4.12.08

Número 294

ULTIMATO

Enquanto penso, contrações involuntárias – mas não menos precisas – se ocupam em manter a musculatura postural com o tônus adequado para a posição de equilíbrio em que me encontro, de pé, ereto. Trabalham em um sistema de economia de energia: não tenho câimbras nem desabo ao chão. Há uma certa pose.

Enquanto penso, minhas pálpebras disparam piscares ocasionais na medida em que os olhos pedem um pouco de lubrificação. As pupilas se contraem e dilatam para ajustarem-se à luz do ambiente. Adrenalina. Nenhum movimento escapa de minha vista: nem mesmo aquele captado pela visão periférica. Permaneço atento.

Enquanto penso, o diafragma e os demais músculos auxiliares da respiração nem cogitam suspender seu ofício. Os pulmões, inundados de ar a cada onda respiratória, tratam de cumprir sua função de reter o oxigênio para, via corrente sangüínea, contemplar cada uma das células do corpo. Tudo no devido tempo. Ainda vivo.

Enquanto penso, movimentos peristálticos transportam lentamente aquilo que fora antes chamado de almoço por todos os muitos metros de intestino. Estão sendo absorvidos os nutrientes para, em algumas horas, ser descartado o restante. Antes disso, os esfíncteres estarão sob controle de um piloto automático – este que é responsável, entre outras atribuições, por não me fazer passar vergonha. Me controlo.

Enquanto penso, minhas unhas crescem, minha barba cresce, muitas células nascem e morrem. Alguns fios de cabelo caem. Pior: fora de qualquer previsão, uns caem para sempre. Outros, nossa!, antes escuros, estão nascendo brancos. Minha estatura diminui frações de milímetro a cada dia, vítima da implacável força gravitacional. Envelhecerei?

Enquanto penso, o coração compõe um número finito, mas indeterminado, de contrações. É uma ampulheta girada ainda no útero materno, escorrendo a areia da vida de grão em grão, sem volta, sem piedade. Se houvesse silêncio, escutaria suas batidas, teria consciência de seu ritmo, saberia de sua urgência. E nem assim faria muita diferença. Pulso. Repulso.

Enquanto penso, tudo em mim tem uma razão de ser, de estar e de acontecer, independente de meu raciocínio, ou mesmo apesar dele. A saliva continua brotando em minha boca (engulo), a cera em meus ouvidos, o suor na pele, diversos mucos. Mas essa não é a boa ou a má notícia. Quem quer saber?

Enquanto penso, tu me olhas com ar inquisitório, almejando algo mais do que uma existência instintiva, medular, peristáltica – justo essas que agora se mostram. E a lágrima que nasce não será capaz de saciar a sede das tuas expectativas. É isso que agora penso. Penso, também, que o ácido a me arder o estômago é uma resposta insuficiente, pois apenas eu o noto. E que ruborizar será pouco.

Enquanto estou em teu mirar (enquanto penso), meu silêncio aquece a arma que tens na mão. Comicha o dedo que está no gatilho. Agrava nosso impasse. Enquanto tudo no meu corpo funciona à revelia do pensamento, dispensando-o, paradoxalmente, o corpo depende mais do que nunca do que passa em meus pensamentos.

Enquanto penso, tu não pensas.

Luto.

5 comentários:

Gisele Cristina Voss disse...

um corpo que pensa, sem pensar...
e um fim que faz quem não pensa, começar a refletir..

muito cativante este texto!

e hj q percebi o pandeiro no meio dos livros da foto! genial...

Rubem Penz disse...

Olá Gisele!

Muito grato! E, sabe o pandeirinho no meio dos livros? Pois ele sou eu!

Estive por aí (a caminho de Lagoa Vermelha)e, moscão, não mandei mensagens dizendo isso. Podíamos ter reunido um pessoalzinho...

Abraço,
Rubem

Anônimo disse...

Em primeiro lugar meu querido amigo, quero cumprimentar pelos teus conhecimentos a respeito da fisiologia humana. Está um DOUTOR. Perfeito. E o final para mim foi surpeendente. Jamais pensaria que acabaria como acabou. Mas enfim a realidade do cotidiano é esta mesmo. Cheguei a me emocionar.
Ótimo fim de semana e continues assim. Cada vez melhor do que imagina.
Beijos extensivos à queida família
Themis
PS a Ivanise me pediu para mandar alguns escritos meus. Ela amou a crônica do Dedo e o Medo e também que chegou a chorar com a poesia do menino de rua. Fiquei contente, Continuo escrevendo prosa poética
e iniciando nova crônica sobre o poder do dinheiro. Quando acabar te envio.

Anônimo disse...

Rubem, não consigo parar de ler o Ultimato. Cada vez que leio, descubro algo novo e me delicio com a precisão de cada termo que colocas. Acho difícil uma crônica melhor do que esta, embora de ti nada duvide. Mandei para a minha lista de endereços, mas só de pessoas letradas.
Parabéns, parabéns, parabéns.
Que bom ter tido um professor como tu e ter um amigo como tu, no meu seleto rol de amizades.
Beijos
Themis
PS esta deve ser publicada em todos os jornais possíveis.

Rubem Penz disse...

Themis,
Muito grato, mesmo!

Muita bondade sua...

Abraços,
Rubem

Postar um comentário

Deixe aqui sua opinião.