3.9.10

Número 385

NÃO SEI EM QUEM VOTAR*

Rubem Penz

 

Esta é uma obra dedicada ao nosso sistema político e partidário que, mesmo imperfeito, não pode ser responsabilizado pelas falhas dos homens que o denigrem ainda mais a cada pleito. Nasceu para ser interpretada por um eleitor e um político – candidato ao Legislativo ou Executivo, tanto faz. Como foi escrita para ambos, é possível depreender o nome da dupla: Caracu. O político é o cara. O eleitor entra com o talento que lhe resta.

 

Eleitor: — Eu sei que vou votar...

Político: — Eu sei que vais votar...

Eleitor: — Por toda a minha vida eu vou votar...

Político: — É nossa salvação regimentar.

Eleitor: — Em cada escurtínio eu vou votar...

Político: — Encare o sacrifício de votar.

Ambos: — Democraticamente, assim se vai votar!

 

Eleitor: — E cada voto meu

Político: — E cada voto teu

Eleitor: — Será

Político: — Será

Eleitor: — Pra mal dizer

Político: — Pra eu poder

Eleitor: — eu não saber votar...

Político: — só me locupletar...

Ambos: — ... por toda minha vida!

 

Eleitor: — Eu sei que vou chorar

Político: — Eu sei que vais chorar

Eleitor: — A cada ausência tua, vou chorar

Político: — A cada ausência minha, vais chorar

Eleitor: — Mas cada falcatrua há de custar

Político: — Mas cada falcatrua há de gerar

Eleitor: — Bem mais que tua ausência me custou

Político: — Bem mais do que a campanha me custou

 

Eleitor: — Eu sei que vou sofrer

Político: — Eu sei enriquecer

Eleitor: — A eterna desventura de viver

Político: — Na eterna boaventura de viver

Eleitor: — A espera de te ver ao lado meu

Político: — A espera de viver salvando o meu

Ambos: — Por toda nossa vida...

 

*Paródia propositalmente sofrível, pois sofrida, de Eu sei que vou te amar, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes

 


27.8.10

Número 384

DE BAIXO PARA CIMA

Rubem Penz

Em termos de peças íntimas, a primeira lembrança que nos chega à mente é o par formado pela calcinha e sutiã. Não para menos: em shoppings, há muitas lojas especializadas em lingeries. E, naquelas de departamentos, um andar quase inteiro ostentando uma variedade fetichista e saborosa de modelos, cores e tamanhos. Falando pelos homens, por mais que nos agrade tamanha abundância e beleza (como abundância coube bem no contexto!), nós sempre olhamos este exagero das mulheres com desconfiança: seria para tanto?

Pois, por uma coincidência de calendário, poucos dias depois de eu comprar umas três ou quatro cuecas novas, ganhei outras seis. O resultado desta multiplicação fenomenal no closet foi o sumiço de qualquer vestígio de elástico frouxo ou cor desmaiada de minha intimidade. De um dia para o outro, vivo uma rotina carefree: estou sempre com a sensação de uma cueca recém tirada da gaveta... Da loja! Incomodado com isso ficava meu avô! Quase cogito a hipótese de depilar as axilas, só para abanar para as câmeras com aquele sorriso iluminado das moças nas propagandas de TV. Descontando o exagero retórico, se estiver em um hotel e disparar o alarme de incêndio no meio da madrugada, garanto que abandono o quarto cheio de estilo!

Parece mentira, mas andar pela rua com cuecas novas é quase como ter estudado o suficiente para uma prova: quem olha para ti, percebe uma carga extra de segurança em cada passo. O mirar é sereno; a fleuma, fácil. Pouco ou nada importa a realidade crua e fria de que, provavelmente, ninguém jamais saberá de onde nasce tanta confiança – não esqueçamos de que sou alguém comprometido. O que vale no momento é experimentar aquilo que os olhos não veem, mas as virilhas sentem. É como estar com a arma engatilhada, o jantar na mesa, o carro engatado, a resposta na ponta da língua. Totalmente em dia!

Falando em tese (a cada linha dou mais corda para o enforcamento...), estar despido das calças, mesmo nos momentos em que isso é planejado, esperado, desejado até, sempre é momento de reconhecida tensão. Seria muita ingenuidade masculina desprezar a evidente valorização das nossas roupas de baixo por parte das mulheres. Mesmo no lusco-fusco ou no vuco-vuco, sob a diáfana luz do abajur cor de carne (Ritchie vive!), no relance de um olhar furtivo para a janela do vizinho, as fêmeas da espécie são capazes de condenar um homem ao lixo erótico-afetivo no caso de ele estar descuidado. Vivemos dias de BBB: vacilou e a (má) fama se espalha. Um pouco mais de barriga ou menos de cabelo é contingência biológica. Já cueca furada, ah não!, um relaxamento imperdoável.

Restaria, ainda, a última confissão antes de concluir – como se já não estivesse fazendo uma exposição suficiente de minha intimidade... As seis cuecas foram presente de mamãe. Pior: antes de ela comprar, ligou-me advertindo que, segundo o balconista, peças íntimas não podem ser trocadas. Por isso, queria saber se eu tinha certeza total e absoluta de que usava tamanho P, como lhe dissera. Olhos de mãe são tão otimistas... Meu porte físico fica bastante claro para qualquer um, mesmo nas roupas de cima. Não seria razoável pretender desmenti-lo justo nas roupas de baixo. No fundo, estaria enganando a quem?


20.8.10

Número 383

RECALL
Rubem Penz

Do CEO, para todos:

Comunicado relevante,

1. Em virtude do enorme sucesso de nosso produto Vida Inteligente, hoje espalhado em cada um dos quatro cantos do planeta;

2. Na certeza de ele ser top de linha e motivo de júbilo para nosso departamento de Criação;

3. Em respeito aos muitos êxitos angariados graças à atuação de Vida Inteligente ao longo dos séculos e séculos amém;

4. Reconhecendo que não há planos para um substituto semelhante no curto e médio prazo, ou mesmo fabricante concorrente;

Noticiamos o início de um inadiável procedimento de recall, particularmente indicado aos modelos que saíram da fábrica até o final do Século XX.

Nossos laboratórios constataram um gravíssimo e recorrente problema na peça denominada Consciência, que vem apresentando muitos defeitos nas seguintes situações de uso:

1. Diante de lucro abusivo. Defeito: primeiro, desliga-se por critérios escusos. Depois, parece se apagar de vez – mesmo quando acionada pela coletividade, a Consciência jamais responde outra vez.

2. Diante do poder. Defeito: trabalha de modo variante e em grandeza inversamente proporcional: quanto mais poder, menos Consciência; quanto menos poder, mais Consciência. E de nada adianta toda Consciência do mundo sem nenhum poder.

3. Diante da miséria. Duplo defeito: se a miséria é do outro, a Consciência não dispara a esperada solidariedade. No máximo tem alcançado níveis mínimos – insuficientes – de compaixão. Quando é o portador de Vida Inteligente que se encontra em situação de miséria, a Consciência quebra em forma de ponta, ferindo quem estiver por perto.

4. Diante da Natureza. Defeito: a Consciência não lê as prioridades de longo prazo do meio ambiente, comandando ações contrárias à preservação da espécie, todas elas no âmbito do conforto e menor esforço.

Além disso, testes nas bancadas dos direitos e dos deveres estão apresentando leituras antagônicas, claro sinal de desequilíbrio: em direitos, a Consciência gera reclamatórias e protestos com e sem fundamento. Na plataforma dos deveres, liga-se e se desliga seguindo o comando da conveniência, o qual não foi projetado para melhor cumprir essa tarefa.

Por tudo acima exposto, caso você tenha nascido no Século XX, perca uns minutos do seu valioso dia encaminhando sua Consciência para um profundo exame e, quem sabe, substituição gratuita. Não precisa, necessariamente, dirigir-se até a oficina autorizada – item optativo no certificado de garantia. Basta fechar os olhos e ficar em silêncio por alguns instantes, pensando na vida.

Contando com a adesão de todos, muito obrigado.

PS: quem nasceu no Século XXI pode muito bem estar com os mesmos defeitos de Consciência, só que ainda escondidos pela imaturidade. Em poucos anos avaliaremos a necessidade de outro recall.

 



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13.8.10

Número 382

DEUS E O DIABO NA SALA DE ESTAR

Ela jamais pensara em contratar um profissional desse tipo, mas temia ficar mal falada entre as amigas – em breve seria a única a não recorrer aos serviços de um deles. Cercou-se de mil recomendações sobre Gustavo: colocar alguém para dentro de casa, nos dias de hoje, não deveria ser algo feito sem muitas precauções.

Nervosa, porém decidida, esperava sua chegada para as dez da manhã. Enquanto isso, pipocou de peça em peça da casa – consultou e-mails no escritório, fez uma nota na lista de supermercado grudada na geladeira, correu até o banheiro para ver se a toalha do júnior estava estendida, foi ao quarto para ligar ao marceneiro e lembrá-lo que havia desmarcado a visita de hoje (Deus nos livre!). Por fim, acabou voltando para o computador... Minutos eternos!

Gustavo chegou britânico. Alto, forte e, mais do que tudo, sorridente como homem em comercial de carro esportivo. Disse que conhecia o prédio, pois atendera alguém durante o verão passado inteiro. Desde os meados de outubro, na verdade. Ela não queria detalhes. Bateu palminhas como quem diz e daí, o que fazemos primeiro, mas foi contida em seu ímpeto por um olhar mais sério: combinações prévias antecederiam qualquer movimento da parte deles dois – partindo do pressuposto que seriam apenas eles, senão o preço mudaria, é claro.

— Primeiro: onde a senhora quer?

— Senhora não. Por favor, use você!

— Sim, melhor: onde você quer?

— Como assim, onde? – parecia morrer de tão nervosa.

O rapaz respondeu que era polivalente. Valia mais o conforto e ela sentir-se bem. Uma cliente, por exemplo, escolhera a cozinha. Outras, menos inibidas, pediam que fossem para a varanda. Por ele, tudo bem.

— Aqui na sala, pode ser? – ela perguntou meio sem graça.

— Ótimo! Será com música?

A dona da casa pensou por um segundo, mas correu em responder que não, ou sim se ficar estranho do outro jeito. O mais importante, pensava, era ficar livre dos detalhes das outras, que ele soltava sem o menor pudor. No futuro, falaria dela, também? Ao menos não citava nomes... Enquanto ele tirava a jaqueta e as calças, ela tomou coragem:

— Desculpe a ansiedade: podemos começar agora, não é? Eu estou pronta desde as oito e meia!

— Ainda falta o mais importante: vamos fazer falando ou em silêncio?

— Qual a diferença? — perguntou desculpando-se, era sua primeira vez.

— Bom, falando eu digo qual a posição, o que faremos, como faremos, proponho variações, dito o ritmo, encorajo... Tudo aquilo, sabe?

— Sei, sim, claro. Parece ótimo. Mas, e em silêncio?

— Ah, gosto mais! Mas precisa de olho no olho, confiança, sensibilidade, toque. Eu começo e a se... Digo, você me segue. Eu troco você troca. Eu acelero...

— ... e eu quero assim, e quero agora! – puxando o homem pelo braço.

Normélia tinha razão: Gustavo não era um personal. O diabo era deus!

 



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5.8.10

Número 381

O CRAVO E A ROSA

Diz a cantiga popular que o cravo brigou com a rosa debaixo de uma sacada. E, como acontece quando dois amantes digladiam, o cravo saiu ferido e a pobre rosa despedaçada. No segundo verso, o cravo ficou doente e, condoída, rosa foi visitar. O cravo teve um desmaio e a rosa se pôs a chorar. Pura tragédia shakespeareana! Flores significando juventude, doenças aludindo a impossibilidade do “felizes para sempre”, temperada por tardio arrependimento pela desavença. Perfeição! Mas há detalhes sórdidos que permeiam essa história.

Fontes bem adubadas me confidenciaram que o pivô da briga entre o cravo e a rosa foi o sedutor gerânio. Begônia, amiga invejosa dos namorados ‒ e que não via um cravo fazia horas ‒, dissipou pelas patas de uma abelha o boato de que gerânio convidara rosa para entrelaçarem raízes atrás do xaxim das orquídeas. Cravo ficou pistilo da vida e foi tomar satisfações com sua querida. Quanto mais ele a acusava, mais murcha ficava a pobre flor. Teria morrido seca se não fosse socorrida por petúnia, a petulante. Esta, que não era exatamente flor que se cheirasse, ao menos tinha uma qualidade: defendia as mulheres de modo incondicional. Ainda mais uma corola como a rosa.

Foi quando o jogo começou a virar: petúnia resgatou uma desconfiança antiga, a qual implicava cravo em um suspeitíssimo brinquedo de bem-me-quer e mal-me-quer com a margarida, lá atrás da sirigaita samambaia. Cravo ficou branco. Porém, como todo homem com culpa no cartório, defendeu-se acusando: essa história teria sido criada pela maria-sem-vergonha, depois de eles terem rompido seu conturbado relacionamento. Cravo queria saber como flores de buquê tão refinado poderiam dar ouvidos àquela florzinha desqualificada e rampeira? A resposta de petúnia não deixou seixo sobre seixo: só poderia falar mal da maria-sem-vergonha quem jamais tivesse namorado com ela. Isto é, não sobrou ninguém... Até os inços se entreolharam.

O caule engrossou de vez no momento em que o girassol confirmou ter visto cravo rumando para trás da samambaia. Mas nada falara antes porque, ao girar, ficou de costas, e não soube o que teria acontecido lá. Temia, enfim, levantar falso testemunho. Logo, cravo saiu ferido em sua dignidade. E rosa, vermelha de vergonha, ficou despedaçada de decepção... Begônia, a falsa, enquanto consolava a amiga rosa, olhava com excitação para aquelas folhas em formato de coração do safado do gerânio. Petúnia e girassol prometeram tirar tudo em pétalas limpas com a samambaia, já que margarida fora colhida faz tempo, deixando, à época, cravo bastante aliviado. Lágrimas de chuva encharcaram toda terra por muitos dias ‒ murchava um amor perfeito.

Mas o tempo e as minhocas sempre movem a terra do pátio... E, nas voltas do destino, o entristecido cravo se viu à beira do canteiro, tomando orvalho ao lado do desafeto gerânio. Brotou um certo companheirismo masculino e gerânio disse que sabia como cravo teria rosa de volta: bastaria beber uma dose alta de herbicida, ficando doente. Rosa viria correndo para seu caule. Assim aconteceu: rosa, aos prantos e com cravo desmaiado em seus braços, jurou amor eterno. Quando seu escolhido acordasse, proporia reconciliação.

Todo jardim olhava enternecido para a cena de romance. Por isso, ninguém reparou que o beagle da vizinha pulou a cerca para enterrar seu osso bem debaixo da sacada. A coisa foi violeta! Lado a lado, morreram o cravo e a rosa. Muito, muito triste. Porém, muito, muito belo...

PS: Para não dizer que só falei de flores, um grande abraço aos meus amigos papais pela passagem de seu dia. Façam de seus exemplos de vida a maior semeadura; colham no olhar dos filhos o valioso presente!

30.7.10

Número 380

FIOS DE ESPERANÇA

Conhecer Montevidéu, assim tão tarde como aconteceu comigo, apenas fez crescer a vergonha que eu já tinha de nunca ter estado lá. Desde os primeiros metros na capital uruguaia, a arquitetura bem preservada grita ao visitante de primeira viagem: viu só o que você estava perdendo? Soma-se, ainda, o afeto e a simpatia dos nossos vizinhos para com os brasileiros, uma rede hoteleira compatível com qualquer poder aquisitivo, o trânsito sereno, os museus, as lojas e atrações em geral. Para piorar, só o fato de esta cidade estar a míseros oitocentos quilômetros de onde moro... Porém, de tudo o que me enterneceu – e não foi pouca coisa – algo saltou à vista: a capital do Uruguai (aliás, o Uruguai inteiro) é zona de preservação ambiental de um ser que está em vias de extinção. O bigodudo.

Com um pouco de acuidade visual, sempre haveremos de encontrar bigodudos em todo o planeta. Há bigode alemão, chinês, mexicano, argentino, texano, africano, russo, espanhol, francês, português (o único unissex)... No Brasil, também vemos um bigode aqui e outro ali, especialmente no Rio Grande do Sul. A própria estátua do Laçador, figura altiva que recepciona os visitantes de Porto Alegre, é um gaúcho pilchado a contento: da bota de garrão de potro até o vasto bigode. Por isso, não se pode afirmar que os bigodudos se foram da face do planeta. Mas é evidente seu rarear. Bom, menos no Uruguai.

Quase a metade dos garçons de Montevidéu, por exemplo, usa bigode. E também os motoristas de táxi que, além de cinto de segurança, carregam bigodes para afiançar penhor. Entre vendedores ambulantes, feiristas, aposentados passeando pela Rambla, trabalhadores do porto e frequentadores dos bares e cafés, a proporção pode facilmente chegar aos cinquenta por cento de peludos. O próprio funcionário aduaneiro que nos recebeu em Rio Branco ‒ separada da brasileira Jaguarão por uma linda ponte ‒ ostentava bom bigode. Isso já era um indício que desprezei. Porém, mesmo com tamanha representatividade, um dado preocupa: os bigodudos estão envelhecendo e há poucos deles entre os jovens. Quase nenhum, aliás.

Chegamos ao ponto: fios de barba continuam nascendo debaixo do nariz de todos os homens. Mas em um mundo globalizado, até o menino uruguaio, acostumado a ver o bigode do pai, do tio e do avô, tem dificuldade de se imaginar usando um igual. Na TV e no cinema, quase ninguém mais usa. E se as meninas suspiram por rapazes de cara lavada, a vaca vai para o brejo de vez: não há ímpeto tradicionalista que suplante a necessidade biológica de reprodução. O que pode estar acontecendo no Uruguai ‒ aqui a esperança ‒ é a adoção madura do bigode. Isto é, depois de casar e ter filhos, o uruguaio resolve tomar as rédeas do destino e deixar crescer o desejado bigode. Uma espécie de rebeldia às avessas, e que salva o bigodudo da extinção.

Confesso que em minha (duradoura) fase imberbe, sonhava um dia usar bigode. Via em fotos antigas que um exemplar dele nascera no rosto do meu pai ainda na juventude, acompanhando-o por toda a vida. Quis o destino, porém, legar-me pouca barba. E, em uma época em que a moda era manter limpíssimo o espaço entre os lábios e o nariz, pior seria usar um quase bigode (sujeira de feijão, conforme ditado antigo). Hoje, talvez os fios que tenho já estejam em quantidade compatível com a estética ‒ fato reforçado pela predominante tendência masculina do estilo barba por fazer. Mas depois de tantos anos de cara limpa não sei se me reconheceria no espelho. Sinto que para usar bigode, farto ou miúdo, só partindo para morar no Uruguai ‒ algo que a formosa Montevidéu, com seu charme sedutor, convida.

19.7.10

Número 379

ONDE ESTÁ A FORTUNA?

Ser milionário é possuir uma mansão. Ou melhor, duas, três mansões. Um palácio? Quem sabe ser dono de uma ilha, ou mesmo de fazendas que, facilmente, poderiam ser confundidas com países europeus pela extensão. Vários apartamentos em Nova Iorque, Paris, Londres, Tóquio... Prédios inteiros nos endereços mais valorizados do mundo. Lá, obras de arte dignas de constar em catálogos de qualquer museu de primeira grandeza. Vistas de cartão postal em todas as janelas. Sim, é possível medir a fortuna de alguém por suas posses imobiliárias.

Por outro lado, milionário que é milionário tem aviões. Pássaros de metal em cujo interior habitam avanços da engenharia (velocidade, autonomia de voo, segurança) e muito luxo. No ar, escritórios, motéis, salas de ginástica, centros de entretenimento. Ou brinquedos caros: jatos esportivos para poucas pessoas e muita emoção. Helicópteros podem ser um bom indicativo de fortuna ‒ nada de estar sujeito às intempéries do trânsito das metrópoles. Automóveis blindados, luxuosos, raros, exóticos... Milionários, quando em quatro rodas, igualmente voam, e isso também pode ser uma noção de ganhos nas alturas.

Porém, um amigo trouxe uma medida muito mais sensível, muito mais sutil e arejada de se descobrir se alguém é realmente milionário. Ela lhe foi confidenciada por um arquiteto ‒ aquele raro tipo de profissional que casa conhecimento técnico com sensibilidade artística. E, magistralmente, ela provém de um gesto prosaico, habitat natural da crônica. Para tanto, me pediu para visualizar a cena:

Passos tranquilos cruzam um lobby deixando rastros de reverberação. Entram em uma sala ampla, cujos ambientes combinam com harmonia o clássico e o contemporâneo. A luz está perfeita e o aroma é de flores. O dono dos passos, seja qual for a hora do dia ou da noite (de qualquer fuso horário do planeta), apanha um copo e ruma certeiro até o balde de gelo no canto da sala. Abre a tampa e, com uma das mãos, retira três pedras de gelo totalmente secas e soltas uma das outras. O tilitar das pedras no cristal provoca um pequeno rufar enquanto dançam. Deseja um drinque.

Quem já guardou pedras de gelo no baldinho, ou conhece um pouco de física, sabe que a natureza conspira contra a cena descrita. Gelo ao tempo, antes de virar água, tende a fundir-se. O verdadeiro milionário conhece leis da física. Mas não imagina que vá molhar os dedos ou precisar escavar da rocha uma pepita translúcida de frescor. Ele é movido pela certeza transcendental de que, dentro de um balde de gelo, haverá apenas pedras de gelo. E há! Alguém, em algum momento, das entranhas da mansão, estará vigilante para que o dono da casa encontre boas pedras de gelo no baldinho. Agora e sempre, sem jamais ser surpreendido por uma insônia da madrugada ou chegada extemporânea. Secas e soltas, prontas para tilitar.

Dinheiro transbordando, posses deslumbrantes, brinquedos caros de gente grande, obras de arte, lindas mulheres... Tudo pode ser falso ou transitório. Escravizador até, na medida em que a ânsia de acumular riquezas seja tamanha que a vida acabe em segundo plano. Também um belo haras, uma fundação no nome do pai, lugares reservados nos restaurantes da moda e nos clubes exclusivos, iates, dependendo da pessoa, serão apenas fardos. Na verdade, na essência, no fundo do fundo, um milionário legítimo é aquele que mergulha a mão em seu baldinho de gelo sem olhar. E lá, não importa onde ou quando, obedientes, estarão pedras secas e soltas. Santé!

15.7.10

Número 378

EXPLORANDO A CAMADA PRESSÁGIO

Em vinte de abril, ao explodir a plataforma marítima de extração de petróleo Deepwater Horizon, teve início aquele que já se inscreve como o maior desastre ambiental da história norte-americana. A mancha de óleo que devasta uma área gigantesca do Golfo do México acarreta um prejuízo na ordem dos milhões de dólares para a empresa British Petroleum (BP), mas de incalculável repercussão para o meio ambiente. Em virtude de um vazamento que pode bater na casa dos 60 mil barris por dia, e que já dura quase três meses, verdadeiras operações de guerra se instauraram na região, envolvendo toda a comunidade científica, em busca de um modo de estancar a fuga de óleo. Paralelamente, esforços de mesma proporção visam dirimir seus efeitos maléficos, recolhendo o óleo derramado, impedindo que a mancha se alastre e salvando os animais já vitimados.

Nossa brasileiríssima Petrobras é reconhecidamente uma das mais competentes empresas multinacionais dedicadas à prospecção e exploração de petróleo em águas profundas. No mais recente êxito de suas pesquisas, foram descobertos mananciais expressivos de óleo na altura da camada pré-sal. Em razão disso, para breve nosso país poderá fazer parte do seleto grupo dos grandes produtores de petróleo. No momento, claro, em que a tecnologia permitir a extração desta riqueza ‒ algo que está a caminho, com certeza. Com tanta tradição e conhecimento, era de se esperar que os engenheiros, técnicos e cientistas brasileiros estivessem assessorando de alguma forma os apavorados ingleses por conta do desastre da Deepwater Horizon. Imaginei a manchete: jeito brasileiro impede catástrofe ambiental. Como não tenho notícias de nada relevante neste sentido, fiquei com uma pulga atrás da orelha.

Sempre que estou sobre uma ponte, bendigo os engenheiros. Diante de uma plataforma marítima de exploração de petróleo, então, só me falta propor a canonização destes profissionais. Construções que em tudo se assemelham àquelas idealizadas por escritores de ficção científica, tais plataformas abrigam o que há de mais avançado em termos tecnológicos. Também são locais em que se trabalha com níveis de segurança notáveis, respeitando normas rígidas no que diz respeito à prevenção de acidentes. Sou fã incondicional dessa turma! Porém, mesmo com tudo isso, o desastre no Golfo do México acende uma luz vermelha a brilhar em nossa costa. Teríamos nós, brasileiros, recursos financeiros e humanos para fazer frente a uma tragédia de igual proporção? E os acionistas da Petrobras: aguentariam os prejuízos? Para o bem da natureza e para a felicidade geral da nação, gostaria que as respostas fossem que sim. A bem da verdade, temo que não.

Tais presságios não significam que um acidente abalará alguma de nossas plataformas petrolíferas, longe de mim! Muito menos causará um desastre ambiental comparável ao que estamos testemunhando na costa norte-americana. O problema é que, se acontecer, um país que deve ao povo investimentos adequados em educação, saúde, transporte coletivo, segurança e infraestrutura, terá cacife para fazer frente às demandas necessárias? O discurso de potência econômica emergente combina com as reais possibilidades de arcar com eventuais contratempos?

Confesso que estaria mais seguro se a comunidade científica brasileira concentrasse mais investimentos, competência e inventividade em fontes de energia ecologicamente limpas e seguras ‒ vento, sol, marés... Em um país continental, no maior depositário de água doce do planeta, para quem guarda verdadeiros tesouros em termos de biodiversidade, por tudo o que vem acontecendo em consequência da pesada mão do homem, valerá a pena correr tantos riscos investindo cada vez mais em uma matriz energética que deve ser abandonada? Faltam respostas: infelizmente, minha sondagem não é profunda o bastante para ultrapassar a camada presságio.

7.7.10

Número 377

BALANÇO AFRICANO

Existem duas formas de analisar em forma de balanço os resultados da Seleção Brasileira de Futebol ‒ e de seu treinador ‒ em sua passagem pela Copa do Mundo 2010: créditos e débitos nas colunas graças a e apesar de. Quem gosta do Dunga, respeita seu trabalho, valores e ideias, tende a repousar as múltiplas conquistas na coluna graças a, enquanto a coluna apesar de guardará as derrotas, problemas e decepções. Quem desgosta do Dunga, não concorda com seus pensamentos, ações e métodos ‒ odeia-o até ‒, fará o movimento contrário.

Os fãs do ex-capitão serão rápidos em contabilizar as 42 vitórias nos 60 últimos jogos na coluna do graças a. Lá estarão, também, os títulos da Copa América com uma das melhores campanhas de todos os tempos. A Copa das Confederações, as goleadas inesquecíveis, como aquela sobre Portugal, uma boa Olimpíada e o espírito de equipe também estarão na coluna graças a, bem como o resgate do necessário apego à camisa amarela de nosso selecionado ‒ ou alguém esqueceu o enfado que dominava nosso último time, enjoado de tanto dinheiro, fama e badalação? Para a coluna do apesar de, restarão algumas derrotas (6), a desclassificação perante a Holanda e o evidente medo de ousar.

Quem considerou a nova Era Dunga ‒ agora como técnico ‒ um fracasso, sob pena de ser desonesto, jamais esquecerá os números positivos. Porém, creditará tudo na coluna do apesar de. Afinal, quem mais além do Brasil seria capaz de abastecer a sua e tantas outras seleções com atletas de alto nível? Quantos craques e bons jogadores ficaram de fora dos 23 escolhidos, todos capazes de mudar os resultados? Assim sendo, ganhar certames menores seria mera obrigação. Algo que um poste faria também, se fosse escalado como técnico. Mas as derrotas, essas não: elas estariam na coluna do graças a, com todo (de)mérito. Principalmente a última, nas quartas de final da Copa do Mundo. Graças a Dunga, contra aquilo que parecia ser um consenso nacional, os meninos do Santos ficaram assistindo a Copa no Brasil. E morremos por falta de talento.

O temperamento de Dunga, sua eterna postura defensiva e firme, também é algo que cabe em uma coluna ou outra. Quem aprecia tal retidão, considera que perdemos em 1990 apesar dela e, graças a ela, vencemos em 1994. Estranhamente, os mesmos acontecimentos estarão creditados em colunas opostas por aqueles que não gostam da maneira dunguiana de encarar o esporte e a vida. Uns e outros, porém, concordam em um ponto: precisa ser muito Dunga para batizar uma geração fracassada e, logo depois, tornar-se o capitão do time que erguerá a taça. Na sequência, haja coragem para aceitar o desafio de treinar um novo grupo, abandonando o conforto de estar ‒ em parte ‒ redimido, sabendo que um só entre os 32 selecionados será campeão.

Dunga realmente não é alguém que habita os meio-termos. Com ele, tudo parece ser oito ou oitenta. Por isso, entre os méritos e as culpas, poucos comentaristas esportivos escaparão da armadilha de personalizar o debate, dividindo-se ‒ dividindo-nos ‒ entre os que gostam e os que desgostam do técnico. E engordarão e emagrecerão as colunas do graças a e do apesar de conforme a simpatia. De forma indelével, esse rapaz escreve com letras maiúsculas seu nome na história do futebol brasileiro. Passarão muitas décadas e, ainda assim, o debate sobre a personalidade de Dunga e sua trajetória será quente. Ainda mais que novos capítulos ainda estão por vir, já que o protagonista nem chegou aos cinquenta anos de idade.

Antes de concluir, é preciso definir meu ponto de vista nesse balanço de Copa. Julgo que tudo, entre vitórias e derrotas, aconteceu graças ao Dunga, sua comissão técnica, seu grupo de jogadores; em pleno acordo com as deliberações de vestiário e coerente com as atitudes em campo. E tudo também se deu apesar deles. Afinal, cantando outro hino, estavam adversários imbuídos do mesmíssimo desejo de vencer, beneficiados/prejudicados/regidos pela absoluta falta de lógica do futebol. Escalando Fernando Pessoa improvisado em raciocínio lateral, analisar o futebol é preciso, jogar bola não é preciso.

30.6.10

Número 376

ENQUANTO TEMPO

Por seres tão inventivo e pareceres contínuo

Tempo, tempo, tempo, tempo,

És um dos deuses mais lindos

Caetano Veloso

Reparando bem, olhando daqui e dali, a crônica nada mais é do que o texto enquanto tempo. Ou, de trás para adiante, o tempo enquanto texto. Uma volta de ponteiros na página: sempre igual, sempre diferente, pois em cada passagem se refere a outro período. Um gênero literário para todos carregarmos no pulso e consultar quando der vontade, seja na forma analógica (impresso) ou digital. Por quê? Pela simples razão de ser preciso. Quando? Assim que tivermos uma brecha em nosso próprio tempo.

Como o saltitar dos segundos, a crônica é feita de minúcias, de miudezas. Grãos de vida escorrendo na ampulheta da História. Num piscar de olhos, o tema aparece diante do escritor e o seduz. Depois, não importa quantas horas ‒ ou mesmo dias ‒ serão necessários para que ele aborde o assunto em seu blog ou na coluna do jornal: quando o texto ficar pronto, a instantaneidade será enfim restabelecida. Então, o tempo da crônica estará de volta ao corriqueiro pra já.

Mas, se a crônica é um texto enquanto tempo, a que tempo nos referimos? Depende. Pode ser o passado: muitas crônicas são escritas a partir de lembranças do autor, vindas de uma história que escutou de um amigo ou mesmo resgatando um lugar que não mais existe. Pode ser, também, o tempo presente, para comentar a notícia que deu agora mesmo no rádio ‒ você ouviu? E nada impede que uma crônica tome por base uma pesquisa ou descoberta científica e, assim, projete nosso futuro.

Por falar nisso, existem crônicas que morrem com o tempo, enquanto outras sobrevivem a ele. Em um extremo, o texto que o cronista escreve sobre um fato tão, tão, tão imediato que, se não publicar no dia, nunca mais publicará: perde o sentido, morre antes de nascer. No outro, obras sublimes como um poema, eternas como um romance, contundentes feito contos ‒ crônicas para serem lidas por mais de uma geração com o mesmo prazer, com igual atualidade, fruição e pertinência. Entre os extremos, retratos sempre fiéis ao nosso tempo, imagens para nunca mais e para sempre.

Na hora de escrever, o cronista poderá fazê-la parecer um conto, um artigo, uma poesia. Algumas nos deixarão com aquela inquietação típica em quem gosta de classificar tudo: será isso uma crônica, mesmo? Ela também poderá se parecer conosco ou ser a cara de alguém que conhecemos. A crônica pode contar uma história sua, minha ou nossa, assim como você tem pleno direito de discordar do cronista em número e grau. Uma só coisa a crônica não pode ser: infiel ao tempo. Assim, estará traindo sua essência, sua magia e a própria razão de existir.

Citando novamente Caetano, (...) te ofereço elogios, tempo, tempo, tempo, tempo, nas rimas do meu estilo.

24.6.10

Número 375

ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE

Eu me amo, eu me amo,

Não posso mais viver sem mim

Ultraje a Rigor

A adolescência é o momento ideal para todos se casarem. Isso já nos primeiros sinais de puberdade ‒ quanto mais cedo, melhor. Respirar fundo, concentrar-se e falar muito sério: Prometo ser fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de minha vida, até que a morte nos separe. Depois, encontrar no fundo dos olhos daquela pessoa que está ali, do outro lado do espelho, um olhar de aceitação. Os desafios que aguardam quem entra na juventude, hoje mais do que nunca, serão melhor superados depois deste casamento.

A fidelidade, por exemplo, será testada muito rapidamente. Basta o menino ou a menina estar diante de um dos tantos dilemas de consciência típicos da idade: convidam-no para entrar no carro que fará um racha, para comprar uma garrafa de vodka, dar um tapinha em um cigarro artesanal, subir para um apartamento desconhecido e entrar numa festa para a qual não se foi convidado... A lista é grande! Então, alguém lá no fundo lhe diz: não vá, não faça, pode dar problema. Caso lembre que prometeu para esse mesmo alguém, no espelho de casa, ser-lhe fiel, poderá recusar sem medo, numa boa, até agradecendo. Mais tarde, se a maturidade o aconselhar diferente, já não será reflexo de inocência.

Amar-se e se respeitar também são votos bastante úteis. Quem tem uma auto-estima elevada dificilmente cairá nas armadilhas ou nas chantagens dos aproveitadores, pessoas que sempre escolhem subjugar os mais frágeis. Estará imune, ou ao menos fortalecido, contra apontamentos pejorativos (baixo, gordo, fraco, feio) e mais consciente de que as diferenças existem para enriquecer nossa vida. Basta perguntar-se: será que o mundo seria melhor se todos fossem iguais, pensando da mesma forma, vestindo as mesmas roupas? Depois de conquistar uma relação amorosa e de muito respeito consigo, ficará mais fácil e mais saudável lidar com o outro, com suas necessidades e diferenças.

Quando prometemos, lá aos doze ou quatorze anos de idade, estar conosco na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, inoculamos a vacina contra aquele que é um dos mais danosos sentimentos: a autocomiseração. E estar imunizado significará lidar com bom humor, coragem e leveza frente a uma série de pequenos infortúnios típicos da juventude. Ou seja, teremos decepções amorosas e superaremos; veremos frustrado um plano (vestibular, viagem, estágio), mas tentaremos de novo; assistiremos ao lançamento de um produto eletrônico de última geração e nem assim jogaremos o nosso fora; sairemos de casa sempre com o dinheiro contado, porém dispostos a nos divertirmos, etc. Enquanto se é criança, os pais fazem de tudo para que nada nos falte. Na juventude, conviver com a falta é buscar nela o estímulo para as conquistas.

Escrevendo assim parece fácil, mas não é. Quem disse que viver é uma barbada? Diante das agruras, nada é mais reconfortante do que uma boa companhia. Por exemplo, e antes de tudo, a companhia da nossa consciência. Quem estiver casado com a imagem do espelho, sendo-lhe fiel e parceiro, ainda mais tendo formado esse laço em boa idade, estará mais preparado para o conjunto de decisões do amadurecimento. Inclusive na hora de impor a si necessárias mudanças, já que ninguém é perfeito. O sacerdote deste casamento é o livre arbítrio. Os filhos, as consequências de nossos atos. E o prazo? Até que a morte nos separe.

16.6.10

Número 374

ESSÊNCIA

Para o Irmão Arnaldo

(1913-2010)

É lendária a história na qual subimos, após muito sacrifício, até a mais alta das montanhas para encontrar o homem sábio. Com ele, estariam guardados os segredos do sucesso, da felicidade, do amor, da paz, da harmonia, enfim, da vida em sua plenitude. No entanto, cada um que alcança tal cume, depara-se com alguém em vestes simples, sem domínios ou bens. Nem servos, luxo, conforto, tecnologia, badalação. Estranhamente, são reconhecidos no homem atributos que construíram sua lenda. E, apenas então, defrontados com o óbvio, todos compreendemos a diferença entre o aparente e o essencial.

Nunca fui à montanha. Quis o destino que a montanha viesse até mim, oferecendo o privilégio de conviver, desde a mais tenra infância, com um homem sábio de carne e osso, mas do qual emanam verdadeiras lendas. Estou falando do Irmão Arnaldo Isidoro, ou, para mim, apenas tio Irmão, falecido dia dez de junho aos noventa e seis anos. Em seus oitenta anos de vida religiosa, recém comemorados em singela missa na Casa de Saúde dos Irmãos Lassalistas, Irmão Arnaldo guiou a vida de todos os que estiveram consigo, compartilhando sem medir sacrifícios ‒ e sem auferir proveito pessoal ‒ o divino dom da sabedoria.

É fácil imaginar que, caso optasse pelo caminho do empreendedorismo, o Irmão Arnaldo, José Fridolino Schmitz de nascimento, teria se tornado um homem rico. Quem sabe riquíssimo. Sua capacidade administrativa esteve comprovada em toda biografia, seja em Minas Gerais, São Paulo ou no Rio Grande natal. Por exemplo, nos muitos anos na direção do Pão dos Pobres de Santo Antônio, instituição responsável pelo acolhimento e educação de milhares de meninos órfãos e carentes em Porto Alegre. Ciente de que os atributos do espírito sucumbem diante do frio, da fome e do abandono, dedicou sua energia para garantir o conforto e a educação das crianças, formando um legado de riqueza que certamente não caberia em medidas de ouro.

Também a política deixou de contar com alguém de carisma e capacidade de liderança incontestável. Exilado das funções públicas pela eleição do caminho católico, nem assim Irmão Arnaldo deixou de circular em todas as esferas de influência. Na Casa Lassalista, foi Provincial por duas oportunidades. Durante sua rotina, recebia e era recebido por governadores, prefeitos, deputados e senadores sem visar promoção pessoal, apenas em pleitos humanitários. Mesmo assim, ou talvez por isso, recebeu diversas homenagens, com destaque para a Medalha Cidade de Porto Alegre, em 1985; Cidadão Emérito de Porto Alegre, em 1988, e Professor Emérito, no mesmo ano.

Se a constituição de família estivesse no destino do tio Irmão, dou o testemunho de que ele seria um pai inigualável. Primeiro, pelo amparo que sempre ofereceu aos irmãos e sobrinhos, assumindo com dedicação paternal a orientação de todos nós. Mas, principalmente, pela vida de educador, assumida desde os tempos de juventude, na sala de aula, até o último dia dedicado ao orfanato. Incontáveis consideram-se como sendo seus filhos.

Estamos, por fim, todos órfãos da companhia do Irmão Arnaldo, mas carregaremos adiante seu legado e seu amor. Foi um homem que partiu do mesmo modo como viveu, sem riqueza ou poder. Em suas últimas palavras, a derradeira e sublime lição: olhava em nossos olhos e dizia “muito obrigado”. Sim, Deus sabe que apenas agradecia aquele a quem devemos tanto. Alguém que nos poupou até mesmo do esforço de subir a mais alta das montanhas em busca da sabedoria em sua mais pura essência.


10.6.10

Número 373

GUIA DO COMENTARISTA INSTANTÂNEO

É chegada a Copa do Mundo e você, que não gosta, entende ou acompanha futebol, na certa será convidado para assistir os jogos com os colegas de trabalho. Pior: com o chefe. E agora? Como fazer amigos e influenciar pessoas em uma situação tão adversa? Pois tenha sucesso e garanta seu status com o Guia do Comentarista Instantâneo, uma compilação de frases que jamais deixarão você passar por ignorante. Essa é a mais perfeita combinação de obviedades e platitudes futebolísticas ‒ expressões que farão sentido em qualquer partida. Para tanto, basta saber se o jogo está empatado, se o seu time está perdendo ou ganhando. Dica: o placar costuma aparecer no alto da tela da TV. Boa sorte!

1. Enquanto o jogo está zero a zero:

* Quem abrir o placar forçará o oponente a sair mais para o jogo.

* Esse empate nos dá a falsa impressão de termos a partida sob controle.

* Não dá para vacilar na defesa...

* Ainda está faltando um pouco de qualidade no último passe. (coringa)

* O gol que não marcarmos pode fazer falta logo adiante.

* Em jogo assim, é preciso ganhar o meio de campo.

* Ligação direta entre defesa e ataque é pouco eficaz: o adversário estará sempre de frente para a bola.

* Estou preocupado: quem não faz, toma. (um clássico)

* Centro-avante sozinho é meio gol.

2. Ao levar um gol:

* Eu disse que não se podia vacilar na defesa!

* O melhor é empatar antes que eles gostem do jogo! (e alguém odeia estar ganhando?)

* Precisamos avançar os alas, mas sem descuidar da cobertura.

* Ainda tenho a esperança numa bola parada...

* Tem que ter mais aproximação: fazer o dois/um. Desloca e recebe!

* Só não deixem os defensores no mano-a-mano!

3. Se empatar:

* Eu disse que seria de bola parada! (se o gol nasceu de falta ou escanteio)

* Eu disse que precisava de aproximação! (se foi em troca de passes)

* O caminho era lançamento nas costas da zaga! (se foi ligação direta, mesmo incorrendo em clara contradição – o gol apaga tudo).

* Agora estamos mais perto da virada.

* Onde entrou um (gol), entram mais.

* Tá, mas ainda não estamos ganhando... (dã!)

4. Quando se está na frente no placar:

* Tem jogo pela frente, um a zero é perigoso, não dá para relaxar...

* Dois a zero é o placar mais perigoso: se achar que já ganhou, babaus!

* É, mas não adianta nada se eles não souberem por que estão ganhando.

* Aiaiai... continuo com medo daquele gol perdido: pode fazer falta depois.

* Agora é só cercar. Mas sem falta! Sem falta!

* Precisam compactar mais o meio de campo (coringa).

* Se não tomarmos nenhum gol, já ganhamos! (óbvio dos óbvios)

5. Sobre a arbitragem:

* Na Libertadores isso nem seria falta.

* Só quero vê-lo respeitar os mesmos critérios... (diz tudo sem dizer nada)

* Cuidado para não fazer pênalti – esse juiz, não sei...

* O cara ficou pendurado no cartão amarelo! No segundo, rua!

* Olha lá: quem dava condições foi o mesmo que levantou a mão pedindo impedimento! (é quase sempre assim)

* A zaga não pode ficar em linha: desconfio deste bandeira.

* Quero só ver quantos minutos teremos de desconto. Quero só ver!

Terminada a partida, volte para a lista e mude algumas palavras por sinônimos, inverta a ordem direta, ou mesmo decore tudo igual para o jogo seguinte. Afinal, bastará acrescentar: Precisam compactar mais o meio de campo! Outra vez!

4.6.10

Número 372

DIA BRANCO

Se você vier, pro que der e vier, comigo
Eu lhe prometo o sol
Geraldo Azevedo & Renato Rocha


Enquanto minha esperança respira por aparelhos na UTI, a cidadania surge com um remédio novo, capaz de retardar sua indesejada morte. Leio no jornal que um grupo de estudantes universitários reuniu-se com vassouras, baldes, água e detergente para fazer um ato de protesto contra a poluição. Como uma “despichação”, limpam a fuligem das paredes do Túnel da Conceição, no centro da cidade, grafando com o branco original: “por uma Porto Alegre limpa”. A polícia, alertada para o fato de que jovens estavam pichando as paredes, chega ao local em tempo de impedir o crime e deter os contraventores. Porém, os policiais constatam a natureza profilática da ação e não só deixam os estudantes livres, como permitem que eles terminem sua mensagem.

Tudo nesta notícia me agrada: meninada com boas idéias, iniciativa, coragem e pensamento coletivo; policiais inteligentes e sensíveis, subvertendo o conceito de truculência que tanto prejudica a corporação; jornalistas ágeis, e, como agora a parede foi lavada, poder público com capacidade de reação. Por algumas horas, a capital gaúcha escutou um coração batendo abaixo dos escombros de incompetência, desrespeito e frieza que soterram as relações humanas nos grandes centros urbanos. Foi apenas um pedido de socorro. Porém, este resgate pontual indica que há muita vida para ser redescoberta.

Se a moda pega, daqui a pouco haverá quem empunhe roçadeiras para escrever numa praça abandonada: mantenha-me! Filme, fotografe e lance na imprensa e na internet. Constrangida, a prefeitura tomará providências. Da mente criativa dos jovens, ainda podem surgir, também, iniciativas para restaurar pontos de ônibus degradados, monumentos depredados, telefones públicos que não mais funcionam, escolas pichadas, sujeira acumulada em terrenos baldios. Comunidades podem, finalmente, encontrar caminhos para denunciar o tráfico de drogas, a prostituição infantil e a inoperância dos hospitais e postos de saúde, por exemplo. O poder público, se não toma a dianteira em ações esperadas pela coletividade, precisará correr atrás, sob pena de ficar ainda mais desacreditado.

Quem imagina que isto é um sonho, uma utopia, não conhece as iniciativas do pessoal da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga e sua Vida Urgente. Um verdadeiro exército de jovens e adolescentes, capitaneados pela Fundação, promove ações criativas, vigilantes e esclarecedoras, visando à prevenção de acidentes de automóvel. O objetivo é evitar que a direção irresponsável, o uso de álcool e de drogas, combinados com a fiscalização pública ineficiente, continuem ceifando vidas de jovens em quantidade absurda pelo país. Cada uma das borboletas pintadas no asfalto, indicando onde um jovem faleceu, traz a todos a lembrança de quanto temos a perder caso a guerra no trânsito não encontre seu fim.

Políticos atrasados e populistas ainda insistem em se vangloriar daquilo que dão ao povo. Cada vez que são confrontados com uma arrecadação de impostos digna de primeiro mundo, combinada com contrapartidas de fazer vergonha a uma nação miserável, rebatem com o discurso de que deram isso e aquilo. Minha esperança sairá de vez da UTI, revigorada e saudável, quando o jovem brasileiro compreender que os gestores públicos nada dão ‒ apenas (no máximo) devolvem. E que a esfera política não concentra o monopólio das soluções nacionais, muito pelo contrário. Uma população protagonista, que faz sua parte, que preserva e fiscaliza os bens públicos, que conhece seus deveres e direitos, é o branco sufocado debaixo da fuligem do Túnel da Conceição. É Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Manaus ‒ todas nossas cidades ‒, bem no fundo, limpas. É o que deveria ser Brasília.

28.5.10

Número 371

O MELHOR INIMIGO

Neste momento, tudo é Copa do Mundo. Passamos pelas vitrines do shopping e o verde-amarelo predomina, bolas de futebol abundam, cartazes trazem o logotipo da Copa Sul-africana – a primeira naquele continente. Criam-se produtos temáticos de cama, mesa e banho; também álbuns, canetas, cadernos, porta-retratos etc. TVs são oferecidas e vendidas a rodo. E, por falar em vendas, os comerciais de qualquer produto nos remetem ao futebol, seja para ofertar canos hidráulicos, computadores, alimentos... Mas, principalmente, cerveja.

E foi assistindo as propagandas de cerveja que algo chamou minha atenção: os publicitários deixaram as mulheres gostosas um pouquinho no banco de reservas e escalaram um novo centro-avante. Seu nome, Argentina. Mais especificamente, a Seleção Argentina. Ou, quem sabe, a passional torcida do país vizinho. Em cima do lance me dou conta: ao escolhermos essa esquadra como nossa maior vítima (sim, os comerciais ridicularizam los hermanos), prestamos uma homenagem às avessas. Mais um dos tantos exemplos de uma relação de amor e ódio com a nação platina que, ainda agora – dia 25 de maio –, completou os duzentos anos de independência da Espanha.

A Argentina é, historicamente, o melhor inimigo do Brasil. Nascido e criado no extremo sul, vivo tal realidade de forma mais próxima. As fronteiras rio-grandenses com os demais países do Prata estavam conflagradas até quase ontem. Lutas fratricidas deixavam em campos opostos os gaúchos e os gauchos, cada um zelando pelos interesses econômicos de sua nação. Diz que o Terceiro Exército, na hora de simular uma guerra, avança na grande área Argentina pedalando feito Robinho. Teorias conspiratórias associam a construção de Itaipu com sua localização militarmente estratégica na tríplice fronteira. Sei lá...

Certo mesmo é que, durante muitos anos, os brasileiros se ressentiram de um inegável predomínio argentino na América do Sul: economia forte, cultura, educação e qualidade de vida superior ao gigantesco vizinho lusófono. Quando um europeu se referia a Buenos Aires como sendo nossa capital, morríamos por dentro. Porém, os últimos cinquenta anos foram cruéis com a Argentina. Governos populistas, para não dizer outras coisas, foram concomitantes com o avanço verde e amarelo. O Brasil está muito longe de ser uma nação equilibrada em termos de distribuição de riquezas, mas, ainda que tarde, assumiu de vez a dianteira na política e na economia latino-americana. Hoje, o estado de São Paulo, sozinho, já é mais do que a maioria dos países com os quais o Brasil faz fronteira. Isto já é goleada.

Voltando para o futebol, nada é mais saboroso para um brasileiro do que curtir uma vitória sobre a Argentina e, desconfio, vice-versa. E secar, então? Que delícia! Assim, uma criança já nasce com dois uniformes para idolatrar: um por amor, outro por aversão. Muito por aí, associar este prazer à cerveja nem chega a ser uma ideia brilhante. Mesmo assim, é como uma piada que não perde jamais a graça – seguimos tocando flauta e as cervejarias faturando. Parece Grenal, Flaflu, Bavi, Atletiba e os tantos embates clubísticos que inflamam nossos estádios.

O que ninguém fala é da ironia do destino: a forma aguerrida e passional que o técnico Dunga dita aos canarinhos nada mais é do que uma leitura gaúcha de como jogar bola – sistema consagrado nos gramados uruguaios e argentinos. E, ao elevarem para um patamar de deus o craque Maradona, ao apostarem as fichas na genialidade do Messi, nossos irmãos curvam-se diante do futebol arte, tradição na pátria do Rei Pelé. De tanto andarem juntos (mesmo que aos empurrões), veja só, Brasil e Argentina, esses melhores inimigos, confundiram as próprias pernas. Será pênalti?

20.5.10

Número 370

HOMENS DE A a Z

Por mais que se diga ou escreva, parece que o homem não consegue compreender a mulher em sua abrangência, nem ela a cândida simplicidade masculina. Desconfio que exista um firme e grandioso propósito para que seja mesmo assim. Assim mesmo, prossigo com empenho no encalço do entendimento mínimo, reconhecidamente tarefa de Sísifo. Quem sabe um dia chego lá? Um primeiro passo é tentar que elas, mais inteligentes, nos conheçam. Segue umas pistas:

A ‒ Amigos: temos e cultivamos, gerando despeito em algumas esposas. Amigas, também temos, mas aí é um pouco mais complexo.

B ‒ Bigode: real ou metafórico, todo homem tem o seu para honrar. Ou desonrar.

C ‒ Calvície: tema que, ironicamente, jamais abandona nossa cabeça.

D ‒ Dólares: nosso botox, nosso silicone, nosso esmalte, chapinha ou tintura. Beleza e juventude no melhor papel (moeda).

E ‒ Esporte: no Brasil, principalmente futebol. Nossa batalha civilizada. Nosso descarrego, assunto, válvula de escape. Tudo de bom!

F ‒ Força: o último baluarte da masculinidade. O cume e, ao mesmo tempo, a raiz da árvore. Medindo, usando ou abdicando, sejamos sempre fortes.

G ‒ Gol! Assim, só isso. E precisa algo mais?

H ‒ Herói: não importa a natureza da batalha, perseguimos tal epíteto.

I ‒ Infância: de onde jamais saímos. Também, ou por isso, para onde nunca conseguimos retornar.

J ‒ Janete: minha primeira professora. Outros homens podem ter a sua em outra letra, mas na mesma intenção.

K ‒ Kilt: precisa ser muito homem para vestir esse (ul) traje!

L ‒ Navalha, faca, espada, canivete: homem que é homem domina uma lâmina.

M ‒ Mulher: razão primeira de nossa existência. Nem por isso consensual.

N ‒ Nunca! Prerrogativa que nos cabe. Podem espernear.

O ‒ Óbvios: é quase sempre o que somos, raros momentos de exceção. Nem bom nem mau ‒ simples assim.

P ‒ Pênis: morram de inveja! (Obrigado, Freud!)

Q ‒ Queda: o melhor momento para se conhecer um homem.

R ‒ Riso: solto, livre, contagiante. De si, do outro, da vida. Rir é o que o bom homem faz até mesmo quando falta alternativa.

S ‒ Silêncio...

T ‒ Trabalho: como diz o poeta Gonzaga Jr., sem ele, se morre, se mata.

U ‒ Último (chope): a maior mentira já dita, ouvida e repetida em uma mesa de bar.

V ‒ Volkswagen, Ford, Chevrolet, Fiat, BMW, Mercedes Benz, Toyota, Renault, Honda etc.

X ‒ XX ou XY: uma das poucas coisas que definimos no momento mais importante da vida ‒ o da renovação.

Z ‒ Zangão: macho da abelha, grande e inútil. Nosso destino, caso não haja uma nova consciência diante do avanço das mulheres.

13.5.10

Número 369

BULLYING E OMISSÃO

Quando pensamos em bullying no ambiente escolar, lembramos daquele valentão, quase sempre traiçoeiro, que oprime seus pares na base da humilhação e do terror. Também surge na memória a figura do jovem diferente, seja ele meio esquisito ou fora de medida, vítima primordial das chamadas brincadeiras de mau gosto. Porém, para que exista e viceje essa prática sociopática, um terceiro personagem estará necessariamente implicado: o grupo. Afinal, desde a primeira piada até a metódica perseguição, a turma estará diante de uma escolha, ou seja, qual partido tomará.

A grande covardia do praticante de bullying é resultado de uma inteligência estratégica: atormentar aquele que menos se parece com a média para, com isso, auferir prestígio. Ou, como segunda opção, afligir quem se apresenta naturalmente retraído. Tímidos e exóticos tendem à baixa capacidade de articulação e, desta forma, podem permanecer isolados e frágeis diante das agressões recebidas. São losers, na acepção norte-americana do caso. A aposta do cruel, quase sempre de sucesso, é de que ninguém tomará o partido do perdedor, sob o risco de fazer parte da turma “errada”.

Basta entrar em uma sala de aula ‒ de qualquer faixa etária ou social ‒ para identificar a presença de liderança, positiva e negativa, entre os colegas. Via de duas mãos, ela nasce na postura de quem a exerce e, simultaneamente, na dos que a reconhecem (aceitam). Por isso, a imposição física e psicológica de um líder negativo jamais deve ser desprezada: ela existe e é resultado de uma eleição silenciosa. O quadro obedece à perversa lógica do favorecimento, na qual alguém se alia ao opressor para, em um primeiro momento, escapar incólume de sua ação predatória. Depois, parecer igualmente forte.

No momento em que há um líder positivo no grupo, tendo ele capacidade de competir em igualdade de condições com o valentão, a chance de bullying diminui, mas não some. O apelo da transgressão ao redor do período da adolescência, seu charme e culto, é muito poderoso. Quando somado à garantia de impunidade que predomina em nosso tempo, torna-se ainda maior. Então, os virtuosos assumem a postura de autopreservação, fazendo surgir o individualismo ‒ outra marca da atualidade. Sob o manto do resultado pessoal em primeiro lugar, do cada um por si e Deus por todos, o azar será de quem ficou para trás.

Tal quadro pessimista com relação ao bullying na escola tem uma única chance de ser superado, e ela repousa justamente nos ombros do invisível e disforme grupo. Se existir um conjunto de valores elevados na maior parte da turma, tais como solidariedade, respeito, amizade, bom caráter ‒ aquilo que trazemos de casa ‒, bastará a primeira voz insurgente para neutralizar os maus tratos, antes de eles se tornarem sistemáticos. Assim, até mesmo o bullying ao contrário (segregação do agressor contumaz) será prevenido. Para tanto, pais e professores devem passar às crianças e aos jovens uma lição fundamental: quem não deseja ser vítima, jamais se omita. Neste e em todos os casos, a omissão dos justos é a vitória do crime.

7.5.10

Número 368

AS QUATRO ESTAÇÕES

Mãe é primavera. Antes mesmo de ter filhos, ainda em botão, já é maternal. Perceba uma menina brincando, veja ali o quanto há de promessa. Melhor: persiga as ações cotidianas no mundo do faz de conta. Desde que nasceu minha filha, passei a compreender melhor tudo o que envolve o zelo por outra vida, iniciado quase em bebê, na fantasia. Mais tarde, jovens, mulheres reconhecem e exercitam o cio; planejam, acalentam, escolhem. Florescem e frutificam no tempo exato. Colorem e perfumam a família. Prometem e entregam a nós, homens, eternidade possível. Terá morrido incompleto aquele que não conviveu com a primavera de uma mulher.

Mãe também é verão. É calor, brincadeira, banho de água fresca. Mãe é melancia gelada, araçá colhido do pé, sumo e grão. Brisa do mar, orvalho da madrugada. Um sol enorme e cálido fornecendo luz, alimento e segurança; mãos dadas no final da tarde. Para um filho pequeno, o sorriso da mãe ofusca toda a concorrência – nada mais importa, nada falta, tudo é alegria. Deslizamos pelo corpo da mãe como quem desce em uma duna, rolando de contentamento, vibrando de prazer. Adormecemos em seus braços gozando conforto de rede. Amanhecemos com seu olhar.

Necessariamente, mãe é outono: educação, limites, cobranças. Ela deseja filhos fortes e compenetrados para enfrentar o rigor das estações mais severas. Mostra, então, seu lado árido. Toma para si a tarefa de ensinar que nesta vida nem tudo serão flores, nem sempre haverá cor, fartura e conforto. Desnuda a copa das árvores e, com isso, oferece novos horizontes. Entretanto, diligente, recolhe as folhas secas espalhadas pelo chão, restos de rusgas e repreensões. Livra-se (livra-nos?) das mágoas. Captura outras formas de beleza e guarda-se para uma longa espera.

Mãe, cedo ou tarde, torna-se inverno. Então será xale sobre os ombros, cobertas pesadas, neve nos cabelos. Mãe invernal é distância ditada por visitas espaçadas. Chá preto com limão e bolo de chocolate aos domingos. Foto com o branco do vestido esmaecido, emoldurado na parede. Mãe, em uma certa altura da vida, é mais recordação do que presença; mais conselho do que colo; mais lágrimas e nenhum consolo. É solidão. Porém, nem mesmo o silêncio mal disfarçado pelo vento e pela chuva transforma a mãe em desesperança. Sábia, intui o final do inverno. Ele que é apenas uma entre suas vastas estações. Há de cumprir seu ciclo.

Mãe almeja ser avó. Avó, outra vez será primavera: promessa e regozijo. Verde novo, flor e fruto colhido em pé de moleque. Chá de fraldas, sapatinhos de tricot. Avó também será verão, correria solta de netos para ser acompanhada apenas com o olhar – sustos ao tombarem. Calor em cada sorriso, beijo e abraço. A avó será outono quando houver a suspeita de menor negligência para com seus netos, suas caprichosas flores na maturidade. E o inverno de sua velhice será tão mais ameno, quanto mais pequenos sóis orbitarem ao redor de si. Avó é mãe em quatro simultâneas estações. É tudo, mas nunca o bastante. Mas, em se tratando de maternidade, quando e quanto bastante será?

30.4.10

Número 367

AS URNAS NÃO FALAM*

Nasci em 1964. Por isso, nem querendo esqueço o recente período de exceção política no Brasil. Ele grita para mim na carteira de identidade. Ecoa em cada cadastro. Aniversaria junto comigo. Já falei disso? Acho que sim... Bom, enquanto eu chegava ao mundo, forças partidárias de um lado caçaram o direito à liberdade para combater quem desejava caçar nossa liberdade de outro. Em correntes polarizadas, a Guerra Fria tanto chorava suas vítimas quanto justificava seus algozes, irmanando-se na dor.

Cresci sonhando com a paz e a liberdade perdidas. Heróis driblavam a censura com metáforas auspiciosas: apesar de você, amanhã há de ser outro dia; com força e com vontade, a felicidade há de se espalhar com toda a intensidade; o sol há de brilhar mais uma vez; Pai, afasta de mim este cálice. Minha cidadania em formação depositava todas as esperanças na democracia para recuperar a dignidade, a decência, a justiça e a ética na Pátria amada, idolatrada, salve, salve. Desejava que as flores, sim, vencessem os canhões.

Agora, na véspera de abrirmos novo pleito majoritário, o sexto para Presidente desde a volta à plena democracia brasileira, por justiça a todos os anos em que sonhei com isso, eu deveria estar eufórico. Porém, o único sentimento que me brota é o desapontamento, a desilusão. Sou um dos tantos traídos pelas falsas promessas da liberdade democrática. Enquanto vejo antigos opressores e perseguidos de mãos dadas, atado, duvido de toda e qualquer boa intenção.

Discordo daqueles que depositam nos governantes a alcunha de salvador, de pai, de protetor. Meu sonho sempre foi mais modesto: habitar um país com liberdade de opinião e instituições – públicas e privadas – capazes de gerir o bem comum. Porém, o desequilíbrio entre o que se arrecada em impostos e o que se devolve em serviços essenciais (saúde, educação, segurança e infraestrutura) aponta para um divórcio de sonhos: o do político parece ser, tão somente, locupletar-se com as benesses do perpétuo poder.

Parodiando versos de um clássico popular do desconsolo, obra do gênio Cartola, cantarei as eleições 2010 convencido de que as urnas, flores que venceram canhões, ainda não responderam (corresponderam) aos nossos sonhos. E aquilo que exalam, não há quem consiga chamar de perfume. Por favor, me acompanhe:


Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vem uma nova eleição, enfim
Volto eu assim
Com a certeza que devo votar
Pois bem sei que o contrário é pior
Para mim
Queixo-me às urnas,
Mas que bobagem,
As urnas não falam
Simplesmente as urnas exalam
O fedor dos que roubam de ti
(de mim)
Deviam vir
Para ver nossos olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhar nossos sonhos
Por fim

* Paródia da música As rosas não falam, de Cartola.

22.4.10

Número 366

PÓS-MATRIMÔNIO

A história é mais ou menos essa:

No táxi, enquanto voltava para casa, ela acompanhava com uma certa vertigem a paisagem correr na janela. Trazia na bolsa diversos exames laboratoriais e um diagnóstico preocupante: grave doença, escasso tempo de vida. Não pensava nas dores, no desconforto do tratamento, na despedida em cada sorriso dos netos. Mirando as árvores frondosas nas calçadas do bairro, pensava em como iria se virar seu velho quando ficasse viúvo.

Montaram uma família tradicional, conforme ditava a época: ele era um profissional competente e obtinha o sustento de todos. Ela trabalhava em casa, administrando o lar e a vida do marido e dos filhos. A seu modo, cada um dependia do outro e, também, amparava-o. Porém, esta base não previa a ausência de um dos pilares. Antes mesmo de o táxi chegar ao endereço indicado, ela decidira reequilibrar as tarefas, capacitando seu marido a manter o lar de pé, mesmo quando só. Afinal, estava aposentado.

O Curso de Viúvo começou pelo começo: deu a ele a incumbência de arrumar a cama. Lençóis esticados, trocados a cada semana ou duas, envelopando a colcha ou, no inverno, o cobertor. Travesseiros gostam de sol e ar! Por isso, as janelas devem ser abertas pela manhã, sempre de olho em caso de promessa de chuva. A cobertura de patchwork cumpria, sim, apenas uma função estética. Porém, harmonia e beleza compunham toda a vida da família e mereciam ser preservadas.

Seguiu ensinando a preperar o café, escolher frutas na feira, montar lista de supermercado – reconhecendo marcas de papel higiênico, pasta de dentes, sabonete, xampu, desodorante etc. Apresentou o marido à máquina de lavar, orientou sobre a técnica de estender a roupa no varal e deu dicas preciosas para saber quando a peça estaria efetivamente seca. O marido também aprendeu pratos ligeiros para o dia-a-dia, acondicionamento de sobras na geladeira e freezer, uso econômico do forno de gás e de microondas. Ela mostrou onde a faxineira costumava relaxar durante o trabalho, como manter o guarda-roupas organizado, o lugar de cada utensílio doméstico e, claro, os telefones necessários (farmácia, jardineiro, eletricista, encanador, chaveiro, costureira...).

O tempo foi passando junto com as lições. O marido ficava cada vez mais estupefato com a complexidade que envolvia as tarefas de um lar. Isso que já não tinham mais os filhos em casa! Era um aluno aplicado mas, às vezes, teimoso ao propor um método próprio, contrariando as orientações da professora. Algo plenamente tolerado: parecia, finalmente, que ela teria paz ao partir. O problema é que sua saúde melhorava sem parar, enquanto o marido queixava-se de cansaço.

Tenho certeza de que – tão previsível! – você adivinhou o final: o velho morreu primeiro. Homens têm essa mania. Parece que foi a famosa combinação de pressão alta com coronárias entupidas. Assoberbado de tarefas, mais do que nunca tinha justificativas para não ir ao médico. Homens também têm essa mania. Restou à velha a condição de viúva, sem curso nem nada. O filho socorreu com a burocracia mais imediata e, depois, ela foi aprendendo tudo na base do maior esforço.

Rapazes hoje em dia sabem ser viúvos desde mais cedo, no estágio solteiro. Depois, cursam mestrado e doutorado no lar enquanto estão divorciados. Todavia, poucos usarão tudo o que dominam na viuvez. Ao menos enquanto não aprenderem o endereço do médico.

Sim, meu anjo, isso vale para mim. Amanhã, prometo!