria sentimental. Afinal, não faltarão alcoolizados dispostos a dividir com o motorista as dores do mundo. Taxistas insensíveis e maus conselheiros podem fazer subir as estatísticas de suicídios na cidade. Ou separações de casais, fugas de casa, crimes passionais, parricídios. Não convém atirar gasolina em quem já está de fogo, com o perdão do trocadilho. Por alguns instantes, o tempo exato que durar a corrida, quem está no volante será alçado ao patamar de melhor amigo, confidente, irmão mais velho. Doses equilibradas de paciência, ponderação e distanciamento (para não se tornar cúmplice de uma tragédia) farão parte dos serviços prestados.

Porém, a mais importante adequação que o táxi precisará sofrer com os tempos pós-lei de tolerância zero de álcool e direção, o aproximará definitivamente dos serviços de transporte aéreo. E não terá nada com as metáforas de vôos ou altura como sendo o estado etílico. Sob o risco de perder corridas sucedâneas na noite, saquinhos para vômito precisarão estar em local bem sinalizado e de fácil acesso ao passageiro, a exemplo do que acontece nos aviões. Isso, ou o motorista não terá a resposta correta para quando o passageiro perguntar: “Moço, onde eu coloco a pizza de calabresa?”

17.9.08

Número 283


O AMANTE DE LULI

O mal silencioso chamado ciúme nasce na cabeça, tal e qual o par de aspas (quanta ironia). Porém, há quem julgue que ele brota no coração. Consenso mesmo é o de que, para prosperar, ele se alimentará do adubo produzido pelas entranhas do ser. Assim, tanto faz se a pessoa amada dá ou não motivos para que o outro tenha ciúme: dependendo da profundidade de suas raízes, muito mais porcaria o sustentará. Este parecia ser o caso de Amadeu. Certo de ter sua bela mulher assediada, e desconfiado de que ela correspondia a tais apelos, decidiu agir.

Em segredo, Amadeu montou uma página em um site de relacionamento como sendo ele próprio a sua esposa. Luiza virou Luli, apelido íntimo dos tempos de namoro. Alimentou o perfil com fotos verdadeiras e fez questão de ser o mais fiel possível em todas as informações, exceção feita ao campo do estado civil, deixado em branco de propósito. Caprichou na descrição da mulher. Criou um e-mail específico para contatos, com o qual passou a trocar mensagens em nome dela. Luli fez amizades instantâneas e, de modo incriminatório, logo atraiu um suposto ex-colega de escola no grupo. Rogério, o seu nome. Ele a chamou de Lu, demonstrando ter bastante intimidade. Luli, digitou Amadeu: agora sou Luli.

O homem tratou de colher informações sobre a relação de Rogério e Luiza com a própria, enquanto aproveitavam o domingo de sol para caminhar no parque. Ele era um menino muito doce, segundo lembrava, mas um pouco tímido. A amizade entre os dois ficara prejudicada com a partida da família do rapaz para Pernambuco. Uma pena.

– Mas de onde você conhece o Rogério, afinal? – quis saber Luiza.

– Ah, sabe como são essas coisas... – disse Amadeu de modo evasivo – quando menos se espera aparece alguém conhecido.

De volta para a sala de bate-papos virtual, Luli perguntou se a família de Rogério continuava em Recife. Retornaram, é? Veja só: moravam na mesma cidade outra vez. Ah, desde os tempos da faculdade? Nos encontramos na época? Nossa, é mesmo, que cabeça! E no fim, você é? Urologista... Meu Deus, tem gosto para tudo! E por que ainda solteiro? Gay, confessa! Por que não? Imagina, a julgar pela foto, e por ser tão bem sucedido, duvido que faltassem interessadas. Eu? Eu não quero falar sobre isso, não agora. Gosto de ser secretária executiva: menos glamouroso do que parece, mas o salário compensa. Trilingüe – não leu meu perfil? Adorou a foto, é... Bobo! Vou trocá-la, então!

Aos poucos as suspeitas de Amadeu se confirmavam: Luiza fazia amizades muito facilmente para jamais ter um caso extraconjugal. Vivia cercada de homens, também. E agora esse tal de Rogério, aparecido por encanto dos tempos de escola. Precisava saber até onde isso poderia chegar. Permitiu que a troca de mensagens entre Luli e Rogério rumasse para o lado afetivo, deu linha ao Casanova do ginásio e puxou o anzol: marcaram o encontro em um motel.

No dia e hora certa armou campana defronte ao local escolhido. Desastre! O tal Rogério apareceu de verdade, dando materialidade ao ciúme que todos diziam infundado. Ele parecia bem mais forte do que sugeria a foto que mandara pela internet. Seu carro, também, era um espetáculo. Quisera Amadeu ter dinheiro para dirigir um desses... Ainda por cima era paciente, pois entrara pontualmente e aguardava por Luli há mais de meia hora. Quanto mais o tempo passava, mais nojo sentia da mulher: o que ele estaria esperando fazer com ela? Aposto em coisas que Luiza se nega a fazer em casa, delirava num misto de raiva e excitação. E, acariciando o cano de sua arma, planejava em voz alta:

– Mas uma hora o calhorda vai sair por aquela porta. Aí quero ver o quanto ele é homem com meu trinta e oito enfiado na boca!

16.9.08

CONVITE

CONVITE

“Rubem Penz tem aquele talento especial para transfigurar os pequenos acontecimentos do cotidiano em boa, muito boa literatura. Os textos trazem humor, delicadeza, compaixão, contundência: uma espécie de vida em voz alta, como diria outro Rubem, o Braga.”

Valesca de Assis – escritora.

O que:
Autógrafos de O Y da questão e outras crônicas, de Rubem Penz, Literalis
Onde:
Livraria Cultura Market Place Shopping Center, Av. Dr. Chucri Zaidan, 902, SP
Quando:
29/09/2008, segunda-feira, 19h

10.9.08

Número 282

QUARTO 208

É a quarta vez que chego ao mesmo hotel. Também a última, ao menos por um tempo indeterminado: finda o compromisso que tenho na cidade. Quando da primeira vez, me indicaram na recepção o quarto 208. Na semana seguinte, seria o 109. Perguntei se o 208 estava vago e, após a confirmação, pedi para ocupá-lo. Depois, quiseram me acomodar no 209 por duas vezes, mas preferi repousar no mesmo quarto do primeiro dia. Aliás, já vinha pensando nisso no caminho: estando livre, quero ficar no 208. Numerologia? Superstição? Pior... Acho que aprecio uma certa dose de rotina.

Sobre o 208: ao abrir a porta, entramos em um pequeno hall com a porta do banheiro na frente e o quarto à esquerda. Sua simplicidade é acolhedora, o banho bem quente e as toalhas macias. A cama de casal tem a cabeceira almofadada em tecido sintético marrom que imita couro, criados mudos com duas gavetas e lâmpadas de cabeceira que não funcionam. Defronte, o roupeiro de duas portas é contíguo com uma estante contendo prateleiras, gavetas e a prancheta embutida que me serve de apoio para escrever. Completam as acomodações uma TV de 20 polegadas com controle remoto, um ar condicionado que nunca liguei, um frigobar que desligo para poder dormir e uma ampla janela para o jardim interno. O que vi neste quarto para querer voltar? A chance de, na segunda vez, conhecê-lo a ponto de circular até no escuro (especialmente porque as lâmpadas de cabeceira...).

Há quem durma bem em qualquer lugar ou circunstância. Eu, não. Estranho os ruídos, as sombras, a orientação da cama, a altura do travesseiro e por aí vai. Sem frescura, não me deixo abater – apenas acordo cinco vezes durante a noite. Ou 42 vezes, se não desligo o frigobar – esse eletrodoméstico costuma disparar (e me despertar) a cada dez minutos. Mas eventuais desconfortos reduzem muito quando consigo repetir o aposento do hotel. Qualquer quarto, se volto duas ou mais vezes, passa a ser um pouco meu. Pois é...

Essa necessidade de apropriar-se de um local e de uma rotina pode até estar me prejudicando para além do sono. Por exemplo, nesse mesmo hotel, quem sabe o quarto 109 não é equipado com uma TV de 29 polegadas? Ou o 209, que tem uma varandinha, não é maior? Vai ver que, de todas as lâmpadas de cabeceira, só essas duas estão estragadas... (Incrível: em quatro semanas, nem eu, nem ninguém reclamou disso!) De fato, nenhum quarto supostamente melhor me daria conforto igual ao 208 que pude repetir. Metade pela descrença em acomodações muito superiores no hotel, metade pelo bem-estar do espaço conhecido.

Tal assunto sobre pernoites em hotéis, quartos iguais ou diferentes, lâmpadas e sono inconstante deve abrigar alguma boa metáfora escondida sob as cobertas. Ou, à luz da psicanálise, dizer algo definitivo a meu respeito e das pessoas que sentem o mesmo. Na velha e boa filosofia de botequim, poderia indicar que sou um camarada fiel, ou inseguro, maniático, ficando velho. Ou meio maricas, até. Eu mesmo fiquei cismado a ponto de dedicar uma crônica ao fato. E, graças ao texto – o qual escrevo aqui, agora, dentro do 208 –, decidi mudar de atitude! Vou deixar de ser assim conformado. Termino esse parágrafo, fecho o bloco, oculto a prancheta embutida e tomo uma iniciativa mais ousada. Sim: enquanto é tempo, pois nem abri a bagagem. Vou pedir para que me troquem as malditas luminárias de cabeceira!


Pos-scriptum: retornei no ônibus da madrugada, deixando o hotel ainda de dia. No fim, tomei uma ducha e esqueci de pedir novas luminárias. Na próxima viagem, caso dêem para você as chaves de um quarto 208, verifique as lâmpadas antes de mais nada.

3.9.08

Número 281

A“SE” / D“SE”

As teorias científicas são formuladas a partir de uma ou mais hipóteses. Depois, uma série de experimentos terá curso em busca das conclusões – as tais que podem tanto comprovar quanto desmentir as hipóteses (perdoem a simplificação). O problema é que muitos delírios também seguem o mesmo caminho, com uma sutil diferença: partem de uma hipótese impossível de ser comprovada – ou desmentida – e oferecem uma conclusão. Os casos mais corriqueiros deste fenômeno acontecem quando alguém nos diz: “mas se eu não tivesse feito tal coisa...” e, a seguir, apresenta uma conclusão. Pergunto: como podemos comprovar que alguma coisa aconteceria baseado em algo que não aconteceu? Ou mesmo desmentir? Aí que mora o problema.

Desconfio que as pessoas bem sucedidas na vida – aqui no sentido amplo, não restrito ao fator monetário – habitam o universo que chamarei de Antes do Se (A“SE”). Este lugar, que na verdade está mais para um tempo, antecede as hipóteses. Quando chegam a formular um “se”, ele está ligado a uma ação futura: “mas, e se eu der um beijo nela?”. Depois do beijo, caso venha o tapa, a conclusão será de que não foi uma boa idéia. Porém, na hipótese de ser correspondido, o beijo mostrará que ele não era o único interessado. Quem costuma projetar suas hipóteses para o futuro pode até dar com os burros n’água, mas sempre terá uma vida de certezas.

No segundo grupo, localizado em Depois do Se (D“SE”), estão os que tendem a ter a vida empacada. Como se colocam adiante das hipóteses, passam o tempo todo especulando sobre o que poderia ter sido, ao invés de sobre o que será. Para ficar no mesmo exemplo do parágrafo anterior, são as pessoas que passam meses (anos) imaginando o que teria acontecido “se eu tivesse dado um beijo nela” – isso depois de a moça ter deixado o recinto sem nem desconfiar que houvera tal plano. Na realidade, pouco importará a projeção de um casamento feliz ou a morte em um crime passional imposto pelo ex-namorado: sobre o que não aconteceu, todo raciocínio é delirante. Quem vive D“SE”, só tem as dúvidas para se agarrar.

Este tema me ocorreu ao assistir um debate esportivo na TV. Nele, a afirmação delirante de que “se o Bernardinho tivesse convocado o Ricardinho (levantador), o vôlei brasileiro não teria perdido a medalha de ouro na final olímpica de Pequim”. Muito antes de isso ser um enorme desrespeito com os atletas que lutaram muito para conquistar uma medalha de prata, é, no mínimo, uma falácia. Este “se”, referindo-se ao que não aconteceu, pode servir de base para todas as conclusões (inclusive a de que o Brasil seria eliminado na primeira fase, devido aos problemas de relacionamento no vestiário). Os treinadores, assim como os cientistas, formulam suas hipóteses antes dos das partidas e as põem em prática. Se não alcançarem os resultados, partem para novas possibilidades. Mas nem mesmo essas últimas serão garantia de nada – no máximo trarão uma maior probabilidade de acerto.

Imaginar que tudo poderia ser melhor caso outras decisões tivessem sido tomadas, ou outra seqüência de fatos ocorressem, pode até parecer reconfortante, mas, no caso, não passa de especulação mal intencionada. Pior: paralisa o sujeito no passado e transforma o presente em uma eterna frustração. Em tempo, lanço uma hipótese no estilo A“SE”: se nosso país continuar escutando comentaristas dando opiniões sobre o que poderia ter sido – mas não foi – o esporte nacional corre o risco de não ver fechada nem mesmo a ferida aberta na Copa do Mundo de 1950.

27.8.08

Número 280

Olimpíadas de A a Z

Terminadas as Olimpíadas de Pequim, começam os balanços. E as cobranças. E as desculpas. Alguma lavação de uniforme em público, cifras vindo à tona, esperança submergindo... Nunca tive ilusões de medalhas em quantidade: os países colhem os resultados que plantam em políticas educacionais e esportivas de base – com o adubo da continuidade – e esse não é o caso brasileiro. Aqui, longo prazo é a próxima eleição, e olhe lá... Porém, antes que o cheiro de pólvora dos fogos da despedida se dissipe, vamos fazer um balanço bem despretensioso da festa do esporte:

A – Alívio. Isso é o que sentem os que não gostam de atletismo, natação, tiro ao alvo, hóquei, handebol etc, e só tinham essas opções para assistir na TV.
B – Boxe sem medalhas do ouro para Cuba: sinal mais evidente de o país de Fidel estar nocauteado em pé.
C – Cielo, César. E já pensou se o nome dele fosse César Acqua!?
D – Dunga e a maldição do apelido. Ao terminar o jogo contra a Argentina, teria dito: Ah, não!
E – Etiópia, junto com Belarus, Quênia e Jamaica – países inexpressivos adiante do Brasil no quadro de medalhas. Mas isso não quer dizer nada...
F – Futebol olímpico. Piada que, faz tempo, perdeu a graça.
G – Galvão Bueno e a esperança nacional: que se percam as malas na volta para o Brasil.
H – Hipismo. Esporte com o maior número de casos de doping na Olimpíada. Acho que andaram usando doses cavalares.
I – Iguais. São assim os chineses: todos conquistando ouro.
J – Jornalistas. Em Pequim, estavam em maior número do que os atletas!
L – Liberdade ao molde chinês: pode tudo, menos o que o governo proíbe.
M – Maurren Maggi. Agora, talvez aproveite o impulso e salte para as páginas da Playboy para cair na grana!
N – Ninho do Pássaro. Obra do arquiteto chinês Jon Dee Balo.
O – Orelha do Phelps. Se o tecido do maiô faz diferença, ninguém vai estudar o efeito delas na performance? Para mim, é caso de doping morfológico.
P – Pedro Dias, judoca português que ganhou a luta de João Derly. Merecia medalha de ouro em imbecilidade ao noticiar para o mundo que é corno.
Q – Quatro, na China, é o número do azar. Para o Ronaldão, é o 24. Para a Argentina, o 34: sua posição no quadro geral – um pequeno consolo...
R – Rio 2016. Diz que o Zeca Pagodinho cuidaria do fogo olímpico.
S – Satisfeito. Conceito do Presidente ao ser perguntado sobre o desempenho do Brasil logo após o almoço.
T – Tombo. Definição: desequilíbrio seguido de queda e muito, muito choro.
U – Usain Bolt. O jamaicano bateu os recordes dos 100, 200 e de irreverência.
V – Vara e suas variações: ao invés de ajudar a atleta a varar o obstáculo, sumiu, deixando Fabiana varada.
X – Xi Jinping: vice-presidente da China. Xi Jinpong, seu oponente no tênis de mesa.
Y – Yelena Isinbayeva. A mais perfeita harmonia entre mulher e salto alto!
Z – Zapping. Esporte praticado por quem tem TV por assinatura e não quis perder nada na Olimpíada.

20.8.08

Número 279

REGRAS DO JOGO *

A pedra afia a tesoura. O papel embala a pedra. A tesoura corta o papel. Conte até três e, mão estendida, revele-se diante do oponente. A má escolha não garantirá sua derrota. Nem a boa levará à vitória. Sim: bastam três variáveis para demonstrar que o acaso rege o destino. Isso é o que acontece com as escolhas que fazemos na vida.

Que pedra estará em jogo? A pedra que afia e também fere, recorda e constrói. Aquela que, de um momento para o outro, abandona a inércia e voa, impulsionada pelo afã do vingador insuspeitado. Pedra que é obstáculo, silêncio, mas que pode manter abertos os caminhos. Pouso seguro para recordar o passado e peso terrível a se carregar por toda uma vida. Pode ser preciosa e não mudar o destino, nem comprar felicidade. Tornar-se lembrança do amor que não se concretizou, ou do que jamais poderá existir. E pode ser arma fatal, na violência real ou imaginada.

Que papéis estarão em jogo? O papel que embala e também ilude, embeleza, enternece. Não suporta o peso de um gesto mais ríspido, mas guarda e reproduz vidas inteiras. É o desejo que separa o filho de sua mãe, ou o que une dois amantes em sua arte singular. A folha que registra o vazio cronometrado da existência ou o milagre de uma vida repleta de impossibilidades. O bilhete que a dor enegreceu, a mensagem jamais revelada, a notícia de morte oculta na frieza dos diagnósticos. Os papéis todos que a vida nos impõe, descobre ou liberta.

Que tesoura estará em jogo? A tesoura que corta e salva, aborta e contorna. Enquanto uma lâmina acaricia a face da outra – tão íntimas e letais –, partem o que entre elas se intromete. A tesoura que rompe as ilusões serve também para dar fim ao sofrimento. Ela oferece ao poeta o desfecho ferino e à prostituta, a vingança sutil. Seu corte preciso parece ceifar a vida que se vai precocemente, mas é instrumento que não se guia por si – sempre haverá uma mão a lhe indicar a liberdade ou a tirania.

Entre pedra, papel e tesoura, eu e mais quatorze colegas escolhemos escrever. Contamos até três e, almas estendidas, revelamo-nos uns aos outros durante a Oficina 38. Perdemos um tanto de ingenuidade. Ganhamos um pouco mais de experiência. Mas, tal escolha – cursar a Oficina de Criação Literária da PUCRS – não nos garantiu vitórias ou derrotas: habilitou-nos ao jogo. Que jogo? Pode ser aquele que começou em dois semestres do ano passado e agora apresentamos nas páginas da Antologia Pedra, papel e tesoura – Contos de Oficina 38.

A Antologia – organizada por Luiz Antonio de Assis Brasil e editada pela Bestiário – terá seu lançamento no dia 26 de agosto em Porto Alegre, no Cult Pub (Comendador Caminha, 348, ao lado do Parque Moinhos de Vento), às 19h30min. Partindo dos sentidos literais e simbólicos dos elementos, cada autor foi provocado a escrever três contos inéditos. O resultado não poderia ser mais surpreendente: um livro em que quinze escritores de vozes literárias distintas alcançam uma combinação ao mesmo tempo multiforme e coesa. Uma obra que pode ser lida do começo ao final ou pinçando-se cada autor, sem que a proposta original se perca. Apareça lá! Conte até três e estenda os olhos: o leitor é parte da regra do jogo.

*Crônica adaptada do texto de apresentação do livro Pedra, papel e tesoura, Contos de Oficina 38. O convite logo abaixo é para você!

CONVITE!


14.8.08

Número 278

SEM TEMPO A PERDER

“Ainda assim acredito ser possível reunirmo-nos
Tempo Tempo Tempo Tempo num outro nível de vínculo
Tempo Tempo Tempo Tempo”

Caetano Veloso


Eusébio não gostava de perder tempo. Por isso, deixou de ir ao supermercado: mandava a lista de compras para o gerente via computador e, também assim, pagava a fatura. Ganhava os quinze minutos de ida, os vinte de passeios pelos corredores, os cinco da fila do caixa e os quinze minutos de volta. Contando os deslocamentos entre o apartamento e a garagem, a soma alcançava uma hora.

Érika também não gostava de perder tempo. Por isso, jamais almoçava em restaurantes: pedia para um colega de escritório trazer um lanche quando voltasse ao trabalho, mandando o dinheiro com ele. Ganhava os quinze minutos de ida, os vinte diante da mesa de refeição, os cinco na fila do caixa e os quinze minutos de volta. Contando os deslocamentos entre seu cubículo e a portaria do prédio, a soma alcançava uma hora.

Escobar era outro que não gostava de perder tempo. Por isso, parou de freqüentar o estádio de futebol: assinou um pacote de TV que contemplava todos os campeonatos da primeira, segunda e terceira divisões nacionais – fora os certames estrangeiros. Ganhava os quinze minutos de ida, os quinze de volta e, na melhor das hipóteses (jogo de meio de semana no início do campeonato regional), os trinta minutos de antecedência para sentar-se em um bom lugar da arquibancada. Logo, a soma mínima alcançava uma hora.

Sem falar em Elisa, que odiava perder seu precioso tempo. Por isso, abandonou o hábito de ir ao cinema: passou a alugar filmes na volta do trabalho, deixando-os na caixa de coleta da locadora na manhã seguinte. Ganhava os quinze minutos de ida, os cinco procurando uma vaga no estacionamento, outros cinco entre o carro e a fila do ticket, mais os quinze minutos de volta. Contando o tempo de segurança para entrar no shopping com a antecedência necessária para garantir o ingresso, a soma alcançava uma hora.

Egon e Edna, ao contrário, não viam tantas vantagens assim em aproveitar as facilidades da vida moderna. Muito menos se deixavam cair na tentação de virar workaholics, vidiotas ou ermitões. Conheceram-se diante de uma prateleira refrigerada de iogurtes, quando trocaram impressões sobre uma ou outra marca, sorrisos e números de telefone. Passaram a almoçar juntos de vez em quando, aproveitando que não trabalhavam muito distante um do outro. Descobriram afinidades insuspeitas, como o gosto por filmes de ação e cores clubísticas. Viram a amizade evoluir para uma paixão tranqüila e acabaram juntando as escovas de dentes.

Um dia, enquanto o casal aproveitava para tomar um café antes da sessão de cinema, Egon falou que sentia saudade do pessoal com quem costumava se encontrar. Tinha dois grandes amigos: Escobar e Eusébio, que nunca mais vira. Parecia que nem moravam na mesma cidade. Edna também fazia parte de uma turma muito ativa que, com o tempo, foi perdendo o contato. Ressentia-se da distância com Elisa e Érika, parceiras inseparáveis outrora. Só tinha notícias delas em mensagens de Natal e aniversário.

Egon e Edna repudiaram a idéia de perder os velhos amigos de vista e decidiram tomar a iniciativa. Tentaram marcar um encontro, um jantar, um cineminha que fosse. Deu em nada: eles outros alegavam uma eterna falta de tempo. Muita insistência e poucos resultados depois, o casal percebeu que a proposta era completamente inviável. Por fim, desistiram. Afinal, ninguém nessa história parece gostar de perder seu tempo.

11.8.08

Convite!

Com orgulho, sou um dos 15 excelentes autores que autografam dia 26 de agosto. E convido a todos para prestigiarem nosso trabalho.
Lançamento do livro:
Pedra, papel e tesoura -
Contos de Oficina 38

Como inovar em uma trigésima oitava Antologia? Este foi o desafio auto-imposto pelos componentes da Oficina de Criação Literária da PUCRS de 2007, sob orientação de Luiz Antonio de Assis Brasil. E a difícil resposta surgiu brincando: pedra, papel e tesoura. Partindo dos sentidos literais e simbólicos destes elementos, cada autor foi provocado a escrever três contos inéditos. O resultado não poderia ser mais surpreendente: um livro em que quinze escritores de vozes literárias distintas alcançam uma combinação ao mesmo tempo multiforme e coesa. Uma obra que pode ser lida do começo ao final ou pinçando cada autor, sem que o sentido original se perca. Entre pedra, papel e tesoura, estes jovens autores escolheram escrever. E o leitor é parte inseparável do jogo.

7.8.08

Número 277

ADVERSÁRIOS

Os Jogos Olímpicos da Era Moderna podem ser considerados uma bela iniciativa de congraçamento e paz. Porém, é evidente que todo esporte carrega no íntimo uma condição de simulacro de guerra, uma pequena batalha simbólica, regrada e controlada, funcionando como vacina contra nosso pendor beligerante. Não fosse verdade, finda a competição, não teríamos vencidos e vencedores. Ou mesmo homens para serem festejados como heróis.

Assim, de modo consciente e planejado, países com ambição hegemônica utilizam-se da festa olímpica como plataforma de propaganda político-ideológica, cultural e, principalmente, econômica. Contabilizam suas vitórias nas pistas, raias e estádios na soma de pontos para o controle da ordem mundial. Medem suas forças homem a homem, transformando o quadro de medalhas em avais para suas posições de dominação sobre outros territórios e mentes. E, claro, faturam os preciosos segundos de exposição global de suas cores, marcas e conceitos. Vencem no esporte como vencem na vida.

Vejamos o caso deste ano, com a China recebendo a oportunidade de ser país-sede. Desde a vitória em sua indicação, ou mesmo antes, o governo chinês trata a oportunidade como uma ferramenta capaz de inserir o país no seleto grupo das superpotências econômicas mundiais. Faz de tudo para provar às demais nações que o gigante, outrora adormecido, despertou outra vez para sua vocação imperial. Lembrando um pouco a intenção nazista dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, ela associa as esperadas vitórias de seus atletas com o futuro êxito nos campos da economia e política mundial.

Mas utilizar o sucesso esportivo como modelo de prosperidade não é algo exclusivo das grandes potências. Basta olhar para o exemplo de Cuba: o pequeno conjunto de ilhas caribenhas transforma seus atletas em garotos-propaganda de sua política social. Mais: o faz com um balanço positivo inegável – desconsiderando, aqui, juízos de valor sobre sua forma de governo. Ao comparar o potencial aporte de riquezas (materiais, humanas e econômicas) de Cuba com o Brasil, nossa tradicional posição hierárquica no quadro de medalhas se torna, no mínimo, vergonhosa.

Por falar em Brasil, ou em sua trajetória no ranking de pódios olímpicos, suponho que, de quatro em quatro anos, perdemos a oportunidade de olharmo-nos no espelho para refletir sobre a pátria amada, idolatrada, salve e salve. Vivendo em um país de dimensões continentais, caldeirão de raças, orgulhoso de sua capacidade criativa de seus ricos mananciais, será que nunca desconfiamos de algo errado no pífio saldo de louros alcançados através dos tempos? Tal imagem negativa é percebida de modo límpido por outras nações. Um recado claro de como tratamos o povo e suas potencialidades. Ou do tempo que falta para deixarmos de ser uma nação subdesenvolvida.

Não quero aqui desqualificar nossos atletas. Ao contrário, para habilitar-se à luta por medalhas de ouro, outras guerras já precisaram vencer: a falta de política esportiva de base e os parcos investimentos em infraestrutura e capital humano. O pior é que os esportistas nem se queixam, pois estão em pé de igualdade com as áreas da educação, da cultura, da pesquisa etc. Depois, caso cheguem ao topo, ainda precisarão lidar com a culpa incrustada por demagogos de plantão, para os quais a elite esportiva nada merece de apoio de uma nação onde há fome – gente que odeia (teme) o sucesso.

Em 2008, a China estará mostrando ao mundo sua pujança. Outros povos desfilarão sua tradicional competência e supremacia. E, nesta guerra metafórica, o Brasil se apresentará com os melhores soldados – na maioria, atletas que ultrapassaram toda a sorte de dificuldades. Dentre eles, alguns poucos heróis vencerão suas batalhas na base da superação. No grito. Sem balas na agulha. Depois, ao retornar com medalha no peito, posarão sorridentes para fotos ao lado dos primeiros adversários que precisaram superar: nossos governantes.

31.7.08

Número 276

PARA ALÉM DA LEMBRANÇA

Ninguém estranha quando um velho não consegue mais jogar futebol. Raros são os idosos firmes no campo, atentos e ágeis. Ninguém estranha quando velhos adotam o táxi como meio de locomoção. Aliás, todos consideram isso até prudente, pois não querem ver a integridade física em risco diante de uma diminuição nos reflexos. Boa surpresa é quando alguém com cinqüenta anos de carteira de motorista segue uma rotina intacta ao volante. Ninguém estranha quando um velho pede ajuda para um moço carregar o bujão de gás ou as compras do supermercado. Difícil é uma pessoa sustentar o tônus muscular a ponto de suportar carga sem a menor seqüela, quando os anos já lhe pesam tanto.

Ninguém estranha quando um velho procura diminuir sua intensidade de trabalho, ou mesmo optar pela aposentadoria. Esse direito, respaldado por lei, muitas vezes é imposto pela saúde – tal fragilidade, também, não é algo de se estranhar. Diferente, sob certo aspecto até louvável, é testemunhar um velho trabalhando sem parar até o último de seus dias. Ninguém estranha quando um velho deixa o apartamento que está localizado quatro lances acima do solo para morar no andar térreo. Ou em um prédio com elevador. Espantoso é o velho arriscar um tombo por pura teimosia e ninguém fazer nada a respeito.

Ninguém estranha quando um velho prepara sua sucessão nos negócios. Ou quando ingere quatro comprimidos por dia para equilibrar o organismo; ou quando joga damas por horas a fio; ou mesmo quando pula a página do obituário por preferir a ignorância à desilusão. Ninguém estranha quando um velho chora à toa. Estranhamento causa o idoso que, nem depois de uma vida inteira, se dá o direito à livre expressão das emoções.

Dito isso, por qual razão estranhamos tanto quando um velho se repete o tempo inteiro? Ou se, simples e definitivamente, não nos reconhece no primeiro olhar? Ou, nos reconhecendo, teima em admitir que nos tornamos adultos? Ou nos confunde com o médico, quando somos o amigo, sobrinho ou filho? Por que estranhamos quando as gavetas da memória perdem a etiqueta indicativa dos eventos, causando tanta confusão? O cérebro não será merecedor da mesma complacência que imputamos aos reflexos, à força muscular, à resistência das articulações e do esqueleto? É um crime assim tão grave se tornar um esquecido?

Estranho mesmo deveria ser aquele jovem capaz de jogar futebol, de subir quatro pavimentos pulando os degraus de dois em dois, de comandar várias empresas ao mesmo tempo, de conduzir um automóvel por muitas horas, de citar com precisão pessoas e fatos remotos ou atuais, enfim, no auge de suas faculdades físicas e mentais, esquecer-se de um velho querido. Um velho que não mais poderá procurar por ele, oprimido pela limitação física. Um homem que, um dia, quando brilhante, sempre lembrou dele e, quem sabe, o ajudou a tornar-se tão capaz.

Todos temos ao menos um velho para lembrar de fazer-lhe uma visitinha, quando não vários deles. Caso não façamos, nem que seja uma vez ou outra – quando a saudade da infância ou dos ensinamentos doer fundo –, estaremos sendo os verdadeiros esquecidos dessa crônica. Mesmo que aconteça de não sermos reconhecido pelo velhinho de primeira, ou sermos confundidos com outro, vale muito esta suave pena. Nada é mais gratificante do que ver um sorriso largo na despedida e escutar as palavras sinceras:

– Obrigado por ter lembrado de mim!

Como esquecer?

24.7.08

Número 275

$EPARAÇÕE$

Desde que foi instituído, em 1977, o índice de divórcios cresceu mais de 50% no Brasil. Este percentual ganharia ainda mais vitamina se fossem computadas as separações de casais que, mesmo tendo vivido em situação matrimonial, romperam depois de alguns pares de anos sem jamais terem pisado em um cartório. Os fatores que contribuíram para este fenômeno são muitos e de toda ordem. Mas, diante do vultoso número de ocorrências, se acontecesse de todos os casais de hoje adotarem o “até que a morte os separe” ou, pior, o “viveram felizes para sempre”, quebraria a economia nacional.

Sei que separação, mesmo quando consensual, é um negócio terrível. Cada qual sai juntando os cacos dos ideais quebrados ao despencar da prateleira elevadíssima das expectativas amorosas. O que me ocorreu agora, lendo uma despretensiosa e divertida reportagem de revista masculina, é que, além de dramáticas, as separações são geradoras de ótimos negócios. Os advogados sabem muito bem disso. Porém, a cadeia econômica que se beneficia do fato vai muito além das varas de família.

Instalada a crise em um casal de classe média, a primeira categoria que se inscreve para auferir lucros é a dos psicólogos. (Sim, sim: tem outra turma que ganha dinheiro antes ainda, quando o casal fica de mal. Mas essa não passa recibo.) Nos consultórios, cônjuges e filhos se preparam para o que está por vir, elaboram perdas, projetam convivências. Dependendo da taxa de êxito alcançada pelos psicólogos, os laboratórios virão a faturar com produtos diferentes: em um extremo, antidepressivos. No outro, preservativos.

Marcada a data, chega a vez do setor imobiliário entrar na roda: é preciso comprar ou alugar um apartamento novo; vender a casa para ser transformada em dois apartamentos; vender do apartamento para virar um carro e um JK, essas coisas. Empresa de mudança, arquitetos, pedreiros, pintores, eletricistas, encanadores e diaristas são os próximos a escutar o telefone tocar – isso quando a mudança não acontece para um apart-hotel.

Passada esta fase, está na hora das lojas e indústrias da chamada “linha branca” e moveleira tirar sua lasquinha: no kit básico está o fogão, geladeira, máquina de lavar roupa e louça; cama, mesa com cadeiras, armários e sofá. Mas não pára por aí: lençóis, toalhas, panelas, pratos, talheres, copos e – importante! – taças. Lustres, cortinas, tapetes... Nossa! Quanta coisa se precisa para uma nova casa!

Antes de voltar ao setor de serviços, vamos para os últimos objetos indispensáveis que me ocorrem: muita roupa nova, óculos mais modernos, sapatos, maquiagem, lingeries, cuecas com o elástico funcionando e tudo o mais que possa devolver um pouco de auto-estima. Ou, no mínimo, disfarçar o estado deplorável.

E, enfim, chegamos na gama de novos serviços. (Não, não falarei daqueles sugeridos no início, pois para eles não se passa recibo.) Academias de ginástica lucram na hora – com sorte, logo antecedidas do cardiologista. Cirurgiões plásticos, esteticistas, endocrinologistas – para uma dieta responsável –, garçons, motoristas de táxi, redes de motéis, agências de viagens e um sem-número de profissionais esperam com avidez pela dissolução matrimonial, de olho na mudança de comportamento do ex-cônjuge.

Não ouso afirmar que casais casados não se enfeitam, cuidam-se, namoram, viajam, renovam a casa ou precisam se tratar. Só acho que um divorciozinho dispara uma série de conseqüências que tendem a movimentar a economia. Daqui a pouco, vão culpar quem casou uma só vez pela queda no mercado de ações. Além de estar traumatizando as crianças.

18.7.08

Número 274

ENSAIO DE SACADA – UMA SERENATA INVERTIDA

A estrutura tradicional da serenata é bastante conhecida: um grupo de músicos se reúne logo abaixo de uma sacada, varanda ou janela para entoar suas cantigas até que a dona da casa – ou sua filha, depende – resolva dar o ar da graça. Depois, diante da dama, e tendo toda a vizinhança desperta e encantada para servir de testemunha, o patrocinador das melodias declara sua grande paixão. Porém, mantendo o tripé música/audiência/motivação, participei de muitas serenatas mais ou menos alternativas, por assim dizer.

Por exemplo, nos veraneios da juventude, das inúmeras serenatas que promovemos em turma, nem todas tinham finalidades assim tão nobres como o amor. Com freqüência arrebanhávamos violão, pandeiro, surdo e tamborim para visitar as casas conhecidas, na alta madrugada, pelo simples prazer de tocar até que as luzes estivessem acesas. Depois, convidávamos o morador a se juntar ao grupo e seguir adiante. Era isso, ou “liberar” um pouco de bebida para os músicos e cantores. Até rolava uma sutil chantagem, cantada com os versos de Antônio Carlos e Jocafi levemente alterados: “Oh dona da casa/ Por Nossa Senhora/ Dai-me o que beber/ Senão não vou embora!” A noite era só alegria. A ressaca da manhã seguinte, por sua vez, uma tristeza. (Alerta: ninguém precisava pegar o volante de um carro!)

Por falar em chantagem, e já abandonando a sutileza, nas noites que antecediam o carnaval recorríamos ao degrau seguinte: o da extorsão. Com a desculpa de afinar a bateria, uma mini-escola de samba vagava pela praia fazendo serenatas em altos decibéis, acordando os amigos para trocar nosso silêncio por uma modesta contribuição em dinheiro. Os fins eram nobres: fundos aplicados na infra-estrutura do bloco carnavalesco. Pensando bem, éramos uns chatos que perturbavam o sossego alheio em proveito próprio. Estranho foi só um de nós ter se tornado político – a “escola” de samba dava a lição tão difundida nas campanhas eleitorais.

Meus pais, certa feita, receberam dos amigos uma emocionante serenata cujo motivo foi lindo como a paixão primeira: eles estavam enfim sós, quer dizer, sem mais nenhum filho em casa para deles depender. Como a minha mãe se emociona até hoje ao contar a história da inesquecível homenagem, creio que foi muito doce o restante daquela noite. Além do mais, as músicas escolhidas nunca mais deixaram de tocar seu coração. Nem sei se os promotores avaliam a envergadura de tão boa ação.

Ainda no campo das boas ações, o que acontecerá neste sábado em casa será um resgate da minha tradição de serenatas praieiras, mas com inovações ainda mais radicais. Inverteremos as posições, deixando os músicos na sacada da frente, enquanto o público se posicionará na calçada. Trocaremos também a madrugada pela tarde de sábado. A iniciativa, que foi batizada de Ensaio de Sacada, é uma promoção dirigida aos vizinhos do condomínio em prol da Campanha do Agasalho 2008. Esperamos usar a música como aglutinador, apostando no inusitado desta situação como chamamento. Incentivamos a todos para virem assistir jazz e bossa-nova trazendo doações de roupas e alimentos para a comunidade carente do município.

Valer-se de apresentações de artistas para causas sociais não é nenhuma novidade. O Sting e o Bono Vox, entre outros, fazem o mesmo, porém com repercussão mundial. Mesmo assim, duvido que algum dólar amealhado nos mega-shows internacionais tenha chegado aqui por perto – mérito que teremos. O singelo Ensaio de Sacada já comoveu a meninada do condomínio, que ajudou em sua divulgação. Espero que mobilize, também, os vizinhos. E que a música aqueça seus corações.

10.7.08

Número 273

SE MEU FUSCA FALASSE

Quem gosta de motores e automóveis espera para qualquer momento uma morte anunciada: para breve, o tradicional motor à explosão dará lugar a um novo, alimentado por energia alternativa ao petróleo (ou mesmo ao álcool). Enquanto isso não ocorre – só Deus sabe o jogo de forças econômicas envolvidos nesse imbróglio –, a singeleza de pistões para cima e para baixo já esconde uma infinita revolução silenciosa, levemente sinalizada a cada temporada da Fórmula 1. Fora do “circo”, a face perceptível do fenômeno é uma nova carapaça cobrindo os motores, abaixo da tampa do capô. E, diante dela, um motorista absolutamente refém das novidades, quase todas de caráter eletrônico.

Hoje, quem abre o cofre do motor só vê a vareta do óleo, as tampinhas dos reservatórios de água e, com sorte, a bateria – selada, é claro. Tudo mais está coberto, num claro sinal de que, em caso de pane, não adiantará nada fuçar. Nem sempre foi assim... Nos velhos tempos em que a grande piada era perguntar ao incauto onde estava o radiador do Volkswagen Sedan, as peças do motor eram mais escancaradas do que umbigo de vedete (para ficar em um ditado contemporâneo). Lá estavam as velas, o alternador, o carburador, o distribuidor, todas as correias, as buchas, um mundo pronto para ser explorado por olhos, mãos e mentes curiosas. Um motorista cuidadoso checava uma série de itens como, por exemplo, o nível da água da bateria: sim, chamávamos o fluido de água mesmo. Pior (ou melhor, depende): em caso de necessidade, bastava completar o segmento da bateria com água da torneira que funcionaria também.

Os fanáticos faziam muito mais: escolhiam um final de semana sem grandes passeios para desmontar e limpar o carburador. A função começava no sábado, com a escolha do jeans e camiseta mais velhos. Passava pela caixa de ferramentas e terminava, com sorte, no domingo à tarde, lavando um carro que dava partida. No meio disso, minúsculas pecinhas se encontravam no fundo de latas de solvente, entre uma esfregadela e uma escovada, esperando a hora de voltar ao local de origem. Nesses dias, eu era o amigo curioso que ficava ao lado, peruando e pensando que o carro tinha muita sorte de não depender de mim para voltar à vida. O máximo que fiz até hoje foi trocar eu mesmo o óleo, completar fluido de freio, secar o distribuidor (nos velhos tempos) e trocar fusíveis. O restante, sempre preferi delegar aos profissionais.

Com a eletrônica em alta, pena de quem gosta de mecânica. Ou compra um kart, um fusca ou outro dinossauro sobre rodas, ou se contenta em assistir programas sobre o tema na TV. Hoje basta apenas conhecer o número do guincho ou da seguradora. Os motores estão com auto-suficiência tamanha que, creiam, adaptam-se aos motoristas. “Aprendem” como o dono guia o carro e fazem as compensações necessárias para obter o melhor resultado. Estranham até quando se muda o fornecedor de combustível, acusando a traição – assemelhando-se perigosamente com as esposas. (Não reclamem, meninas: o tema pedia ao menos uma observação machista.)

Não é só: tem automóvel que não liga enquanto o motorista está sem cinto de segurança. Outra novidade é o carro equipado com “bafômetro”: rodou no teste, ficou parado. Do jeito que a coisa vai, alguém terá a idéia de equipar o computador de bordo com um sistema karaokê. Nele, ao chegar no destino, o piloto receberá uma nota. Cinco e meio, por exemplo. E ficará a angústia: onde eu errei a passagem de marcha? Esqueci de ligar o pisca? Não dava para ficar em quarta ladeira acima? Ou, ainda pior, um automóvel meio Big Brother, com um software impertinente e que falará com o motorista: “Você já foi mais suave nas curvas, não? O banco está muito reclinado – olha a coluna! A troca de óleo está atrasada duzentos e oitenta quilômetros...” Sim, DR em pleno engarrafamento. Duvida?

Algo que não tem preço! 3

Oficina de Crônicas Módulo 1

O escritor Rubem Penz nos mostra toda a delícia e o desafio de se escrever uma crônica. Profundo conhecedor do assunto – ele próprio um cronista de senso muito apurado, além de sensível – nos revela os tipos de crônica possíveis, as referências mais importantes, os autores que devemos ler e, ainda por cima, dá dicas preciosas. Rubem Penz é também um mestre atento e meticuloso ao analisar os textos de seus alunos. E, mais do que tudo: é generoso.

Vera Moreira

4.7.08

Número 271

A ÚLTIMA É A PRIMEIRA

A notícia girou o planeta: falece, aos setenta e sete anos, a ex-primeira-dama brasileira Ruth Cardoso. Doutora em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), professora e pesquisadora da USP, foi docente em universidades de países como França, Chile e Estados Unidos da América. Atuava, também, como membro associado do Centro para Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge (Inglaterra)
e membro da equipe de pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap – São Paulo). Enfim, uma intelectual valorizada e reconhecida no mundo inteiro. Foi a partir de dona Ruth que muitos dos atuais programas de inclusão social brasileiros surgiram – tal como o Comunidade Solidária – e foi depois dela que a posição de primeira-dama viu nascer um novo paradigma.

No princípio, minhas referências de primeiras-damas nacionais não chegavam a empolgar, pois não vivi a época em que Maria Teresa Goulart rivalizava em elegância e beleza com Jacqueline Kennedy. Nasci em 1964, tempo de regime militar e nenhuma liberdade de imprensa. Recordo de dona Lucy e dona Dulce, mulheres nada diferentes do que se esperava das boas mães de família. Em 1985, eleito Tancredo Neves, poucas mudanças prometiam com a ascensão de dona Risoleta: no máximo uma rima perigosa. Porém, ficamos mesmo é com a discreta figura de Marly Sarney. Mas o ruim iria piorar... Quisera esquecer Rosane Collor – com seus modos, roupas, irmãos e bagagem cultural, superada em mau gosto tão somente por algumas namoradas de Itamar Franco. Quando dona Ruth subiu a rampa do Planalto, ou mesmo antes, ao lado do poderoso Ministro da Fazenda, o alívio foi geral.

Estranhamente, Ruth Cardoso fez mais por nossa nação – povo e imagem internacional – do que a maioria dos representantes públicos eleitos. Com seu perfil discreto e sereno, duvido que recebesse mais do que meia-dúzia de votos populares em uma eleição direta. Aliás, antes disso, não creio que se submetesse a um sufrágio em virtude do que isso viesse implicar. O que não significa uma recusa à política maiúscula, instância que sempre fez parte de sua rotina. Afinal, viveu no exílio, retornou com a cabeça erguida e uma carreira acadêmica consolidada para, a partir da abertura, tornar-se a esposa de um dos mais influentes governantes de seu tempo. E, longe dos holofotes, atuou com maestria.

Em um caso de nepotismo às avessas, em vez de uma companheira se beneficiar do cargo do marido em proveito pessoal, foi o Brasil quem saiu favorecido na eleição de Fernando Henrique Cardoso, recebendo dona Ruth como primeira-dama. Reconheço que, a partir daí, o parâmetro se tornou muito elevado. Porém, isso não justifica a visível inoperância de dona Marisa Letícia, a atual, de quem não se escuta um único ai. Aliás, ela só é notícia por causa de cirurgias plásticas, jardins, vestidos e, claro, por acompanhar, como nunca antes na história deste país, tão de perto o presidente em suas viagens para cima e para baixo.

Em 2010, sonho com um governo capaz de levar o Brasil um passo adiante em diversas questões. Espero que seja honesto e tenha coragem para alterar o quadro político atual: com seriedade e caráter não será tão complicado atender esse meu – nosso! – anseio. Agora, não alimento ilusões de ver um cônjuge (primeira-dama ou primeiro-cavalheiro) superando dona Ruth Cardoso tão cedo. Na minha preferência, ela, que foi a última, para sempre será a primeira.

Algo que não tem preço! 2

Queridos amigos,

Convido-os a participarem da Oficina de Crônica de Rubem Penz, promovido pelo Centro Cultural-Pedagógico Auxílio ao Tema (www.auxilioaotema.com.br). Estou certa de que vão gostar. Eu já fiz dois módulos e fiquei muito satisfeita. Penso que todos temos um cronista adormecido dentro de nós. E o Rubem é especialista em despertá-lo.
Para quem, como eu, o ato de escrever vai além de um simples ofício ou hobby, estas oficinas são tudo de bom. Nelas eu aprendi a escrever melhor. Aprendi a ser humilde e aceitar críticas. Aprendi que escrever não é necessariamente um dom. Escrever bem depende de vontade e técnica. Aprendi que escritor não nasce pronto; é fruto de muito trabalho e perseverança. Aprendi que é perfeitamente possível escrever sobre assuntos que não domino – para isto existe a pesquisa. Aprendi a reconhecer um bom texto. Aprendi que o mínimo em muitos casos é o máximo.
Recomendo, também, para aqueles que não são viciados, mas têm muito a dizer e não sabem como. Fazer crônicas ajuda a pensar de forma mais organizada. Aprendemos a ser melhores leitores de livros. Colocamos um olhar mais crítico sobre as nossas leituras da vida. A gente exercita o ato de se posicionar sobre temas cotidianos, polêmicos ou não. É uma oportunidade de se mostrar e de quebrar barreiras internas. Muitas vezes nos surpreendemos com a nossa própria imagem, desenhada de forma tão linear numa folha de papel.
Além de tudo isso, há o lado humano do Rubem: camarada, didático, culto, sensível e envolvido com a turma. Nas oficinas fiz novas amizades e convivo com pessoas afins, numa constante troca de experiências que só me faz crescer.
E o melhor de tudo é que, agora, tem também à noite, para vocês que trabalham de dia e se queixam de falta de tempo.

É por essas e por outras que eu recomendo.

Um grande abraço,
Zulmara

26.6.08

Número 270

AS VIÚVAS DE LUIZ FELIPE

Essa história não é minha: um amigo de um amigo (!) disse, certa vez, que preferia se relacionar com as mulheres separadas. Ele, que já não era jovem, evitava a todo custo as viúvas, pois era impossível superar a memória do falecido. Aos ex-maridos, em contrapartida, bastava um beijo mais ardente para estar em vantagem. Lembrei disso quando vi anunciada a saída do Felipão da Seleção Portuguesa, contratado a peso de ouro pelo Chelsea da Inglaterra: não queria estar na pele do próximo treinador desta esquadra, pois o que terá de viúvas em terras lusitanas não será bolinho...

Pode parecer exagero comparar o casamento entre duas pessoas e o consórcio entre treinadores e agremiações. Porém, igual a um contrato de união civil, o relacionamento entre técnico de futebol e clube é algo que sempre extrapola os cartórios ao ser contaminado por implicações passionais. Não é à toa que, ao menos no Brasil, a população vê com muito mais complacência o despir de uma aliança do que uma virada de casaca: no amor às cores não há espaço para traições.

Em ambos os casos, também, fatores externos estremecem os ânimos. Enquanto no casamento existe a sogra, os filhos, o aluguel, a colega de trabalho gostosa dando corda – ou o professor da academia acendendo a imaginação –, no futebol está presente a pressão da torcida, as fofocas da imprensa, o assédio de outras equipes, a posição na tabela do certame nacional etc. Assim, tudo o que poderia ser mais simples, torna-se cheio de conflitos, necessitando muito mais do que o bom e velho respeito mútuo.

Grande parte dos matrimônios de hoje termina em separação judicial. Algumas são consensuais: nada mais dá certo, o distanciamento se tornou intransponível, novos planos apareceram para atrapalhar. Há casos de rompimentos litigiosos, com uma das partes pisando feio na bola. Da mesma forma, na saída dos treinadores acontecem divórcios: os resultados não aparecem, as explicações não convencem mais, o amor acaba. Para o novo marido, esposa ou técnico, basta um buquê de flores, a vitória em um clássico ou aquele prato mais elaborado no jantar para reviver bons momentos.

Mas não é nada disso que ocorre com as saídas de Luiz Felipe Scolari de um time. Mesmo sendo um colorado apaixonado, acompanhei de perto o afastamento deste profissional do clube co-irmão porto-alegrense e garanto: a sensação de viuvez foi alarmante. Amigos tricolores cultivam o luto até os dias de hoje (e lá se vão muitos anos). A volta do Felipão, tida como uma espécie de milagre, significaria o retorno de anos de glória e felicidade perdidos para sempre. Houve outros importantes na vida deles, sim. Mas nenhum como o gringo com estilo paternal.

Então, é esta a bronca que o próximo treinador da Seleção Portuguesa enfrentará. Luiz Felipe não se separa simplesmente de um time: morre uma Era. Junto com ela, ficam as lembranças inesquecíveis e de difícil superação. Não será um jantar à luz de velas, uma goleada de 5X2 ou um bom esquema tático que darão conta. Por um bom tempo – para alguns a vida toda – a comparação será sempre desfavorável. O amigo do meu amigo evitava as viúvas a todo custo. Os profissionais do futebol não podem se dar a esse luxo. Mas que a tarefa é complicada, isso é.