5.10.12

Titanic

Número 493

Rubem Penz

Falsa paz submarina. Jaz entre os corais,

num barco submerso, o que não confesso.

Fátima Guedes

Ao deixarem o cais, quando da derradeira viagem, já formavam um casal tendendo à decomposição. Apodreciam por dentro, pelas vísceras do amor – nunca nada esteve exposto à flor da pele. Mas havia outros sentimentos em jogo. Integridade. Quase uma fleuma. Só sofriam em suas companhias. A sós, por sua vez – ou cada um por si –, resgatavam a alegria que nunca perderam.

Por isso tanta frieza, pose, paciência. Mar do Norte. Sem gelar os corpos, sem solidão ou silêncio, o processo de putrefação iria até o ponto de toda carne estar fétida. Hálito de cemitério, falência dupla, múltipla, explícita. Eles sofriam de um câncer anímico. Célula matando célula em consumo interno. Conservados. Abaixo do zero.

Falíveis, falharam. Está a folhas tantas do diário de bordo, página que nem buscam encontrar. Mas podem. Lá consta e a caligrafia denuncia. Repartir culpas já não consola. Desejá-las apenas para si não elucidaria nada, principalmente quando as explicações perderam a faculdade do resgate individual ou mútuo. Denunciar o outro, enfim, ou desfilar o rosário de queixas, afoga a razão.

E tudo é razoável, mesmo fora do plano. Futuro? Passo... Amargo, caro, intransferível. A memória muito sonega porque poucos sobreviveriam a uma minuciosa auditoria. Promissórias para um horizonte pouco alvissareiro. Iceberg. Mas o saldo em Celsius negativo suspende as promessas pré-datadas. Uma saída é buscar a recíproca dádiva: perdoarem-se a dívida. (A)moratória.

Uma força insuspeitada mantém de pé o castelo de cartas em meio ao naufrágio. Estranho equilíbrio entre passado e presente. De um lado, ouro e copas. De outro, espadas e paus. E pedras, fim do caminho. Boiam os restos de tocos. Poucos. Sozinhos? Não: irmanados por uma consciência pesada leve. Liquidez. Fundo pedido.

Por dentro tudo se precipita. De fora parece lento. É de se supor: um transatlântico não vai a pique de repente. A orquestra não parou. Nem todos estão a salvo. Nem tudo está perdido. Já foram os anéis, conta-se com os dedos. Dado momento, dão-se as mãos. Irmãos. Daqui a pouco darão adeus. O desejo não mais respira, afogado nos porões. Descartada a esperança boca a boca.

Frio. Manter-se frio. Levar-se a salvo, salva-vidas. O que há de carente ficará pelo caminho, desde que no tempo certo. Dor suportável. Era. Homens ao mar! O sempre se foi para sempre ser.


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Um comentário:

Zu Fortes disse...

Nem engraçado, nem interessante, nem legal. Apenas triste.

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