29.4.11

Algemas de falópio

Número 419

Rubem Penz

As imagens de uma mãe que passa na rua e deixa seu bebê em um container de lixo, flagradas por câmeras de segurança, foi exaustivamente reprisada e varou fronteiras por esses dias. Também pautou reportagens recordando casos semelhantes: um bebê encontrado em saco de lixo, outro no valão do esgoto, outro atirado sobre o muro. E muitos mais pipocam no noticiário, sempre com a mesma questão: por que uma mãe abandona seu filho? Respondo: porque ela, antes, o acolheu.

Aqui está uma das diferenças básicas entre homens e mulheres, impossível de ser ignorada, mesmo em tempo de brados pela igualdade: mulheres são ventres, e a Natureza criou o ventre para acolher a vida. Por sua vez, homens ejaculam, isto é, lançam a vida para longe de si. Assim, entre tantos canais de TV, poucos se lembraram de fazer aquela pergunta primeira de quem compreende o nascimento como fruto da união de um casal: onde está o pai nessa história de abandono? Respondo outra vez: ele simplesmente não está, pois só pode abandonar quem um dia acolheu.

Abrigar os filhos é tarefa precípua das mães. Assim, quando um rapaz fecunda uma parceira e, com o perdão da alusão anatômica, simplesmente tira o corpo fora, pode fazê-lo sem lidar com igual parcela de culpa e sofrerá cobrança moral menos rigorosa do que aquela que será imputada à mulher. Isso é triste, injusto, errado e precisa mudar (está mudando), mas é a realidade – ou saiu a notícia de que o pai da menina jogada no lixo também poderá ser denunciado por abandono de incapaz? Ah, claro: ele não a abandonou, pois sequer a acolheu.

Eis a razão de o fardo da anticoncepção pesar tanto mais sobre os ombros das mulheres: ao nascerem, foram condenadas ao acolhimento. Por isso, nada libertou mais o sexo feminino do que os métodos anticoncepcionais. E, melhor: sem culpa, colocando as moças, finalmente, em pé de igualdade com os rapazes. Afinal, mesmo o aborto (a vida é ou não válida ainda na fase embrionária?) traz uma sombra de abandono, fazendo sofrer. A saída indolor para o impasse é entregar à mulher a chave das suas algemas de falópio.

Faz muito tempo que a elite cultural e econômica gera prioritariamente filhos planejados, usufruindo de plena liberdade de escolha. Estivessem tantas mulheres que sofrem pesadas restrições sociais atendidas por programas sérios e eficientes de conscientização em termos de fertilidade, não haveria tamanho abandono infantil. Evitando a acolhida inicial, quando involuntária ou irresponsável, preveniríamos o desamparo.

Nossas crianças não estão jogadas no lixo somente no sentido literal, aquele da notícia: também lá estão quando, miseráveis, sucumbem em rotinas degradantes. Conteiners metafóricos aguardam nossos anjos nas drogas, na prostituição, na exploração do trabalho infantil, nas mortes violentas, nas doenças que brotam da falta de saneamento básico, na mendicância. Todos podem ver isso sem a necessidade das câmeras de vigilância. Mas as autoridades escolhem não ver.


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20.4.11

Nova concorrência Pascal

Número 418

Rubem Penz

Em 2008 noticiei em única mão o término do contrato de concessão aos coelhos para serem os animais símbolos da Páscoa, além da consequente abertura de Edital para nova concorrência. Confira no Rufar dos Tambores número 256, de 19 de março (http://rufardostambores.blogspot.com/2008/03/nmero-256.html). À época, candidataram-se os ratos, as galinhas, as formigas e, muito a contra gosto, os bichos-preguiça. Como todos podem constatar nas campanhas publicitárias, para a felicidade dos coelhos, deu em nada. Parece que havia erros formais no documento, o que ocasionou sua denúncia e novo contrato emergencial com validade de cinco anos. Desconfio que entregaram a tarefa para brasileiros, que gostam mais de renovações emergenciais de contratos do que mulheres de chocolate.

Volto ao tema porque soube do lançamento de novo Edital com vistas para a Páscoa do ano que vem. Todavia, o desgaste do cancelamento anterior provoca baixo interesse na bicharada. Poucos se dispõem a enfrentar o lobby dos coelhos, que se reproduz em todos os níveis da administração pascal. Contrariando essa corrente, lá estão os leões, que prometem ser concorrentes de peso. A seguir, a justificativa dos Reis das Selvas:

Leões de Páscoa

Nós, leões, apresentamos nossa candidatura a Animal Símbolo da Páscoa para destronar de uma vez por todas os coelhos. Afinal, trono é prerrogativa de monarcas, o que somos de fato e de direito. Também porque, de alguma forma, mesmo sem ser a ideal (e quem liga para preciosismos?), nos relacionamos tanto com a comunidade cristã, quanto com a tradição alimentar – comíamos cristãos nas arenas romanas.

Outra vantagem é a de concorrer em pé de igualdade com o Papai Noel: é sabido que o bom velhinho carrega uma contradição implícita, um misto de fascínio e medo, impossível de ser explorada por adoráveis coelhinhos. Agora, no nosso caso, papai e mamãe podem recorrer às pequenas chantagens: se não comer tudo, vou contar para o Leão da Páscoa! Nada melhor do que um carnívoro que habita o ápice da pirâmide alimentar para impor respeito.

Porém, no cerne de nossa defesa, está a coincidência de a Páscoa acontecer no momento em que as pessoas se preparam para prestarem contas com o Imposto de Renda, onde já estamos presentes. E a ação governamental combina com os ritos pascais em diversos pontos:

O contribuinte é convidado à ceia que precede o sacrifício e, nela, o governo já avisa que há traidores entre eles. Mesmo assim, segue com o jantar até o final, pois o problema de amanhã se resolve no dia seguinte.

O traidor é corrompido, levando o contribuinte à Via Crucis da saúde, da segurança, da educação, da infraestrutura etc. Em sua jornada, é submetido aos piores tratamentos e às maiores humilhações.

Por fim, imolado em praça pública, morre com o dinheiro devido aos cofres da viúva, na esperança de ressuscitar no momento da devolução dos eventuais valores de restituição.

Por tudo o que foi exposto, é pleito legítimo dos leões serem o novo Animal Símbolo da Páscoa.


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15.4.11

Um placebo chamado desarmamento

Número 417

Rubem Penz

 "Proibir arma legal é combater as drogas na farmácia."

O magnífico José Sarney, surfando na onda da comoção nacional pela tragédia do Realengo, requentou o tema do desarmamento e arma nova consulta popular. Agora, preparo-me para ler e escutar pessoas que admiro profundamente aderindo à tese de que a proibição do comércio de armas legais resolverá o problema da violência no Brasil. Gente que, assim como eu, não tem arma em casa, não pretende comprar uma arma, não frequenta estandes de tiro. Pessoas de bem, respeitáveis, inteligentes. As mesmas que estarão espantadas ao constatar que sou contra o desarmamento, ao menos nos moldes como estarão propondo. Clemência, por favor – minha posição é defensável.

Imputar às armas legalmente adquiridas no país o status de fonte que abastece o crime é igual a dizer que os remédios de tarja preta são os responsáveis pelo problema nacional das drogas. Desconsideram a maconha, a cocaína e o crack que entram em toneladas no Brasil ilegalmente: isso é outro caso, muito difícil de resolver. Olha o tamanho da nossa fronteira! A substância que, para ser adquirida, demanda receita médica especial, alvo de severo controle, também é droga pesada. Proíbe-se sua comercialização e, na hora, importante modo de drogatização é resolvido. Será?

Ao montar o argumento, não esqueci daqueles para os quais os remédios controlados são indispensáveis à saúde. Ao contrário. Evoco sua lembrança para falar dos que dependem de armas de fogo para manter sua segurança. Pasme: eles existem! Por exemplo, o estancieiro que está quilômetros distante da ajuda mais próxima, isolado e indefeso. Hoje, um delinquente pensa duas vezes antes de entrar na propriedade para suprimir seus bens (na melhor das hipóteses) apenas pelo fato de que poderá sofrer uma resistência letal. Isso é uma exceção? Claro! Assim como é exceção nosso doente que não vê seu problema resolvido com aspirina. Ambos cumprem severa legislação e estão obedientes à lei. A eles a proibição atingiria. Somente a eles.

É óbvio que o problema da violência no Brasil não está na arma legal, assim como o das drogas não está nas substâncias legais. Arrisco dizer, inclusive, que a proporção é a mesma, ao menos na população civil. As consequências de uma consulta popular proibindo armas lícitas, alimentada por uma tragédia nascida de uma arma ilegalmente adquirida, tem a mesma eficácia de o combate ao crack começar pela proibição dos remédios da farmácia. Isto é, prometem-nos a cura do mal ministrando placebo, e seguirão placidamente contando os mortos, livres de dor de consciência. A não ser que o alvo desse tiro seja outro. Mas aí também é outro artigo.

 

 


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8.4.11

Nas coxas

Número 416


Rubem Penz


Aseem Mishra tem 17 anos e já ganhou dois prêmios em feiras de ciências. O mais recente é muito conceituado: The Big Bang Science Fair, concurso nacional para estudantes ingleses. O que chamou a atenção de quem mandou a notícia para mim (grato, Paulo Henrique!) foi a natureza do invento do rapaz: uma calça jeans bateria. Mas não battery (pilha), e sim drums (instrumento musical).


Em resumo, a adaptação de sensores no tecido da calça transformou o jeans em uma bateria eletrônica que se pode vestir. No filme que acompanha a reportagem, Aseem faz um solo totalmente nas coxas. Ali, encontra peles, pratos de condução e ataque, hi-hat e tudo o que compõe o conjunto de sons do instrumento musical. Não bastasse o prêmio de £ 1000, abre-se a possibilidade de costurar sua criação com empresas do ramo – ainda mais que deverá vestir o invento em uma feira norte-americana.


Acha que fui lembrado porque sou baterista? Nada disso. Foi porque sou meio chato, mesmo: tenho a mania quase incontrolável de batucar. Batuco na mesa, no volante do automóvel, no sofá. E, na falta de superfícies externas, batuco no corpo. Quando sentado, os pés não param e as mãos percutem nas pernas – só faltam os sensores. O fato é que sempre – sempre! – tem música tocando onde eu estiver, senão em aparelhos de som, na memória. E costumo acompanhá-la. Não respeito sequer as refeições. Mas, educado, atendo sem demora os pedidos para silenciar.


Para ter bolado o invento, parece óbvio que Aseem padece do mesmo tique, algo que a desenvoltura no filme atesta. Bela resposta aos que insistem para que ele fique quieto: fazer da mania um mérito! Mas parece que não foi isso que moveu o estudante. Segundo a entrevista, o menino se diz cansado de carregar a bateria para suas gigs. Cansado aos 17? Realmente, a preguiça é uma das principais molas do progresso. Três décadas nos separam e eu não abro mão do set acústico, pesado e espaçoso. Sou um dinossauro, mas mantenho a forma física!


Agora, já pensou se a moda pega?


Saias plissadas podem virar piano. Gravatas, saxofones. Haverá quem pense em aproveitar as casas dos botões para entoar uma melodia em flauta doce. Equipando um macacão da gola à bainha da perna, o músico poderia ser um verdadeiro homem banda. O esperto daria para a namorada uma calça com bongô estratégico, e teria a desculpa perfeita para percutir a bunda. O pai mais ciumento faria a menina usar um sutiã com apito, ficando atento, só na escuta. As magrinhas colocariam uma blusa justa para abrigar a harpa das costelas. No cinto, flauta transversa. Castanholas nas luvas e maracas nos punhos.


Entre adolescentes, não faltaria mãe espantada: meu Deus, esse menino está duas oitavas acima do blusão que ganhou no ano passado! E a filha brigaria com o pai: tom menor! Ele: nada disso, tom maior! A avó reclamaria que, no seu tempo, as mãos serviam apenas para bater palmas e os dedos para assobiar, e olhe lá! Mas todos desconfiariam de tanta inocência: certamente rolava concertos à capela...


Enquanto estamos apenas no terreno das hipóteses, não custa imaginar possibilidades:


– Berimbau! Viu só aquela zabumba?
– Se vi... Mas é muita orquestra para a minha batutinha.

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1.4.11

Gol a gol

Número 415

Rubem Penz

Ao pátio ladrilhado da minha casa de infância faltava envergadura para ser uma cancha, mas foi o primeiro campo poli-esportivo que conheci. No sentido cozinha/anexo, aproveitando a corda do varal, jogávamos newcomb e vôlei de duplas: meninos versus meninas (meu primo Dudu e eu contra minhas irmãs); no sentido muro/tanque, o famoso futebol gol a gol, versão mais reduzida possível do gênero criado pelos ingleses – basta um arremedo de campo, duas metas e um adversário. Tinha sempre o mesmo oponente (o primo), pois havia muita distância de idade com meu irmão, e gurias, na época, não jogavam bola. Vantagem: todo dia era dia de clássico, aguerridos Grenais.

Para qualquer professor de educação física, aquele era o mundo ideal: crianças na idade pré escolar e de ensino fundamental com atividades físicas em casa, trabalhando igualmente o trem superior e inferior, praticando jogos competitivos, individuais e de equipe. Propositalmente, deixo em segundo plano as bicicletas, bobinho, caçador, pega-pega, corda, elástico, peteca, tamborete, esconde-esconde, cinco marias entre outras brincadeiras formadoras do bom manancial psicomotor. O foco de minha lembrança é o bom e velho gol a gol.

Nascido da precariedade (jogadores em número insuficiente e espaço reduzido), o gol a gol, por ser mínimo, exigia o máximo de fundamentos. Praticava-se precisão no arremate, defesas, domínio de bola (para defender com os pés), drible (podíamos conduzir a bola caso houvéssemos defendido com os pés), desarme e imposição física (meu calvário). Quando a bola cruzava o muro, nosso caso particular, ainda apresentava vantagens extras: desenvolvimento de força, equilíbrio e velocidade. Isto é, subir no muro, andar sobre ele, descer do outro lado e fugir do cachorro da Dona Vilma.

Como jogávamos praticamente todos os dias, não posso culpar o destino por não ter me tornado um Manga, Falcão ou Zico. É óbvio que não nasci para a coisa. Mas este jogo rudimentar proporcionou o contato com duas das maiores alegrias do futebol: marcar golos e defender chutes fortes e precisos. E, por mais que um bom arremate seja motivo de orgulho, devo dizer que poucas experiências se assemelham a uma ponte bem executada, chegando naquela bola que mirava o ângulo e acomodando-a nos braços sem dar rebote. Se jogadores de linha são bailarinos, goleiros são acrobatas!

Esta semana, uma marca esportiva estupenda foi notícia no mundo inteiro: Rogério Ceni, "guarda-metas" brasileiro do São Paulo Futebol Clube, alcançou o patamar de 100 golos marcados. Ok, ainda faltariam mais de 900 para bater o Rei Pelé, Atleta do Século XX e ícone mundial. Porém, o detalhe é que Ceni, um acrobata, costuma estar afastado estimados 100 metros das redes adversárias, objetivo maior do esporte bretão. Enfim, tamanha é a raridade de seu feito, que o goleiro mais próximo é o aposentado Chilavert, com respeitáveis 62 tentos no currículo.

Posso me considerar um privilegiado, pois testemunhei jogar esses dois grandes recordistas do futebol, Pelé e Ceni. Homens que viram seus esforços reconhecidos em cada gomo do planeta bola. Iguais a mim, devem ter ocupado bom tempo da infância em pátios transformados em campos imaginários. Diferentes de mim, ambos nasceram, e muito bem, para a coisa. Hoje, uma necessidade se impõe: se o Jorge Benjor nominou o Fio Maravilha o "Homem Gol", nada mais justo do que compor um tema para o Rogério Ceni, imortalizando melodicamente o "Homem Gol a Gol".


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25.3.11

Cavalo dado

Número 414

Rubem Penz

Setúbal teria sido para sempre de uma só mulher se não fosse por um detalhe sutil: Antonieta pedira divórcio duas semanas antes de completarem bodas de pérola. Segundo ele, assim, do nada. Segundo ela, Santo Deus!, por tudo. Justamente na distância entre estes pontos de vista, mesmo que imprecisos, poderia estar a provável causa do litígio. Ou na abrupta proximidade do casal, depois de ele ser afastado para o Conselho de Administração da empresa.

Agora, morando em um apart-hotel, custava a se adaptar com algumas novas rotinas. Por exemplo, gerir suas próprias necessidades: serviço de café da manhã, arrumadeira, lavanderia, restaurante. Tudo muito bom, mas, segundo Setúbal, sem nenhuma sombra de lar, de cordialidade ou afeto. Em resumo, numa questão de meses, estava sem trabalho e sem família. E muito deprimido.

Antes de vê-lo doente, os amigos resolveram arranjar nova esposa para o Setúbal. Às escondidas, alimentaram um site de relacionamentos com seus dados: peso, altura, idade, cor dos cabelos e dos olhos, preferências musicais e gastronômicas... Essas bobagens que podem indicar o par ideal. Ah, claro, e a situação financeira, seu único sex appel. Por fim, apropriaram-se da aparência da ex para montar o perfil de preferência.

Rodolfo, o mais despachado da turma, foi o responsável pela triagem. Fazia-se passar por Setúbal e marcava encontros com as pretendentes. Depois de umas dezessete tentativas frustradas, e com a turma desconfiando de que Rodolfo estava era tirando proveito da situação, ele anunciou que conhecera a mulher ideal para o solitário amigo. Raquel – seu nome – parecia uma fiel reprodução de Antonieta aos trinta e tantos anos. Tiro certo.

Setúbal, homem de uma única mulher, seria defrontado com uma versão revisada e ampliada de seu amor primeiro. Nos planos da turma, passaria os dias lendo a mesma obra em busca das pretensas atualizações, algumas bastante evidentes, saltando do decote. Teria a oportunidade de voltar às joalherias para reescrever suas observações pessoais em momentos mais brilhantes. Com sorte, em poucos meses, já estaria morando em um apartamento, todo bobo ao acompanhar Raquel escolhendo móveis e artigos de decoração.

À moça, uma única recomendação: jamais comentar nada sobre os dentes do Setúbal, por maior que fosse o estranhamento provocado por eles. Foi agindo assim que Antonieta, a ex, ganhara seu amor e tudo o que o pacote contemplava, incluindo a pensão. Além do mais, sob certo prisma, os dentes eram o único traço distintivo daquele homem de bom coração, mas um tanto convencional.

A aproximação se deu de modo calculadamente fortuito, em um jantar. Tudo estava tão bem articulado, que as primeiras palavras de Setúbal à Raquel foram "Não lhe conheço de algum lugar?", ainda durante o serviço de canapés. Depois, sentaram-se juntos à mesa e pareciam emendar um assunto no outro, como se estivessem a sós na movimentada recepção. Mal terminaram a sobremesa e Setúbal convidou Raquel para darem uma volta pelo jardim. Diante da cena, os amigos comemoraram a vitória. Antes do tempo.

Naquele instante, ao abrir um sorriso mais largo, Raquel revelou um desconcertante pedaço de alimento entre o canino e o pré-molar. Setúbal percebeu e, sem coragem de falar, começou a passar a língua em seus próprios dentes. Notando que Raquel prestava mais e mais atenção, passou a fazer movimentos amplos, ostensivos, que se transformaram em caretas e, estas, foram acompanhadas de pequenos grunhidos.

No relógio, 11h. Setúbal dispensa o café da manhã. No corredor, dá bom dia para a camareira e sorve o tímido sorriso que recebe de volta.


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17.3.11

Homo Zappiens, koyaanisqatsi e cavernas

Número 413

Rubem Penz                                 

Homo Zappiens é a terminologia presente em uma obra de Ben Vrakking e Wim Veen dirigida aos atuais educadores. Nomina os seres humanos nascidos em um ambiente tecnológico. De rara felicidade, ela é muito mais do que supõe o bom trocadilho: resume e define a geração dos nossos filhos. Aqueles que têm em casa um jovem, um adolescente ou uma criança, compreendem o que digo.

O universo fragmentado e multifocal da meninada nos assusta em alguma medida: parece que são incapazes de sossegar o pito em uma atividade que requeira mais do que poucos minutos. E, mesmo quando estão estudando, teoricamente concentrados, a TV teima em permanecer ligada. O computador também, e com mensagens brotando na tela feito cogumelos durante a chuva. O i-pod despeja melodias direto no cérebro, tudo ao mesmo tempo e na mesma passada de sentidos.

Nessas horas, a primeira reação que tenho é a de frear o processo: ao menos para as atividades escolares, por favor, desliguem a TV e a música! – é o que digo. Amigos mais avançados falam que, se eles estão indo bem na escola, significa que apreendem conhecimentos sem abrir mão dos múltiplos estímulos. Custo a crer nessa possibilidade. E as boas notas no boletim podem tanto significar que estou certo, quanto que eu exagero. Quem vai saber qual será o reflexo disso tudo na vida adulta...

Mas, pensando bem, noto em mim características destes tempos vorazes – já trago nos hábitos algumas inquietudes com a quietude. Sou um homem da tela lascada, por assim dizer. Acompanhei boa parte da escalada tecnológica, vivi a transição do Homo Sapiens para o estágio Homo Zappiens, só me falta a naturalidade dos que já nasceram com tudo digitalizado, acelerado, imediato, simultâneo. Em resumo, ainda me espanto com as novidades, mas não desejo retroceder.

Quando publicitário, ainda nos anos 1980, criava de modo manuscrito, passava a limpo em máquinas de escrever e acompanhava a lenta magia do papel branco transformando-se em layout pelas mãos de diretores de arte e ilustradores. Cada anúncio cumpria o ciclo de um amanhecer, desde as primeiras luzes iluminando as nuvens altas, até o sol se desprender do horizonte laboral. Agora, processo semelhante é quase instantâneo. Virou koyaanisqatsi – termo que na linguagem Hopi significa "vida em turbilhão", usado para nominar uma obra cinematográfica visionária de Godfrey Reggio com imagens da natureza em contraponto com a cidade (1982). O filme utilizava apenas o som de Phillip Glass para contar muito de nossa História recente. Impactante.

Enfim, sinto-me como um homem pré-histórico alçado sucessivamente para saltos de tempo: quando me acostumo com uma ferramenta, ela já está obsoleta. O dia a dia me traz de volta a encantadora vertigem de Koyaanisqatsi. Todavia, na mente videoclipada e estroboscópica dos meninos e meninas, com seus cortes quase instantâneos de imagens e sons, a vida turbilhonada parece encontrar uma harmonia insuspeitada. Eles estão em outra batida. Outro ciclo. A agilidade treinada nos videogames contamina expectativas e reações. Intuem os caminhos prometidos pela tecnologia, migram de suporte em suporte e de linguagem em linguagem como se a velocidade das mudanças fosse algo normal.

Caso viva mais vinte, trinta anos, alcançarei a geração dos netos crescidos. Há uma chance de ver meus próprios filhos, autênticos Homo Zappiens, com dificuldades para acompanhar novas mudanças, repetindo o ciclo em que me encontro. Escutarei, então, suas queixas com relação ao comportamento das crianças. Soará Phillip Glass no fundo da memória. "Koyaanisqatsi" retumbando nas paredes da minha caverna.


11.3.11

Soterrados

Número 412

Rubem Penz
Estamos bien, los 33
Bilhete enviado pelos mineiros Chilenos

Os últimos tempos têm sido pródigos em empilhar catástrofes: deslizamentos, terremotos, tempestades, tsunamis, enxurradas, desmoronamentos etc. Também, especialmente no Brasil, tragédias cotidianas como os acidentes em estradas fazendo muitas vítimas, em grande parte, fatais. A violência, a tirania e as guerras se acumulam sobre nossas cabeças. Nas (in)consciências, domina o pó  dos entorpecentes. De alguma forma, nos sentimos, todos, soterrados.
Por isso, aqui do fundo do poço escuro e imobilizador, parte meu bilhete: "Estamos bien, nosotros...".
Vivos, apesar das toneladas de lixo que separam nosso abrigo íntimo da mãe natureza. Entulho responsável pela contaminação das nascentes e pela poluição do ar. Escombro que destrói o entorno, violando o bom senso, desfigurando as encostas, alterando a ordem natural;
Saudáveis, mesmo que paire tantas dúvidas sobre os alimentos que ingerimos e os hábitos que adquirimos.  Céticos quanto às chances no longo prazo para nossos anticorpos na escalada bacteriológica. Dependentes dos fármacos e fragilizados diante das ameaças ao organismo;
Razoavelmente seguros, mas cada vez mais isolados dentro do solitário refúgio da desconfiança – prisão sem grades. Paralisados pela ousadia dos chacais e por ordem de quem deveria nos proteger: Não reaja! E não reagimos;
Solidários em alguma medida, caso contrário nada mais faria sentido, nem mesmo a sobrevida dos dilacerados. Dividindo um pouco de consolo, de lágrimas, de carinho. Oferecendo e tomando emprestadas poucas migalhas de luz;
Insurgentes contra os que tomaram as decisões que nos trouxeram para cá. Mas igualmente revoltados contra nós mesmos, surdos que fomos para os alertas que partiram da razão e do sentimento;
Organizados diante do caos, metódicos frente ao inesperado, capazes de improvisar antes mesmo de conhecer o próximo acorde da melodia – ainda que o conjunto soe meio desafinado para os mais puristas;
Inacreditavelmente esperançosos, estupidamente humorados, inevitavelmente famintos, especialmente amorosos.
Estamos muito mal, mas "estamos bien":
Agarramo-nos com a força insondável do instinto nos mínimos ruídos que partem da superfície. Cremos que algo ou alguém de fora deste buraco tenha mínimo interesse em seguir com as missões de resgate. Ou, quem sabe, que surja aqui de dentro um meio de suplantar a pilha de dor.
O tempo não está do nosso lado, minando gradativamente a resistência, fazendo novas vítimas, enlouquecendo até mesmo aqueles mais sensatos. Vemos escassear as reservas de fé. E, a cada dia, as manchetes pelo mundo nos atiram mais para baixo.
"Estamos bien, nosotros, los sobrevivientes." Mesmo que soterrados pelas notícias de violência e de mortes evitáveis.

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3.3.11

Anjos e demônios

Número 411
Rubem Penz


Eis um clássico dos desenhos animados e dos quadrinhos: quando o protagonista se defronta com um dilema, surge sobre seus ombros um anjo de um lado e um demônio do outro. Ambos concorrem em conselhos buscando influenciar a consciência – território do livre arbítrio. Em jogo, o pendor das ações. Se o ser humano fosse virtuoso por natureza, o demônio colocaria o tridente no saco e abandonaria o emprego. O problema é que não somos assim tão bonzinhos, e os argumentos do capeta são muito convincentes.


O grande talento do demoniozinho fictício é o de soprar em nossa orelha uma oferta irrecusável, aquela que sempre acena com a vantagem pessoal. O anjo, por sua vez, rechaça qualquer privilégio. Por exemplo, quando há uma fila enorme de automóveis em um engarrafamento, surge o dilema e começa o debate:


Capeta: Ô babaca, pega o acostamento e passa por todos!


Anjo: Nada disso! As pessoas na sua frente chegaram antes e merecem a primazia. Além do mais, segundo a lei, o acostamento não é pista de rodagem.


Capeta: A culpa do engarrafamento não é sua. Sai agora ou chegará atrasado!


Anjo: Se fosse previdente, teria saído mais cedo...


Capeta: Ó, acabou de passar um pela sua direita! Vai agora, antes que o acostamento engarrafe também!


Anjo: Não! Essa vantagem é ilícita!


É quando, no exemplo, a virtude arrisca ir para o brejo... Como a honestidade é a marca do anjo, ele reconhece que há vantagens para quem coloca seus interesses acima dos demais. Principalmente quando a regalia segue de mãos dadas com a impunidade: lei sem fiscalização só castiga os obedientes.


O anjo, representando o bem, pensa no outro. O demônio, em nome do mal, é egoísta. Em tese, se ninguém prejudicasse ninguém, todos seriam beneficiados. Na prática, a ordem é cada um por si e o sistema falho que nos livre!


Isso vale para os automóveis e para tudo: pedófilo e estuprador pensam no prazer, azar da vítima; o assaltante deseja os bens alheios, mesmo que incida em prejuízo para quem caiu em sua teia, ou mesmo lhe custe vida; o traficante conhece o preço social da fissura, e lucra com isso; o corrupto e o corruptor dão uma banana para a coletividade, e assim por diante. O demônio que habita o ombro quer nosso benefício exclusivo, imediato e ilimitado. Oferta muito tentadora.


Voltando ao trânsito, como todos já devem saber, um motorista atropelou de propósito dezenas de ciclistas em Porto Alegre. O ato, flagrado por câmeras de celular, repercutiu no mundo inteiro. Poucas vezes tive a oportunidade de testemunhar tamanha fúria e inconsequência. O anjo que deveria estar no ombro do cidadão só pode ter saído para dar uma volta, pois um mínimo de pensamento lógico, lúcido ou amistoso seria suficiente para evitar o que quase virou tragédia.


Sem querer justificar o injustificável, falharam também os anjos dos ciclistas que bateram com suas mãos na carroceria do automóvel antes de ele acelerar sobre a massa, atiçando as brasas até o ponto de labareda. Deve (ao menos deveria) estar pesando na consciência daquelas pessoas os ferimentos dos companheiros. Afinal, um conselho típico de anjo é o de não agredir ninguém, especialmente um desconhecido que parece apressado e furioso, pois a reação nem sempre é proporcional.


Anjo: Isso! Use esse artigo para dizer que venho perdendo terreno para o egoísmo; que as pessoas devem me escutar mais e cultivar a paz e a tolerância.


Capeta: Que nada, deixa pra lá, não te envolve... Nem foi contigo! Qual será a vantagem?


1.3.11

Santa Sede Safra 2011

SANTA SEDE, oficina de crônicas em botequim, abre inscrições para sua Safra 2011
Antologia Santa Sede, crônicas de botequim, Safra 2010


Estão abertas as inscrições para a Safra 2011 da oficina Santa Sede – crônicas de botequim. A inédita experiência  de ambientar a turma no habitat natural dos cronistas – a mesa de bar –, depois do pleno êxito no ano passado, aguçou o paladar para outra rodada.
A exemplo do livro Santa Sede, crônicas de botequim Safra 2010, nas livrarias, a nova turma escreverá sua própria antologia, com lançamento marcado para o segundo semestre. Os encontros acontecerão nas terças-feiras, 20h, no Boteco Matita Perê, Rua João Alfredo, 626, Cidade Baixa.
Rubem Penz no balcão do Matita Perê, foto de Carolina Albuquerque

Especialmente criada para jornalistas e escritores provenientes de outras oficinas literárias, Santa Sede explora as muitas nuances do gênero crônica sem jamais trair a descontração do entorno. Mais informações no site www.rubempenz.com.br  ou pelo fone (51) 3446-3320. Vagas limitadas.

25.2.11

Outra vez, o fim da calvície

410
Rubem Penz
Desde que a perda gradual dos cabelos passou a ocupar minha cabeça, e isso já tem quase 20 anos, ouço falar em cura para a calvície. Mas a promessa de repovoar o alto do crânio com madeixas firmes e fartas; loiras, ruivas ou morenas – ou mesmo brancas, vá lá –, é muito mais antiga na humanidade. Quase uma histórica obsessão farmacológica. E sempre com a convicção de que aquele que encontrar a fórmula mágica ficará milionário. Afinal, está aí um ponto que cala muito fundo na vaidade masculina.
Leio agora que, mais ou menos sem querer, pesquisadores que estudavam os efeitos do stress no trato gastrointestinal de roedores parecem ter encontrado um novo caminho. Ratos modificados geneticamente produziram em excesso determinado hormônio ligado ao stress e, assim, perderam seus pelos das costas quando ficaram velhos. Para a surpresa geral, uma substância desenvolvida para bloquear o efeito de tal hormônio devolveu a pelagem original aos bichos, tornando-os indistinguíveis daqueles do grupo de controle. Quer dizer, mataram dois ratos com uma cajadada só: o nervosismo e a pelagem.
Sobre isso, duas observações: fica comprovado cientificamente um antigo dito popular, segundo o qual as preocupações é que fazem a gente perder os cabelos. Por mais que os fatores hereditários incidam preponderantes, ou que alguns hábitos possam agravar o caso (como o uso abusivo de chapéu ou boné), aquilo de dizer "Filha, assim o teu pai perde até o último fio de cabelo", agora, mais do que nunca, é verdade científica! A outra observação é que um homem não "parece" mais sério (severo, comprometido, cioso) depois de calvo. Ele realmente é assim!
Digamos que a fórmula que promete resolver a queda definitiva dos cabelos, dessa vez, seja para valer – falo em hipótese porque estou careca de ler falsas juras. Como fator mais positivo disso tudo, a humanidade estará livre do Combover, aquele penteado que deixa um dos lados bem longo para disfarçar a aridez no alto da cabeça passando a madeixa por cima e colando com gel. Quem se submete a esse papelão – e são muitos! – merece a cura de seus males. O pobre, junto com o cabelo, perdeu a noção. Ou acha que não percebem o truque? Considero tal penteado e a peruca os maiores equívocos da vaidade masculina.
Porém, mesmo o remédio sendo quente, haverá quem opte por não fazer o tratamento. Afinal, alguns homens ficam mais bonitos sem cabelo. Lembro do Yul Brynner, por exemplo – usar o cinema é uma ótima estratégia, pois ficaria chato nominar amigos... E no meu caso, a calvície teve lá seu benefício estético. Sim! Numa época, serviu para amenizar a eterna cara de criança, que traz vantagens, mas cobra alto preço na juventude. Agora, sem esse risco, e quando parecer jovem viria apenas com o bônus, acho que meu processo poderia ser revertido para um ponto de mais ou menos doze anos atrás, ainda na fase das "entradas". Quer dizer, eu sou um cliente potencial, mesmo que para meia dose – não abro mão da testa longa.
Antes de encerrar, gostaria de lembrar que, pela importância da queda dos cabelos, algo está sendo deixado de lado, isto é, este tratamento da calvície originalmente combate o hormônio do stress. Percebam a vantagem adicional do remédio: se não der muito certo, o paciente restará calminho, resignado, tranquilo... Conformado! Logo, um bom negócio até quando fracassar. Será que o laboratório tem ações para serem adquiridas na bolsa?

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18.2.11

Voz de comando

409

Rubem Penz

A voz que indica os caminhos nos aparelhos de GPS, acessório cada vez mais presente nos automóveis, é predominantemente feminina. Quer dizer, há uma mulher dizendo a quem está ao volante para onde deve seguir. Também é uma mulher que indica os voos de partida e chegada nos aeroportos e, nas lojas, chama pelos pais de uma criança perdida. Isto não é coincidência. Uma das razões para que seja assim passa pela suavidade – a tonalidade das mulheres é mais agradável. Outra, e talvez mais importante, é que fomos, desde a infância, acostumados a ser mandados por mulheres. E, pensando bem, vozes masculinas no GPS podem gerar muitos problemas.

Por exemplo, uma moça independente, solteiríssima, cabeça feita, senhora de si desde os bancos universitários coloca uma voz de homem no GPS do carro. Ele, imediatamente, começa a lhe dar vozes de comando: vire ali, volte acolá, apanhe o caminho da esquerda. No primeiro trajeto é divertido. No terceiro dia, tolerável. Porém, não dou duas semanas para ela trocar por uma voz de mulher só para livrar-se daquele homem insuportável que pensa que pode mandar nela só porque acha que conhece o caminho. Isso sem falar no caso de, acidentalmente, ocorrer alguma falha na indicação. Se for homem, para ela, além de inesquecível, isso será imperdoável, ainda mais se coincidir com a TPM.

Para quem considera meu exemplo tendencioso, vamos dar um giro de cento e oitenta graus na motorista: ela agora é uma mulher de seus trinta e poucos, casada, mãe em tempo integral e dona de casa. Quando o GPS homem passa a distribuir suas ordens, algo no subconsciente começa a perturbar – não basta o marido para decidir os rumos de suas despesas, agora vem outro homem para mandar nela dentro do carro. Pior mesmo só se ela chegar à conclusão de que está com dois homens lhe torrando a paciência, e sem nenhum para lhe pegar no colo, deitar-lhe no solo e lhe fazer mulher (é delicioso citar Wando). Como é mais complicado trocar o marido, dará um jeito de alterar a voz do GPS.

Mas, digamos que o fabricante do GPS identifique no aparente autoritarismo chauvinista embutido no tom mais grave a raiz do problema, e resolva dotar o sistema com um locutor pleno de delicadeza, educação e tato. Algo que beire à afetação. Assim, seus comandos começariam com infalíveis pedidos de favor ou corretíssimas solicitações de licença. E sempre terminariam pontuados pela gratidão. Tipo: "Por obséquio, seria adequado dobrar à esquerda na próxima esquina. Muito obrigado." Ou: "Por favor, utilize se possível o próximo desvio para acessar a via lateral. Agradecido." Desastre. Para umas, estouraria a paciência pelo excesso de cerimônia. Outras considerariam, simplesmente, deboche.

Mas o GPS com voz masculina não é preterido apenas por mulheres. Lógico! Homem que é homem sabe o caminho melhor do que qualquer programador de meia tigela. E, por sua natureza competitiva, desacataria os comandos de outro homem só para provar que conhece uma rota alternativa mais curta, menos movimentada, duas vezes mais rápida. Melhor: deixaria o GPS desligado sempre que soubesse mais ou menos onde fica o endereço. Isto é, absolutamente o tempo inteiro. Ou alguém já viu um homem em sã consciência assumir que está perdido?

Quando o GPS com voz masculina ditar ordens em um carro com um casal, imagino que teremos briga na certa, conseqüência direta das reações naturais de macho alfa:

– Benhê, diminui a velocidade que ele disse para entrarmos na próxima avenida.

– Se acha que ele sabe mais, casa com ele, então...

Pois é... Por uma voz feminina, as mulheres compreendem as indicações de rota como sendo "dicas" da amiga eletrônica. E para os homens, são "pedidos" de uma mulher digital muito simpática que, inclusive, parece estar lhe dando mole. Logo, não custa atender. Tudo muito mais suave e palatável. Eu, pessoalmente, jamais ouvi um destes aparelhos com voz grossa.

Só para não perder a oportunidade, outra hipótese é ser o GPS com voz de mulher a mera confirmação da minha tese sobre as relações heterossexuais. Diz ela que o casamento é a união entre duas pessoas: uma é a que manda; a outra é o marido.


 
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10.2.11

Sensibilidade

408 
Rubem Penz
Paira uma lenda de serem os homens uns insensíveis, que apenas as mulheres guardam todos os detalhes, mas não é verdade. Não mesmo. Ou não mais. Orgulho-me em dizer, por exemplo, que lembro em pormenores o nosso primeiro encontro. A faísca do meu olhar contigo nos braços era tão visível e intensa e desejosa e promissora que espelhava-se na face dos demais, daqueles poucos que nos viram sair juntos. Alguns invejaram nosso encontro. Em outros brotou aquela melancolia vinda da apreciação de sua rara estampa – dali para adiante minha, de ninguém mais.
Mas nada aconteceu na primeira noite. Já não me consome a urgência da juventude, uma sem cerimônia para a entrega imediata ao prazer. Uma vertigem, uma embriaguez desenfreada e sedenta. Sofreguidão. Engolir-se tanto e tão rápido que, em igual velocidade, há o fastio. Todas, assim, logo soam vazias. Homens experientes permitem que o tempo de espera acresça desejo. E nós estávamos entregues um ao outro apenas na manhã seguinte. Uma longa e ensolarada manhã de sábado. Antes do almoço, para abrir o apetite. Você dividindo meus lábios com o óleo de oliva que escorreu no dedo enquanto temperava a salada.
Neste ritmo, que respeita o anseio e as pausas, seguiu nossa relação. Sem hora marcada, sem dependência – vício seria a melhor palavra, e fugimos dela com medo da verdade. Ora escutando um jazz, ora em silêncio. Às vezes cedo, outras antes que parecesse tarde demais. Sempre lentamente, jamais começando no momento em que houvesse pressa para nos deixarmos. Para espanto dos que me conheceram em outro momento da vida, estivemos juntos por longo tempo. Inimaginável tempo. Ah, o que faz de diferença um pouco de amadurecimento em um homem... Eu mesmo cheguei a estranhar, nunca permanecera tanto.
Eterno enquanto dure. Vinícius de Moraes. Poeta que não foi de uma – foi de todas! Ensinou que tudo tem seu tempo, o esgotamento é inevitável. Agora, frente a frente, desconsiderando os conselhos do bom malandro, abro meu coração para confissões que nunca devemos fazer: muitas vezes deixei de lhe procurar justamente para retardar o fim. Conscientemente. Talvez na mais avessa das provas de afeição. E fui infiel. Pior: na rua, estive entregue aos excessos que tanto e mais sonegava em casa. Canalhice total. Não me odeie. Ódio, devemos ter do infalível fim. Sejamos sinceros, já não há trocas possíveis. Entre nós, restou o gelo. Cumpriu-se o ciclo. Cada um, a seu modo, entrará em processo de reciclagem.
Meu futuro você já sabe – sempre sabem. Outras, tão novas quanto você foi um dia, brilham e me sorriem enquanto passo. Em breve, depois de lhe ver partir, ou mesmo antes, terei companhia. Com bastante dinheiro é fácil, dirá. Sou obrigado a concordar. Mas serão só seus, exclusivamente seus, os tantos momentos em que estivemos juntos. Adeus. Até nunca mais.
Escorre a última gota feito lágrima tardia sobre a pedra. Goodbye minha querida garrafa de uísque 18 anos.  

4.2.11

Número 407

Et Cetera

Rubem Penz

Soube de uma história inverídica que, mesmo que fosse mentira deslavada, bem que pareceria verdade. Um amigo bem desolado procurou por Áureo (ocultarei sua identidade neste nome fictício). Pediu para sentarem em um lugar discreto, pois haveria um tema delicado para abordar. Áureo ficou levemente apreensivo e não deixou que chegassem ao assunto antes de dois ou três chopinhos, para dar uma relaxada. Deu certo, pois ambos deram risadas relembrando passagens da vida escolar. Depois de julgar que o clima estava mais suave, Áureo se fez ouvidos. Depressivo outra vez, o amigo chegou ao ponto: Sabe – falou acabrunhado e com a voz fugidia – notei que eu estou sempre, sempre, sempre lá no etc.

Atormentava-o a certeza de nunca ser mais do que um entre tantos, justamente aqueles mesmos sempre presentes, contados, esperados, desejados até, mas jamais nomeados. Sentia-se o eterno dançarino do corpo de baile. Figurante em cena. Rosto buscando desesperadamente a brecha entre os ombros no fundo da fotografia, mas nem assim sendo reconhecido. E, para piorar, carregara a família para o mesmo destino. Não que almejasse pódio, prêmios e honrarias. Estava consciente de que nunca galgara a altitude dos campeões. Seu pleito era mais modesto: bastava-lhe uma citação nominal, por menor que fosse.

Confessou que nada disso fora muito importante até então. Mas agora que os filhos estavam crescidos, cada vez mais informados e críticos, cobravam-no a suposta invisibilidade a todo instante. Ué, você e a mamãe não estavam nesta festa, papai? – disse uma, folheando a revista. Este ocupando meia página de jornal não é o seu colega de trabalho? – falou o outro. Não entendo, papai: pagaram uma nota para estarem no camarote do show, entrevistaram quatro ou cinco pessoas e vocês só apareceram nas frações de segundo de uma tomada panorâmica típica de edição... – reclamou a mais velha.

Áureo colocou a mão no ombro do amigo e disse compreender. Ponderou que a geração dos seus filhos estava sendo criada em um momento histórico diferente, até certo ponto doentio. A massificação das mídias, o fenômeno das redes sociais e sites tipo youtube deram para eles a falsa impressão de que são melhores os homens e mulheres que aparecem mais do que os outros. Porém, o culto à celebridade instantânea, tipo Big Brother, na realidade criava ídolos sem critério. E que isso tornou o verdadeiro mérito da visibilidade algo até certo ponto questionável. Por fim, disse que não cansava de denunciar isso nas diversas entrevistas que dava na TV, no rádio e no jornal.

Naquele instante, Áureo sentiu que pisara na bola. Também se arrependeu dos tantos chopes que havia insistido em consumirem. O amigo bateu com força na mesa e esbravejou que era disso mesmo que ele estava falando, e que não entendia como um deles estivera continuamente citado em tudo o quanto era oportunidade, enquanto o outro, sempre ao seu lado, permanecia invisível. Anonimamente, trabalhara para eleger Áureo representante de turma, conselheiro no clube, presidente na associação, delegado nos congressos... E eu? Sou menos do que um cão – falou aos prantos – pois ele ainda ganha afagos.

Foi quando o amigo, num rompante, apanhou uma faca na mesa ao lado. Matou Áureo em cena violenta, estúpida, chocante.

No dia seguinte, todos os conhecidos foram surpreendidos quando viram o jornal. No rodapé, o clube e a associação pagaram belos anúncios fúnebres. Áureo também apareceu em perfil extenso e detalhado na coluna de obituário. Enquanto isso, a manchete de capa estampava garrafal: "Dezessete mortes em fim de semana violento". Na fotografia, o destaque foi para uma chacina em boca de fumo. No corpo da notícia apareceu o caso do ladrão em fuga que bateu no ônibus que voltava de uma romaria, o afogamento de um operário na estação de tratamento de água, o filho do comerciante que fora baleado diante do pai etc.


28.1.11

Número 406

Outro homem
Rubem Penz
Marco Aurélio e Eunice já haviam ultrapassado muitas crises. A dos sete anos, o nascimento dos gêmeos, rumores de outra (nunca admitidos nem bem explicados), reveses financeiros, a síndrome do ninho vazio... Ultimatos não chegavam a ser novidade no casal.
– Marco Aurélio, quero o divórcio!
– Por que isso agora, minha querida?
– É que só hoje descobri que tenho outro homem.
– Peraí: se você tem outro homem, eu é quem deveria descobrir, não acha?
– Não é "outro" outro homem, seu leviano! Não sou dessas, viu?! É você o outro homem.
– Eunice, se o problema é a calvície, você bem lembra do meu pai que...
– Não é a calvície, Marco Aurélio.
– ...a dieta comecei recém terça-feira e ainda não deu para...
– Pára! Me leve a sério ao menos uma só vez, Marco Aurélio? Posso falar?
– Ok: você tem outro homem. Explique.
– Sabe o que me encantava em você, Marco Aurélio? O temperamento cordial, a sensibilidade, o fato de você ser caseiro... Até meio tímido. Eu sempre senti em você uma preocupação verdadeira por mim e por nossos filhos, todos nós na sua vista. Até dizia para minhas amigas durante as viagens: "O Marco Aurélio faz o tipo paternal, mas isso tem lá suas vantagens. Eu aqui em Barcelona, e ele lá em casa, cuidando das crianças".
– Se o problema é eu ter incentivado os meninos para estudarem fora, eu...
– Não terminei, Marco Aurélio!
– Certo, Eunice. E onde entra o outro homem?
– Pois hoje descobri, seu canalha sem vergonha, que na verdade você é completamente outro fora da minha vista. Inovador, expansivo e, Deus me livre, um galinha! Você acha que eu esqueci daquela sirigaita da Constância? Jamais! Você fica pra cima e pra baixo e só lembra da família quando põe o pé em casa. No doce lar é o Marco Aurélio querido e companheiro. Um duas caras, isso sim!
– Eunice, requentar a história da Constância nessas alturas... E isso de eu ser outro, agora? Não faz o menor sentido!
– Não fazia sentido com o sol em Câncer, seu nascido em 16 de julho! Mas estão dizendo que você é de Gêmeos, Marco Aurélio! Fizeram outros cálculos e mudou tudo. Gêmeos não é Câncer, Marco Aurélio. E sabe-se lá se sou compatível com Gêmeos! Olha aqui a reportagem!
– Nossa, é mesmo... Será que isso é sério? Que coisa maluca! Se não sou mais Câncer agora você é, deixa ver...
– Eu nada, devolve aqui.
– Como nada? Tira a mão! 30 de novembro, me casei com...
Uma amiga astróloga desmentiu por telefone a matéria e disse que era bobagem: os signos astrológicos não mudaram não. E ainda confidenciou à Eunice que Constância seguia morando no Canadá. Marco Aurélio preparou um delicioso jantar para comemorarem a reconciliação. Os gêmeos ligaram de Londres, mas ninguém atendeu. O signo da Serpente dera ideias afrodisíacas ao outro.

21.1.11

Número 405

A primeira crise              

Rubem Penz

Mal o presidente Lula deixou o comando da Nação, antes mesmo de notarmos sua ausência de fato (para muitos, inclusive para o próprio, a ficha demorará a cair), a atividade que mais movimentou mão de obra em seus oito anos de mandato já promete afundar em uma grave onda de desemprego. E a culpa deste fenômeno deve ser atribuída em proporções equânimes ao ex-presidente e à atual mandatária, recém eleita. Não estou falando da construção civil, que espera um 2011 auspicioso. Tampouco da indústria e do comércio, ainda embalados na onda da ascensão da classe C. O rebanho das vacas magras pastará, eu garanto, no campo da mídia.

Luiz Inácio, quando subiu a rampa do Planalto, pareceu não ter encontrado lá no alto um gabinete. Primeiro, galgou um palanque. Depois, um palco. Correligionários e oposição foram unânimes em classificar sua passagem pelo mais alto cargo da República como sendo espetacular. Incrivelmente, criticavam-no e o louvam utilizando igual termo. Afinal, mais do que um líder, Lula foi um astro. Desde o primeiro minuto da manhã, até o recostar no travesseiro, nosso presidente fazia a festa dos jornalistas de plantão. E, para seguí-lo em suas constantes viagens, os veículos precisaram montar muitas escalas de profissionais.

Se existiu algum investimento seguro nos últimos oito anos, foi o de ter repórteres e fotógrafos colados em Lula. O homem era uma usina de notícias. Sobre sua cabeça pousaram centenas de chapéus, para todos os gostos. Se recebesse motoqueiros, pousava de easy rider. Em uma plataforma de petróleo, vestia macacão, capacete e pintava as mãos de negro. Entre atletas, estava de abrigo esportivo. Opinava sobre qualquer notícia produzida no globo, criava metáforas definitivas sobre os mais variados temas. Para cada líder mundial era reservada uma graça, em cada viagem oficial era produzido um fato. Ou muitos. Fosse para rir, chorar ou esbravejar; provocando encantamento ou indignação, nunca antes na história desse país alguém foi mais disponível.

No final de semana passado, Dilma Rousseff esteve em Porto Alegre. Tudo indica que isso será uma rotina, pois há uma neta recém nascida, o ex-marido é seu conselheiro e, enfim, parecem fortes os laços de família. Agora eu pergunto: Dilma se vestiu de prenda? Foi ao Galpão Crioulo e fez um sarandeio enquanto um peão dançava a Chula? Ao menos comentou sobre o calor que faz em nosso verão? Nada. As únicas reportagens produzidas informaram do aparato de segurança presidencial e que um rapaz de uma empresa que conserta aquecedores de água foi chamado para um reparo em sua residência (tudo assim, indeterminado mesmo). E nenhuma foto. Muito menos de Dilma, protagonista, alcançando a chave de fendas ao operário. Este último, aliás, soube se tratar de uma cliente ilustre apenas depois, pela imprensa.

Voilá! Apagaram-se as luzes da ribalta, acendeu a luz vermelha nas redações. Alerta geral: nossa presidente, ao que tudo indica, candidatou-se para baixar a cabeça e trabalhar. E, como sabe qualquer autor de novela, com as personagens trabalhando não há trama que se sustente. Imaginaram um BBB ambientado em um escritório onde todos estivessem ocupados? Um desastre! Logo, aquela Dilma onipresente, sorridente e falante, quase luliforme, era pura estratégia de campanha – com eficiência comprovada, diga-se. Na vida real, a presidente preserva sua intimidade e tem alma de coadjuvante. A TV, o rádio e o jornal prescindirão de tanta gente em sua cola. E nenhum patrão gosta de pagar funcionários ociosos.

Dilma Rousseff poderá cumprir um mandato excelente, correto, sofrível ou desastroso – só o futuro dirá. Mas nada indica que teremos outro governo espetacular. Sem show, não há ibope. Sem ibope, não há empregos. Fez-se o silêncio nas redações. Os amigos jornalistas que me perdoem, mas habitavam uma bolha especulativa inflada pelo ego do presidente anterior. Seguindo a cartilha de RH, aproveitem esta crise para buscar novas oportunidades. Quem sabe na editoria de esporte? Como diria Lula, craque de verdade joga nas onze.

 

14.1.11

Número 404

Está na cara
Rubem Penz
Todos os dias, a qualquer momento, algo pode dar errado. Seja por falha humana, coincidência infeliz, desgaste dos materiais ou exceções da natureza, aquilo que foi planejado até a minúcia ocorre de maneira diferente. Todos os dias, a qualquer momento, ao imaginarmos que estamos com a situação sob controle, na verdade, temos apenas fé. Acreditar e prevenir-se são os nossos limites. Porém, algo sempre me intrigou: por que as coisas dão mais erradas para uns do que para outros? A resposta pode estar debaixo do nosso nariz.
Um dos pilares da boa educação (formal e informal) é a prevenção. Crescemos escutando advertências: pode dar choque, isso quebra, assim vai cair, cuidado, devagar... Se não estudar, perde o ano. Fumar faz mal à saúde. Se beber, não dirija.  Há, também, os avisos propositivos: use camisinha, pegue um agasalho, pergunte a quem conhece, leia antes o manual de instruções etc. Quando temos plena consciência dos riscos e, mesmo assim, seguimos em frente, reclamar da sorte é pura perda de tempo.
Contudo, o que raramente aparece classificado no quesito "atitudes de prevenção" são os bons modos – um erro. Creia: evitamos acidentes, falhas e problemas usando diariamente expressões como bom dia, com licença e obrigado. E alargamos as chances de acertos exponencialmente quando as palavras são acompanhadas por um sorriso fácil. Criar uma atmosfera de respeito, prudência e simpatia contamina o entorno, mantendo a comunicação mais clara e produtiva. E contribui para baixar o índice de stress.
Este tema nasceu de uma cena da semana passada. Uma senhora muito casmurra e seca fez seu pedido em um restaurante de praça de alimentação de shopping. Pedido extenso, complexo, para uma família inteira. Durante o tempo em que eu almoçava, ela voltou três ou quatro vezes para reclamações, cada vez mais mal humorada. Esbravejava que nunca, nunca!, acertavam seus pedidos. Desde a chegada, eu havia reparado em seus traços: tudo em sua face apontava para baixo. Sabe as pessoas com uma nuvem de chuva sobre a cabeça? Dessas. Eis a razão de errarem toda hora os seus pedidos!
Um rosto invariavelmente severo, descontente e triste não tonifica os músculos envolvidos no sorriso. Logo, fica cada vez mais custoso sorrir. Cansa. Dói. O problema são os recados que se está mandando ao interlocutor: não gosto de ti, desconfio de ti, te desprezo. Ao agir assim, desejar que tudo aconteça sempre perfeito é o mesmo que acreditar que não tropeçaremos quando andamos arrastando os pés! A vida, como as calçadas, tem imperfeições. Mas há quem tropece menos. E, mesmo ao chutar a pedra, ainda tenha ânimo para rir de sua falha, tonificando a musculatura da bochecha até a alma.
Na vasta literatura de autoajuda encontramos menções à "energia" que carregamos conosco. Uma boa maneira de explicar a fé: pensando positivo (acreditando no êxito) veríamos o sucesso vicejar. Do contrário, tudo estaria fadado ao infortúnio e a vida seria uma eterna provação. Bacana, místico... Eu mesmo sou alguém propenso a dar valor àquilo que não podemos ver ou comprovar. Até um pedinte de sinaleira já me classificou de espiritualizado – quem sabe ele enxerga além da moeda que lhe dão... Como já disse, tudo pode dar errado a qualquer momento, e acreditar na magia dos bons sentimentos é reconfortante.
Mesmo assim, como posso estar diante de um leitor agnóstico, e isso merece respeito, ofereço uma dica para as coisas darem menos errado na vida. Tipo conselho de mãe. Sorria! De modo largo, com frequência, verdadeiramente. Senão por prazer, ao menos por musculação. Agindo desta forma será menos pesado sorrir para emoldurar nossas trocas mais singelas com o próximo. E, sem mágica, tudo vai melhorar. Se tal atitude funciona? Ora, não está na cara?