22.7.11

Tratamento de choque

Número 431
Rubem Penz
Um amigo foi submetido a um tratamento de choque. Altíssima voltagem. E com consequências permanentes para a compreensão das circunstâncias ao seu redor. Ao nosso redor. Contarei sua história.
Em recente viagem de trabalho ao exterior, fora do eixo das grandes metrópoles, ele resolveu dar uma passeada por um bairro residencial para bem aproveitar um repouso. E seguiu por uma alameda qualquer, apreciando a fileira de árvores, os gramados bem aparados, os canteiros de flores, janelas abertas, casas bem cuidadas e sem luxo. Cães, crianças e adultos em distraída convivência, absortos com seus afazeres e sequer reparando no atento caminhante.
A idílica sequência de passos, ao invés de prazenteira, foi sendo tomada de uma angústia crescente, sem que ficasse claro o motivo. O mal estar impôs a reflexão: o que há de errado na paisagem, nas pessoas? Por que me perturba viver uma cena que já assisti milhares de vezes em filmes ou na grade de programação da TV por assinatura? Eis a palavra chave: grade. Faltavam grades. Não havia muros, cercados, portões. Nem tramelas, cadeados, correntes. O choque.
Furtos, assaltos, violência física e psicológica, crimes contra a vida e maldades em geral não escolhem lugar ou vítima. Muito menos são exclusividade de países, estados ou cidades. Meu camarada não estava chocado com a existência de um mundo ideal, livre da crueldade dos homens. O grande baque foi perceber que naquela cidade ninguém culpava o cidadão pelos crimes dos quais seria uma vítima em potencial. Em nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, fomos todos condenados.
Vivemos em prisão perpétua e regime semi-aberto: sim, é preciso deixar a cadeia para trabalhar. Antes de sairmos, fechamos a cela, atravessamos as grades e, bem educados, damos bom dia ao carcereiro. Quanto pior for nosso delito, também conhecido pelo nome de prosperidade, maior será a segurança: cerca elétrica, alarmes, muros, sensores de presença, câmeras de vigilância, rastreamento eletrônico, veículo blindado. Trilhões de Reais investidos neste sofisticado sistema prisional.
Não sendo o suficiente, a população ainda precisa suportar a imposição de diversas regras de conduta por parte de técnicos privados e agentes públicos: não ande com muito dinheiro no bolso e separe as cédulas dos documentos; antes de acionar o portão da garagem, investigue os arredores em busca de movimentos suspeitos; não atenda desconhecidos ou dê esmolas; mantenha os vidros do automóvel fechados; evite rotinas e mude trajetos; desconfie de entregas de flores ou mercadorias; investigue o passado dos prestadores de serviços etc. Ao descuidado, o castigo virá cedo ou tarde.
Depois do choque, meu amigo constatou que fomos cozidos tal qual o sapo mergulhado em água fria: lentamente, fogo brando. Trinta anos atrás, poucas eram as casas com muros intransponíveis, grades e segurança. As crianças de todas as classes sociais deixavam a escola a pé, andavam de bicicleta pelos bairros, jogavam bola no terreno baldio. Sentávamos nas calçadas para curtir o final de tarde, porta aberta. Jovens circulavam pela madrugada indo das festas para casa. Já havia ricos, pobres e miseráveis; bandidos e polícia; virtudes e pecados. O que não existia era a pena de prisão imposta ao inocente, cuja culpa pode ser a pretensão de um dia voltar a morar em uma alameda calma, arborizada e livre. Crime hediondo.

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14.7.11

Espelho Mágico

Número 430

Rubem Penz

Ei, você que está sem tempo; que está sem saco; sem paciência: tudo parece pesar sobre seus ombros? Família, compromissos, dívidas, metas, microvarizes, macroeconomia... Tarefas de ontem para hoje ou, pior, de hoje para ontem. Enxaqueca, pressão alta, índices de colesterol e Dow Jones a preocupar.  Clientes, pacientes, impacientes... Você sabe onde foi parar aquele seu sorriso fácil, inocente e franco?

Ele está bem aí, no seu rosto. Só precisa do espelho certo para aparecer.

Eu já comecei a resgatar meu sorrir. Tenho sorte: retiro o espelho mágico de tempos em tempos da gaveta. Fui apresentado para ele faz dez anos e não pretendo esquecer jamais de sua existência. Descobri no olhar dos amigos de infância o reflexo do meu melhor sorriso. Aquele que tenho mais verdadeiro. Melhor: notei que todos ainda sorriem do mesmo modo diante dos meus olhos. E falam bobagens, recordam histórias, mostram a criança que jamais deixará de existir. Ao menos para quem a deseja viva.

Muitos espelhos me aguardam em outubro.

Há uma tradição na escola em que cursei o ensino fundamental e médio: a cada intervalo de dez anos, os formandos preparam uma festa. Nada de extraordinário, apenas música, algo para comer e beber, um salão enfeitado. Porém, a experiência de encontrar centenas de amigos de infância transforma completamente o cenário. Juro que nenhuma festa de casamento, batizado, Natal ou Ano Novo supera o índice de sorrisos do reencontro. Sorrisos-espelho.

Um encontro marcado comigo mesmo, aos dezessete anos (ou menos).

Nem todas as escolas incentivam este espírito de geração, de turma, de colegas para vida inteira. Sou alguém de sorte. Meus companheiros também. Assim que começamos a organizar o evento, os mais sensíveis se deram conta de que beberão o elixir da juventude: diante de nossa geração, somos todas as idades, inclusive (principalmente) as que ficaram bem para trás. Resgataremos apelidos, vamos nos lembrar dos professores, das roupas e bravatas. Mais: ofereceremos e tomaremos de volta olhares sobre um período formador de nossa história.

 Serão poucas horas que valem dez anos de espera.

Nesta década, desde o último encontro, a vida não parou: entre nós, houve sucessos e fracassos, muitas perdas – algumas tão doídas que brotam lágrimas enquanto escrevo –, nascimentos, formaturas, casamentos, separações, viagens de ida ou de volta. Assunto não faltará caso o presente entre na ordem do dia. Uns podem se surpreender com o menino tímido que hoje é um astro, ou com a moleca transformada em autoridade. Outros, talvez a maioria, reconhecerão no amigo de infância o caminho já traçado em tempos idos: tão bom em matemática, a carreira acadêmica caiu-lhe feito luva.

Do Colégio Anchieta para a vida, sem perder-se das lembranças.

Os espelhos de classe já circulam entre colegas: nossas fotos em 3 X 4 nas turmas, ordenados pelo alfabeto. Ali estou, trinta anos atrás. E os outros, até os que já não mais estão por aqui. Especialmente eles... Nem todos sorriem nas fotos. Mas posso apostar que estarão felizes ao entrarem no salão. Meninos e meninas. Crianças grandes que encontrarão tempo, saco e paciência para dar um nó na rotina e um golpe no calendário. Sorrir tão largo que, de ponta a ponta, alcançará de 1981 até 2011. Como por encanto.

E você: descobriu seu espelho mágico?


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8.7.11

Futebol, essa obsessão

Número 429
Rubem Penz
Quando tinha quinze anos, ainda nas categorias de base, tropeçou em um fio e entrou no campo pulando duas vezes com o pé direito. Naquela tarde, marcou o mais belo gol de sua iniciante carreira – meia bicicleta, logo atrás da marca do pênalti, no ângulo. Dali para frente, jamais dispensou aqueles dois pulinhos que lhe deram tanta sorte.
Em outra oportunidade, nas finais do campeonato regional, ao dar seus dois pulinhos, desequilibrou-se e rolou em uma cambalhota. Quase morreu de angústia. Suava frio perfilado para a fotografia. Porém, marcou dois golos, o segundo aos quarenta e dois do segundo tempo, garantindo a vitória. Ah, que dúvida: adotou a cambalhota.
Era sua primeira partida na Seleção Sub-17. Deu seu dois pulinhos, a cambalhota e aplaudiu de volta as manifestações da torcida. Naquele jogo, não só fez dois golos, como também foi escolhido pela crônica especializada como o melhor em campo. Quem foi que disse que dormiu à noite? Já amanhecia quando teve convicção de quantas palmas batera na entrada em campo.
Sentado no banco de reservas, aguardava com esperança pela chance de compor entre os profissionais, quando uma mosca quase pousou em seu rosto. Enojado, sacudiu as mãos, a cabeça e, surpresa!, chamou a atenção do técnico. Passava dos trinta e cinco do segundo tempo. Deu dois pulinhos, uma cambalhota, dezenove palmas e substituiu o número dez. Mudou o jogo, revertendo um empate vexatório.
Estréia como titular no time. Todos os parentes na arquibancada. Pediu, ou melhor, implorou para ser o último da fila no momento de entrar em campo. Deu dois pulinhos, uma cambalhota, dezenove palmas e sacudiu com violência a cabeça e as mãos ao entrar em campo. A torcida, obviamente, estranhou. Ouviu-se um apupo. Olhando para as sociais, identificou o pai, a mãe e a avó. Saltou e acenou usando toda sua envergadura. Na primeira jogada, mal apitara o árbitro, já estava marcando um gol. O seu mais rápido gol!
Escutou pelo rádio: saíra a convocação para a seleção nacional e seu nome estava na lista! Um amistoso, longe da Copa do Mundo, contra um selecionado obscuro da Europa Oriental, mas era a oportunidade. Fazia muito frio. No primeiro treino, depois de entrar em campo com dois pulinhos, uma cambalhota, dezenove palmas, uma simbólica espantada de mosca e sete polichinelos, deu uma corridinha no mesmo lugar para reforçar o aquecimento. Então, testemunhou uma lesão grave no titular absoluto de sua posição. Imediatamente trocou de colete e viu asfaltada sua estréia como meia atacante da seleção. Adotou a corridinha.
Hoje, Ivanilson tem trinta e seis. Faz três anos que foi repatriado, depois de passar doze jogando nos maiores clubes do mundo. Já foi a quatro Copas. Vende saúde. É sempre determinante nas partidas. Também o único que dispensa aquecimento antes de entrar em campo. Fica ali, divertindo a torcida com novecentos e oitenta e quatro movimentos, integramente repetidos em ordem, algo que já consome quase vinte minutos.
Até abandonar a bola, crê que chegará aos mil amuletos.

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1.7.11

Rua dos Bobos, nº zero/ap.101

Número 428

Rubem Penz

Era um apartamento muito engraçado. Não tinha teto: à noite, o que tinha era um tablado de dança flamenca. Única explicação para tanto salto batendo sobre a cabeça. Mas não parava por aí, não. De manhã, caso resolvesse recuperar o sono perdido sob influência andaluz, o teto virava algo parecido com uma pista de boliche. Há quem tenha compulsão em mudar toda a mobília de lugar, agravada pela incapacidade de elevar os móveis do chão. Logo, a expressão "uma manhã que se arrasta" ganhava outros contornos.

Ninguém podia entrar nele, não. Ao menos sem antes passar por um gradeado de quase três metros de altura à beira da calçada. Ali, um porteiro eletrônico com aquele ruído de linha aberta dava a impressão de que alguém mais escutava a conversa. Depois, outra barreira: a porta do prédio, sempre trancada a sete chaves, com ordem expressa de assim permanecer a qualquer horário. Por fim, mais uma grade, agora diante da porta do apê. Qualquer semelhança com presídios e celas é mera coincidência com nossa (in)segurança pública...

Ninguém podia dormir na rede, porque no apartamento não tinha paredes. O que ele tinha, com boa vontade, eram estruturas divisórias. Pendurar quadros já era uma temeridade, que dirá uma rede... Qualquer broca de maior calibre arrombaria a parede do vizinho. Essa, aliás, era a explicação para não ser necessário som na TV, caso ao lado estivessem ligados no mesmo programa. Também a resposta para sabermos há quantas andava o relacionamento afetivo uns dos outros: primeiro a DR, depois a briga e, mais tarde, a reconciliação. Às vezes, uma segunda reconciliação.

Ninguém podia fazer pipi sem que o ruído circulasse pelo fosso de luz, anunciando para todos no prédio o volume do jato. Essa era a melhor notícia. Pior, mesmo, eram os momentos de indisposição intestinal. Ou quando algum acidente de percurso exigia que chamassem o Hugo – eufemismo simpático para o ato de regurgitar em abundante jorro. A rádio fosso de luz, recuperando-se dos ruídos fisiológicos, transmitia os hits de chuveiro de todos os moradores. Também a terceira reconciliação pós DR, agora sobre a pia ou dentro do box.

Era decorado com humilde esmero: na sala, um sofá de dois lugares herdado de uma tia, caixa de maçã apoiando a TV de 14' e mesa dobrável com quatro cadeiras. No quarto, o colchão repousava direto no carpete, defronte ao armário de duas portas. Na cozinha, a infalível geladeira Frigidaire branca que um dia fora da família.

E era pago com sofrido esmero – quase a metade do salário sumia entre aluguel e condomínio. O restante tinha finalidade bem mais nobre: cerveja para receber os amigos e vinho para impressionar as meninas. Ah, claro: comida suficiente para se manter vivo.

Mas era curtido com muito esmero! Todos aqueles que tiveram apartamentos parecidos com esse, ou mesmo um JK, descobriram a dor e a delícia de ser independente. A delícia vinha do despojamento juvenil, algo tão fora de moda. E a dor também, é claro. Um banho meio frio que o diga.

*Crônica inspirada em A casa, de Vinícius de Moraes


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23.6.11

Um olhar por onde pisamos

Número 427
Rubem Penz
Estamos vivendo um tempo de contradições inexplicáveis. Por um lado, nada anda mais esvaziado em sentido do que nossas agremiações político-partidárias: desde a redemocratização brasileira, é cada vez mais frequente sobreviverem de alianças esquizofrênicas, ideários de ocasião, loteamento de cargos e polêmicas de fachada. Por outro lado, nunca antes tais estruturas detiveram tanto poder, espalhando seus tentáculos em todos os níveis.
Vicejam no noticiário rivalidades partidárias permeando eleições de entidades de classe e estudantis; em conselhos administrativos, tutelares ou consultivos; na escolha de diretorias em empresas públicas, autarquias e fundações; na indicação para tribunais, representações diplomáticas e econômicas... Enfim, os membros de uma sigla ou outra disputam cada milímetro de comando e de influência, ora acusando o oponente disso e daquilo, ora compondo acordos de mútuo benefício.
A última fronteira administrativa a ser cruzada pelos partidos talvez seja o condomínio onde moramos. Mas, no ritmo em que os vampiros avançam sobre o sangue social, nem as assembléias condominiais escaparão.
– Questão de ordem! – brada Oswaldo do 202. – Estamos faz meia hora discutindo o suposto cocô do dachshund da dona Zaida, enquanto questões fulcrais da administração esperam na pauta. Como o fato de nosso prestador de serviços de jardinagem ter contratos com todos os condomínios administrados pelo partido do síndico!
– O senhor diz isso porque não foi o seu Persa que acabou emporcalhado por um filho de pés sujos! – rebate Jurema do 901.
– Com licença, eu estou me dirigindo à mesa: não converso com os neo-liberais que moram nas coberturas.
– Só se for aqui nesse prédio! No Colinas Verdejantes, do outro lado da rua, três das quatro coberturas são habitadas por seus correligionários. Todos sabem!
– Por favor, gente! Vamos voltar ao assunto do momento – suplica o presidente da mesa. – Quem vota a favor de termos 12 câmeras vigiando as áreas internas, e que as imagens sirvam de prova para multar os donos de cães?
– Sem nenhum acréscimo à taxa condominial? – pergunta seu Jair do 605.
– Impossível – corrige o síndico. – Não temos previsão orçamentária para fazer frente a essa nova despesa legislativa.
– Revise os contratos superfaturados das floriculturas... – diz Oswaldo.
– Eu não vou ficar aqui escutando acusações sem provas de gente ligada à máfia dos elevadores! Com licença que estou perdendo a transmissão do jogo do meu time lá em casa.
– Pois eu espero que leve uma goleada, corrupto sem-vergonha!
– Secretário, faça constar na ata essa ofensa! E pode escrever aí que eu desafio a oposição a sentir o peso dos meus argumentos ali fora!
– Só se for agora!
(...)
– Putz, só um instante que eu pisei numa m...

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16.6.11

Rótulos

Número 426

Rubem Penz

Xampu Esteserve para os lisos: fórmula exclusiva para quem mal segura as pontas. Ideal em casos de escrúpulos em excesso, um pouco de ímpeto e quase nada de talento na cabeça. Use de olhos fechados: como tudo na vida dos lisos, também arde um pouco. Desaconselhado para quem tem luzes, indicado para os descoloridos. Exclusiva tampa que sai fácil: para enxaguar e aproveitar até a última gotinha. Embalagem econômica: 1 litro ou 5 por preço de 4. O único que faz espuma até com água salobra.

Xampu Esteserve para os secos: fórmula desenvolvida para os muito resistentes de todas as cores, cortes e tamanhos. Ideal para casos de ímpeto em excesso, um pouco de escrúpulos e quase nada de talento na cabeça. Uso frequente: desestressa e renova a aparência. Corrige a falta de brilho e contém as ondas mais rebeldes com o uso continuado. Embalagem customizada: 500 mililitros. É sempre o primeiro que vem na cabeça de qualquer um. Quando não o único.

Xampu Esteserve para os ondulados: fórmula desenvolvida para os mais brilhantes, porém quebradiços. Ideal para os casos de talento em excesso, escrúpulos em alguma medida e quase nada de ímpeto na cabeça. Harmoniza os movimentos realçando o volume. Ajuda a suportar o bafo constante dos secadores. Em três embalagens: pequena (para viagens), média (individual) e grande (família). Confie em sua ação restauradora.

Xampu Esteserve para os normais: fórmula para os tipos totalmente indefinidos. Ideal para os casos de escrúpulos em excesso, um pouco de talento e nada de ímpeto na cabeça. Também é condicionador – molda, amacia e evita os nós. Não encrespa com os lisos nem passa reto quando a coisa está enrolada. Embalagem de 680 mililitros e refil econômico. Até sábado, na compra de três unidades, grátis uma saboneteira de parede para você parar de juntar o sabonete do chão, Mané!

Xampu Esteserve para os oleosos: fórmula desenvolvida para os tipos escorregadios. Ideal para casos de muito talento, algum ímpeto e carência congênita de escrúpulos na cabeça. Nunca deixa cheiro por onde passa. Condiciona na medida para a passagem incólume do pente fino. Trata dos fios desde a raiz, fortalecendo até as pontas – algumas vezes duplas, outras triplas ou formando quadrilhas. Embalagem redonda com 200 mililitros, oval com 500 mililitros e cilíndrica de litraço. Este é o xampu mais usado por quem tem chapinha sempre à mão.

Xampu Esteserve para lavar perucas: fórmula ultra secreta desenvolvida para lavagens fora do box. Ideal para casos de muitíssimo ímpeto, algum talento e nem sombra de escrúpulos na cabeça. É o único feito sob encomenda para lavagens de terceiros, aqui ou no exterior. A embalagem discreta encobre sua forte cor de laranja. Também encontrado em pastas pretas. Precauções: cuidado, este produto está à venda somente em nossa caixa postal. Imitações dão um nó Federal. Mantenha fora do alcance de quem deseja sua cabeça.


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9.6.11

Dá-me um Cornetto!

Número 425
Rubem Penz
Diga-me quais são teus comerciais favoritos e eu te direi quem és. Não há escapatória: somos apaixonadamente saudosistas e, dos tantos afetos acumulados, amamos loucamente os comerciais que passaram em nossa juventude. Tanto quanto as músicas preferidas, as novelas, as escalações do time do coração. No mesmo nível dos livros que fizeram nossa cabeça, dos filmes, dos bares, da turma de amigos. Num estalar de dedos o tempo retorna e soltamos jingles e diálogos inteiros de cor.
Pude testar isso faz alguns dias. Sem nenhum planejamento, apenas buscando em grupo ideias para a atividade escolar da sobrinha mais velha, lancei a possibilidade de eles resgatarem alguns clássicos da propaganda nacional. Acho que o primeiro filme de que lembrei foi aquele do Fernandinho, o das camisas US Top. "O mundo trata melhor quem se veste bem", dizia o locutor. Duvido que alguém com mais de quarenta anos tenha esquecido a ascensão meteórica do Fernando dentro da empresa, em meros 30 segundos. Uma pérola!
Detonei o estopim para explodirem diversos filmes em nossas mentes. O clássico estrelado pelo Carlos Moreno vendendo Bombrill, por exemplo. De tão bom, gerou uma série maior do que todos os Rambos, Indiana Jones, Guerra nas Estrelas e Duros de matar juntos! Foi tão explorado, a ponto de acompanharmos a escalada da calvície do ator e sua entrada no Guinness Book. Outra série lembrada, igualmente simples na feitura e genial na criação, foi a da Brastemp. Nossa memória, quem diria, ainda é uma Brastemp!
Aí passamos aos jingles. Ponto para a Varig: continua nos emocionando com sua estrela brasileira no céu azul, iluminando de norte a sul. Todos os conceitos apresentados no filme ganhavam força com a melodia doce e enternecedora. Voar naquela companhia era o mesmo que ser ninado pela mamãe. Em tempos de pós-apagão, perdemos o glamour dos aeroportos, o conforto, o carinho com os passageiros... E que tal um Cornetto para refrescar? Quem diria que, tão jovens, sairíamos entoando uma melodia operística cada vez que comprássemos um simples sorvete. Mas, na verdade, era impossível evitar a versão parodiada de O sole mio, clássico do cancioneiro italiano. Que delícia!
Como isso continuou é fácil de adivinhar: um comercial levou a outro e a outro e a outro e a outro. Num instante, meus filhos e minha sobrinha já não estavam tão interessados. Nem minha mãe, cuja nostalgia afetiva recai nos reclames do rádio, com certeza. Mas nós, quarentões, passamos pelos Cobertores Parayba, pelo primeiro sutiã, pelo Star Sax (Kraftwerk!), pelo comercial de fim de ano da Rede Globo e muito, muito mais.
Assim como invejo as pessoas que viveram o melhor momento da música brasileira durante sua mocidade (o que eram os Festivais dos anos 60?), tenho certeza de que serei invejado por ter assistido a melhor geração de publicitários do Brasil no apogeu criativo. Sem mais delongas: Corneeeeeeeeeetto mio!

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2.6.11

Resumo da ópera

Número 424

Rubem Penz

– Deixa de ser relaxado, guri!

Eis uma das mais frequentes falas que eu escutava na infância, dita, especialmente, pela mãe. Motivos? Variavam muito: meus cadernos podiam estar com orelhas de burro, os cadarços do tênis desamarrados, a cama desfeita, a escrivaninha caótica, os temas por fazer, o cabelo despenteado, roupa suja no canto do quarto etc. ao infinito. Relaxar, definitivamente, não era um comportamento admissível. Muito menos justificável.

Lembrei disso agora porque estão em cartaz os problemas de autoridade, de limites e de educação no âmbito familiar, com reflexos sentidos na escola e na sociedade. São dificuldades surgidas bem no momento em que foi abandonada a rigidez do passado para ser instaurada uma relação bem mais, digamos, relaxada no trato pessoal. Tiramos da pauta as antigas (por vezes ásperas) ordens, substituídas por serenas combinações. Porém, caso os pais queiram de volta o firme comando, correm o risco de ter como resposta:

– Deixa de ser estressado, pai!

Então hoje há filhos relaxados e pais estressados? Diria que sim, e exatamente o contrário também: os adultos se tornaram uns relaxados e a meninada acaba por viver sob consequente stress.

Aquele "relaxado" da minha infância não existia em oposição ao tenso, e sim ao descuidado, indisciplinado, descomprometido. Bem o problema que aparece na postura de muitos pais. Afinal, educação é algo que exige cuidado, disciplina e, acima de tudo, comprometimento. Em outras palavras, não se pode relaxar. Só tem credibilidade para ditar regras aquele que as tem para si, cumprindo-as. Isso vai desde a toalha pendurada no lugar até o parar no sinal vermelho. E, acima de tudo, é preciso atribuir tarefas e posturas, cobrando-as mil vezes se for necessário. Duas, três mil vezes até.

Mas o que dizer de uma meninada cada vez mais desobediente, agressiva, malandra? Seriam eles, então, muitíssimo relaxados? Depende. Se eles cresceram sem ser responsabilizados (mil vezes) pela ordem no quarto, pelo asseio, pelas notas escolares, pela obediência à autoridade etc., a resposta até pode ser não. Para ser relaxado é preciso ter atribuições. E, como sequela dessa renúncia involuntária aos deveres, nasce o stress juvenil: incapacidade de lidar com a frustração, com o limite, com as cobranças que, um dia, acontecerão. Aos mimados, crescer dói em dobro.

Recorrendo ao impreciso e, por vezes, injusto recurso da generalização, resumiria a ópera educacional do momento como uma tragédia em dois atos (ou melhor, duas omissões): pais estressados e relaxados, criando filhos relaxados e estressados. Ambos dispostos a culpar o professor, a escola ou o método pedagógico pelo mau espetáculo oferecido. E o Brasil, depois, reclama dos fracassos na bilheteria...


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27.5.11

De onde?

Número 423

Rubem Penz

Você liga para uma empresa e pede para falar com alguém. Do outro lado, a moça pergunta quem deseja falar. Você se identifica. Aí vem a pergunta fatal: – De onde? É quando a porca torce o rabo. Ao menos comigo.

Em tais casos, sempre tenho a impressão de que serei vítima de uma triagem. Uma barreira instituída por escalões superiores para permitir apenas a passagem de assuntos relevantes ou, pior, pessoas relevantes. Uma espécie de filtro de linha para segurar impurezas corporativas. Ação que pode até ser louvável, mas raramente é aplicada sem imprevistos, pois está sujeita às falhas da subjetividade. E subjetividade, nos últimos tempos, poderia ser meu apelido.

É quando tento escapar pela tangente: dou meu nome completo, como quem sugere com polidez ser o suficiente ao destinatário. Funciona algumas vezes e tudo é resolvido com civilidade. Em outras, não: – Sim, mas "da" onde? – insiste a moça (coloco esta variante, com aspas, para agradar os sociolinguistas). Noto que será preciso oferecer mais informações, ou nada feito, e aquilo que era um simples telefonema começa a se complicar...

Dizer que é um assunto pessoal, mesmo sendo a verdade, é um desastre. Ou ela insiste em saber mais, o que beira a invasão de privacidade, ou passa a ligação e simultaneamente passa a imaginar coisas. Em ambos os casos tenho a impressão de estar prejudicando a pessoa com quem desejo falar. Quando opto pelo lacônico "é um amigo", também abro o flanco para as especulações, principalmente quando ligo para uma mulher – a mais libertina variação sexual é a presumida.

Mentir seria boa ideia? Houve um tempo em que foi moda identificar-se como o professor de balé (no politicamente correto, seria piada homofóbica). Mas isso pressupõe a intimidade dos parceiros de longa data. A maior chance para as mentiras, mesmo criativas, é a de não ser atendido – ponto para a triagem. Dizer que é do pronto-socorro (ou da Receita Federal ou da 5ª Delegacia de Polícia) pode até garantir atendimento, mas é brincadeira de mau gosto. Logo, mentir nem sempre é opção.

Excesso de sinceridade é outro problema. Usar o "de onde?" para detalhar elos, justificando-se, é patético e soa como quem vai pedir dinheiro emprestado: – Ele me conhece desde 1978, do colégio. Depois disso, namorei a irmã dele por dois anos e quase nos casamos, sabe? Ultimamente perdemos um pouco o contato, estive morando em Manaus, depois em Macapá, Porto Velho, Santa Cruz de La Sierra... Então, como estou de passagem pela cidade...

Enfim, nada melhor do que saber o telefone celular dos amigos. Porque só tem uma coisa pior do que cair nas garras inquisitórias de uma secretária: ligando para sua residência, ser atendido pela esposa. Ou (encrenca!) pelo marido:

Rubem??? Rubem de onde?


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19.5.11

Dia de faxina

Número 422

Rubem Penz

Quem um dia, durante a infância, não levou um chega pra lá da faxineira? Um chispa daqui, um vai procurar a tua turma? Essas profissionais pragmáticas lidam com um cronograma apertado: muitas tarefas a cumprir em pouco tempo. Também com a combinação nem sempre amistosa de movimentos amplos e objetos delicadíssimos. Logo, não encontram espaço para a diversão, para a criatividade ou mesmo para a poesia que uma sessão de limpeza parece oferecer.  Em outras palavras, faxina não combina com criança, por maior que seja a tentação de encontrar oportunidades quando a casa fica de pernas para o ar.

Uma sexta-feira de faxina e o exílio involuntário de uma menina no playground do edifício é justamente o ponto de partida do livro O mundo de Camila, Editora Projeto. Sua autora, Márcia do Canto, aproveita muito bem a situação para nos conduzir pelos caminhos do pensamento da protagonista. Através dele, revela o quanto uma criança está atenta ao entorno de si. Também nos faz notar uma sutil, porém determinante, diferença entre o perceber e o compreender: ancorados na certeza de que uma criança não compreende a complexidade das relações tecidas na sociedade, corre-se o risco de pensar que aos pequenos passam batidos os nossos conflitos. Então, surge a voz de Camila para revelar – denunciar? – o óbvio: tudo vejo, tudo sei, tudo sinto.

Um dos méritos da obra, no entanto, está em permitir ao mesmo tempo duas leituras sobrepostas. Às crianças, Camila diverte, encanta, conduz com leveza por sua rotina. A mão hábil da autora oferta um discurso atento e puro, muito próximo daquele que escutamos de nossos pequenos. A identificação por parte deles, com isso, é imediata. Por outro lado, lacunas deixadas com perspicácia induzem o leitor adulto a completar o que não está dito com tudo o que é possível ser compreendido. Aos pais, este livro oferece o dobro de páginas, escritas em um denso e reflexivo subtexto. Nada ali aparece gratuitamente, em todas as passagens surge o importante alerta de que estamos, sempre, expostos.

Tudo isso no livro inaugural da autora é alvissareiro, mas não gratuito. Márcia do Canto carrega consigo uma considerável bagagem. Atriz, produtora de teatro, rádio e TV, comunicadora e psicopedagoga, Márcia conduz com Ineida Aliatti desde 2007 o programa Alô Pai e Mãe, transmitido semanalmente pela Rádio FM Cultura (RS) e outras emissoras. Nascido para dar voz tanto aos especialistas (pedagogos, psicólogos, psiquiatras) quanto aos leigos (pais, mães, avós, tios), o encontro semanal diante do microfone tem se mostrado um grande fórum de debates. Mal comparando, as pessoas são convidadas para participarem de uma espécie de faxina nas relações familiares e sociais.

O mundo de Camila termina com a protagonista indagando se já não estaria na hora de voltar para casa para o almoço. Neste ponto, nós, leitores adultos, já fizemos uma limpeza em muitos conceitos. Resta saber se nossos movimentos amplos não partiram algum sentimento mais delicado. Ou se a casa permaneceu de pernas para o ar.


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13.5.11

Ex citante

Número 421

Rubem Penz

Caríssima ex,

É voz corrente que você costumava me citar a todo o momento. Estivéssemos em um grupo mais íntimo, sem a menor cerimônia vinha você e me citava. Na cozinha, na sala de estar, nos jardins. Na frente de estranhos, também. Até diante de uma platéia você dava um jeito de me citar. Eu? Nossa... Ficava muito envaidecido, é claro! E vermelho. Chegou um momento em que fazia até questão de frequentarmos eventos concorridos para ver você me citando na frente de todo mundo. Bons tempos.

Hoje, você diz que parou de me citar porque eu parei de lhe citar bem antes. Muito estranho. Jurava que lhe citava com assiduidade, desde a hora em que nos conhecemos. Aliás, quando começamos, acho que lhe citava sem parar! Ah, loucuras de quem só pensa no amor: um não tira o outro da cabeça... e cita desavergonhadamente. Você só pode estar enganada. No máximo, admito, se deixei de lhe citar, foi sem me dar conta do que fazia. Quer dizer, do que não fazia. Ou... Viu só: agora fiquei até confuso! Para vocês, mulheres, ou estamos lhes citando o tempo inteiro, ou não lhes citamos nunca mais. Sem meio termo: homens têm que citar suas parceiras e pronto!

Pensando bem, o que pode ter acontecido conosco é caso típico de calúnia e difamação. Muitas de suas amigas, desejando muito nos ver separados, podem ter espalhado a notícia de que citei outras mulheres por aí, quando não elas mesmas. E citei no trabalho, no clube, até na igreja. Mais: que citei ex-namoradas outra vez. E citar amores antigos por acaso é crime? Para mim são apenas boas lembranças, quase inocentes na medida em que o tempo vai passando. É citação à distância, enfim. Nada de grave. Não que eu esteja admitindo que seja verdade, me poupe! Suas amigas me citarem é uma coisa, colocarem palavras em minha boca é bem outra.

Para piorar nosso caso, noto você citando outros homens de maneira proposital e despudorada, principalmente quando sabe que estarei por perto. Já peguei você citando meu chefe, os colegas de pôquer, os pedreiros da esquina, o filho da vizinha. E citando de modo superlativo! Quando eu era o dono do campinho, até ficava orgulhoso quando você citava os homens ao redor, porque era assim que me citava também. Mas, a partir do momento em que faz questão de não me citar mais, é citando os outros que pretende terminar com a minha auto-estima.

Não sei por que ainda sofro. Já que tudo começou por você sentir que não lhe citava mais, mesmo quando eu achava que seguia lhe citando, farei questão total e absoluta de nunca lhe citar de novo. E, se citei agora nessa carta – contra a vontade! –, foi apenas para você saber o que perdeu.

Por fim, de agora em diante não me cite mais nem de brincadeira. É humilhante até para você ter um ex citado com saudade, ou um ex citado com malícia, ou um ex citado como piada. E citação depois de tanta mágoa é muita vontade de referir.


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6.5.11

Espelhados

Número 420

Rubem Penz

Nenhuma diferença entre os dois, dissera o corretor de imóveis, eles são absolutamente espelhados. Então o rapaz optou por alugar o apartamento 702. A mudança aconteceria em poucos dias. Para a moça da sala de espera, e que se ergueu enquanto ele se despedia satisfeito, não restou escolha. Porém, caso houvesse, teria mesmo ficado com o 701: 7+1=8, o número do infinito. Sorte. Também pressa – suas coisas já estavam a caminho, vindas do Espírito Santo.

Cruzaram-se novamente bem no meio do corredor do sétimo andar. Ele trazia nas mãos o tocadiscos Technics SL 1210 MK2, uma preciosidade. O grosso das coisas subiria pelo elevador de serviço. Ela levava consigo algumas pastas com trabalho e uma expressão de noite mal dormida. A famosa cara de poucos amigos. Nem bom-dia, nem olá, nem ao menos um oi.

Ao cair da tarde, diante da janela, enquanto ele se deixava impressionar pela nova paisagem ao som de Aretha Franklin, Natural Woman, uma luz estranha acendeu à suas costas. Entrava através porta do banheiro, invadindo a sala de estar. Foi conferir e, para grande espanto, ali estava a mesma moça da manhã com o olhar fixo para ele. Bem do outro lado do grande espelho que ocupava toda a parede sobre a pia. Ele abanou, fez uma careta, dançou para ela que, alheia, apenas conferia as próprias olheiras. Absolutamente espelhados, lembrou. E sorriu.

Maravilha! It's cool, diria se fosse personagem de comédia romântica. Acompanhou um xixizinho, o lavar das mãos e, quando ela apagou a luz, ao partir, o reflexo original voltou para o espelho, ainda que fugidio em razão da penumbra. Ele tratou de acender suas duas luzes: a do teto e o spot do espelho. Tateou, percutiu, quase encostou o rosto para ver se havia algum truque. Normal. Anormal. Sensacional!

Eram dias muito ocupados e noites com ainda mais interesses para conferir. Ele, satisfeito com a paisagem, nem fazia muita questão de encontrar a bela vizinha pessoalmente. Ainda mais que ela estava sempre com aquela cara de me deixa só e não perturba. Tão linda e asseada, mas fria como o toque no vidro. Seria timidez ou soberba? Chegou a forçar um esbarrão na garagem, entre os carros, esperando o enunciado: você não se enxerga no espelho? A resposta na ponta da língua – Não!

Desde o princípio, também, ele desconfiou que o efeito espelhado pudesse acontecer de lá para cá, cuidando para não fazer algo que viesse a chocá-la. Ao contrário, caprichava nas poses, caras e bocas como se estivesse participando do mesmo Big Brother que tanto o distraía. Resolveu usar e abusar do artifício da nudez. Entretanto, nada de ela o perceber, logo ele que tinha tanto orgulho de seus dotes. Nem bom-dia, nem olá, nem ao menos um oi.

Quando ela partiu, e mal transcorrera o ano de contrato, ele foi incansável ao batalhar por uma chave do 701. Precisava muito saber se era visto pela vizinha, dúvida atroz. No grande espelho sobre a pia, escrito com batom vermelho, adeus.


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29.4.11

Algemas de falópio

Número 419

Rubem Penz

As imagens de uma mãe que passa na rua e deixa seu bebê em um container de lixo, flagradas por câmeras de segurança, foi exaustivamente reprisada e varou fronteiras por esses dias. Também pautou reportagens recordando casos semelhantes: um bebê encontrado em saco de lixo, outro no valão do esgoto, outro atirado sobre o muro. E muitos mais pipocam no noticiário, sempre com a mesma questão: por que uma mãe abandona seu filho? Respondo: porque ela, antes, o acolheu.

Aqui está uma das diferenças básicas entre homens e mulheres, impossível de ser ignorada, mesmo em tempo de brados pela igualdade: mulheres são ventres, e a Natureza criou o ventre para acolher a vida. Por sua vez, homens ejaculam, isto é, lançam a vida para longe de si. Assim, entre tantos canais de TV, poucos se lembraram de fazer aquela pergunta primeira de quem compreende o nascimento como fruto da união de um casal: onde está o pai nessa história de abandono? Respondo outra vez: ele simplesmente não está, pois só pode abandonar quem um dia acolheu.

Abrigar os filhos é tarefa precípua das mães. Assim, quando um rapaz fecunda uma parceira e, com o perdão da alusão anatômica, simplesmente tira o corpo fora, pode fazê-lo sem lidar com igual parcela de culpa e sofrerá cobrança moral menos rigorosa do que aquela que será imputada à mulher. Isso é triste, injusto, errado e precisa mudar (está mudando), mas é a realidade – ou saiu a notícia de que o pai da menina jogada no lixo também poderá ser denunciado por abandono de incapaz? Ah, claro: ele não a abandonou, pois sequer a acolheu.

Eis a razão de o fardo da anticoncepção pesar tanto mais sobre os ombros das mulheres: ao nascerem, foram condenadas ao acolhimento. Por isso, nada libertou mais o sexo feminino do que os métodos anticoncepcionais. E, melhor: sem culpa, colocando as moças, finalmente, em pé de igualdade com os rapazes. Afinal, mesmo o aborto (a vida é ou não válida ainda na fase embrionária?) traz uma sombra de abandono, fazendo sofrer. A saída indolor para o impasse é entregar à mulher a chave das suas algemas de falópio.

Faz muito tempo que a elite cultural e econômica gera prioritariamente filhos planejados, usufruindo de plena liberdade de escolha. Estivessem tantas mulheres que sofrem pesadas restrições sociais atendidas por programas sérios e eficientes de conscientização em termos de fertilidade, não haveria tamanho abandono infantil. Evitando a acolhida inicial, quando involuntária ou irresponsável, preveniríamos o desamparo.

Nossas crianças não estão jogadas no lixo somente no sentido literal, aquele da notícia: também lá estão quando, miseráveis, sucumbem em rotinas degradantes. Conteiners metafóricos aguardam nossos anjos nas drogas, na prostituição, na exploração do trabalho infantil, nas mortes violentas, nas doenças que brotam da falta de saneamento básico, na mendicância. Todos podem ver isso sem a necessidade das câmeras de vigilância. Mas as autoridades escolhem não ver.


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20.4.11

Nova concorrência Pascal

Número 418

Rubem Penz

Em 2008 noticiei em única mão o término do contrato de concessão aos coelhos para serem os animais símbolos da Páscoa, além da consequente abertura de Edital para nova concorrência. Confira no Rufar dos Tambores número 256, de 19 de março (http://rufardostambores.blogspot.com/2008/03/nmero-256.html). À época, candidataram-se os ratos, as galinhas, as formigas e, muito a contra gosto, os bichos-preguiça. Como todos podem constatar nas campanhas publicitárias, para a felicidade dos coelhos, deu em nada. Parece que havia erros formais no documento, o que ocasionou sua denúncia e novo contrato emergencial com validade de cinco anos. Desconfio que entregaram a tarefa para brasileiros, que gostam mais de renovações emergenciais de contratos do que mulheres de chocolate.

Volto ao tema porque soube do lançamento de novo Edital com vistas para a Páscoa do ano que vem. Todavia, o desgaste do cancelamento anterior provoca baixo interesse na bicharada. Poucos se dispõem a enfrentar o lobby dos coelhos, que se reproduz em todos os níveis da administração pascal. Contrariando essa corrente, lá estão os leões, que prometem ser concorrentes de peso. A seguir, a justificativa dos Reis das Selvas:

Leões de Páscoa

Nós, leões, apresentamos nossa candidatura a Animal Símbolo da Páscoa para destronar de uma vez por todas os coelhos. Afinal, trono é prerrogativa de monarcas, o que somos de fato e de direito. Também porque, de alguma forma, mesmo sem ser a ideal (e quem liga para preciosismos?), nos relacionamos tanto com a comunidade cristã, quanto com a tradição alimentar – comíamos cristãos nas arenas romanas.

Outra vantagem é a de concorrer em pé de igualdade com o Papai Noel: é sabido que o bom velhinho carrega uma contradição implícita, um misto de fascínio e medo, impossível de ser explorada por adoráveis coelhinhos. Agora, no nosso caso, papai e mamãe podem recorrer às pequenas chantagens: se não comer tudo, vou contar para o Leão da Páscoa! Nada melhor do que um carnívoro que habita o ápice da pirâmide alimentar para impor respeito.

Porém, no cerne de nossa defesa, está a coincidência de a Páscoa acontecer no momento em que as pessoas se preparam para prestarem contas com o Imposto de Renda, onde já estamos presentes. E a ação governamental combina com os ritos pascais em diversos pontos:

O contribuinte é convidado à ceia que precede o sacrifício e, nela, o governo já avisa que há traidores entre eles. Mesmo assim, segue com o jantar até o final, pois o problema de amanhã se resolve no dia seguinte.

O traidor é corrompido, levando o contribuinte à Via Crucis da saúde, da segurança, da educação, da infraestrutura etc. Em sua jornada, é submetido aos piores tratamentos e às maiores humilhações.

Por fim, imolado em praça pública, morre com o dinheiro devido aos cofres da viúva, na esperança de ressuscitar no momento da devolução dos eventuais valores de restituição.

Por tudo o que foi exposto, é pleito legítimo dos leões serem o novo Animal Símbolo da Páscoa.


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15.4.11

Um placebo chamado desarmamento

Número 417

Rubem Penz

 "Proibir arma legal é combater as drogas na farmácia."

O magnífico José Sarney, surfando na onda da comoção nacional pela tragédia do Realengo, requentou o tema do desarmamento e arma nova consulta popular. Agora, preparo-me para ler e escutar pessoas que admiro profundamente aderindo à tese de que a proibição do comércio de armas legais resolverá o problema da violência no Brasil. Gente que, assim como eu, não tem arma em casa, não pretende comprar uma arma, não frequenta estandes de tiro. Pessoas de bem, respeitáveis, inteligentes. As mesmas que estarão espantadas ao constatar que sou contra o desarmamento, ao menos nos moldes como estarão propondo. Clemência, por favor – minha posição é defensável.

Imputar às armas legalmente adquiridas no país o status de fonte que abastece o crime é igual a dizer que os remédios de tarja preta são os responsáveis pelo problema nacional das drogas. Desconsideram a maconha, a cocaína e o crack que entram em toneladas no Brasil ilegalmente: isso é outro caso, muito difícil de resolver. Olha o tamanho da nossa fronteira! A substância que, para ser adquirida, demanda receita médica especial, alvo de severo controle, também é droga pesada. Proíbe-se sua comercialização e, na hora, importante modo de drogatização é resolvido. Será?

Ao montar o argumento, não esqueci daqueles para os quais os remédios controlados são indispensáveis à saúde. Ao contrário. Evoco sua lembrança para falar dos que dependem de armas de fogo para manter sua segurança. Pasme: eles existem! Por exemplo, o estancieiro que está quilômetros distante da ajuda mais próxima, isolado e indefeso. Hoje, um delinquente pensa duas vezes antes de entrar na propriedade para suprimir seus bens (na melhor das hipóteses) apenas pelo fato de que poderá sofrer uma resistência letal. Isso é uma exceção? Claro! Assim como é exceção nosso doente que não vê seu problema resolvido com aspirina. Ambos cumprem severa legislação e estão obedientes à lei. A eles a proibição atingiria. Somente a eles.

É óbvio que o problema da violência no Brasil não está na arma legal, assim como o das drogas não está nas substâncias legais. Arrisco dizer, inclusive, que a proporção é a mesma, ao menos na população civil. As consequências de uma consulta popular proibindo armas lícitas, alimentada por uma tragédia nascida de uma arma ilegalmente adquirida, tem a mesma eficácia de o combate ao crack começar pela proibição dos remédios da farmácia. Isto é, prometem-nos a cura do mal ministrando placebo, e seguirão placidamente contando os mortos, livres de dor de consciência. A não ser que o alvo desse tiro seja outro. Mas aí também é outro artigo.

 

 


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8.4.11

Nas coxas

Número 416


Rubem Penz


Aseem Mishra tem 17 anos e já ganhou dois prêmios em feiras de ciências. O mais recente é muito conceituado: The Big Bang Science Fair, concurso nacional para estudantes ingleses. O que chamou a atenção de quem mandou a notícia para mim (grato, Paulo Henrique!) foi a natureza do invento do rapaz: uma calça jeans bateria. Mas não battery (pilha), e sim drums (instrumento musical).


Em resumo, a adaptação de sensores no tecido da calça transformou o jeans em uma bateria eletrônica que se pode vestir. No filme que acompanha a reportagem, Aseem faz um solo totalmente nas coxas. Ali, encontra peles, pratos de condução e ataque, hi-hat e tudo o que compõe o conjunto de sons do instrumento musical. Não bastasse o prêmio de £ 1000, abre-se a possibilidade de costurar sua criação com empresas do ramo – ainda mais que deverá vestir o invento em uma feira norte-americana.


Acha que fui lembrado porque sou baterista? Nada disso. Foi porque sou meio chato, mesmo: tenho a mania quase incontrolável de batucar. Batuco na mesa, no volante do automóvel, no sofá. E, na falta de superfícies externas, batuco no corpo. Quando sentado, os pés não param e as mãos percutem nas pernas – só faltam os sensores. O fato é que sempre – sempre! – tem música tocando onde eu estiver, senão em aparelhos de som, na memória. E costumo acompanhá-la. Não respeito sequer as refeições. Mas, educado, atendo sem demora os pedidos para silenciar.


Para ter bolado o invento, parece óbvio que Aseem padece do mesmo tique, algo que a desenvoltura no filme atesta. Bela resposta aos que insistem para que ele fique quieto: fazer da mania um mérito! Mas parece que não foi isso que moveu o estudante. Segundo a entrevista, o menino se diz cansado de carregar a bateria para suas gigs. Cansado aos 17? Realmente, a preguiça é uma das principais molas do progresso. Três décadas nos separam e eu não abro mão do set acústico, pesado e espaçoso. Sou um dinossauro, mas mantenho a forma física!


Agora, já pensou se a moda pega?


Saias plissadas podem virar piano. Gravatas, saxofones. Haverá quem pense em aproveitar as casas dos botões para entoar uma melodia em flauta doce. Equipando um macacão da gola à bainha da perna, o músico poderia ser um verdadeiro homem banda. O esperto daria para a namorada uma calça com bongô estratégico, e teria a desculpa perfeita para percutir a bunda. O pai mais ciumento faria a menina usar um sutiã com apito, ficando atento, só na escuta. As magrinhas colocariam uma blusa justa para abrigar a harpa das costelas. No cinto, flauta transversa. Castanholas nas luvas e maracas nos punhos.


Entre adolescentes, não faltaria mãe espantada: meu Deus, esse menino está duas oitavas acima do blusão que ganhou no ano passado! E a filha brigaria com o pai: tom menor! Ele: nada disso, tom maior! A avó reclamaria que, no seu tempo, as mãos serviam apenas para bater palmas e os dedos para assobiar, e olhe lá! Mas todos desconfiariam de tanta inocência: certamente rolava concertos à capela...


Enquanto estamos apenas no terreno das hipóteses, não custa imaginar possibilidades:


– Berimbau! Viu só aquela zabumba?
– Se vi... Mas é muita orquestra para a minha batutinha.

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1.4.11

Gol a gol

Número 415

Rubem Penz

Ao pátio ladrilhado da minha casa de infância faltava envergadura para ser uma cancha, mas foi o primeiro campo poli-esportivo que conheci. No sentido cozinha/anexo, aproveitando a corda do varal, jogávamos newcomb e vôlei de duplas: meninos versus meninas (meu primo Dudu e eu contra minhas irmãs); no sentido muro/tanque, o famoso futebol gol a gol, versão mais reduzida possível do gênero criado pelos ingleses – basta um arremedo de campo, duas metas e um adversário. Tinha sempre o mesmo oponente (o primo), pois havia muita distância de idade com meu irmão, e gurias, na época, não jogavam bola. Vantagem: todo dia era dia de clássico, aguerridos Grenais.

Para qualquer professor de educação física, aquele era o mundo ideal: crianças na idade pré escolar e de ensino fundamental com atividades físicas em casa, trabalhando igualmente o trem superior e inferior, praticando jogos competitivos, individuais e de equipe. Propositalmente, deixo em segundo plano as bicicletas, bobinho, caçador, pega-pega, corda, elástico, peteca, tamborete, esconde-esconde, cinco marias entre outras brincadeiras formadoras do bom manancial psicomotor. O foco de minha lembrança é o bom e velho gol a gol.

Nascido da precariedade (jogadores em número insuficiente e espaço reduzido), o gol a gol, por ser mínimo, exigia o máximo de fundamentos. Praticava-se precisão no arremate, defesas, domínio de bola (para defender com os pés), drible (podíamos conduzir a bola caso houvéssemos defendido com os pés), desarme e imposição física (meu calvário). Quando a bola cruzava o muro, nosso caso particular, ainda apresentava vantagens extras: desenvolvimento de força, equilíbrio e velocidade. Isto é, subir no muro, andar sobre ele, descer do outro lado e fugir do cachorro da Dona Vilma.

Como jogávamos praticamente todos os dias, não posso culpar o destino por não ter me tornado um Manga, Falcão ou Zico. É óbvio que não nasci para a coisa. Mas este jogo rudimentar proporcionou o contato com duas das maiores alegrias do futebol: marcar golos e defender chutes fortes e precisos. E, por mais que um bom arremate seja motivo de orgulho, devo dizer que poucas experiências se assemelham a uma ponte bem executada, chegando naquela bola que mirava o ângulo e acomodando-a nos braços sem dar rebote. Se jogadores de linha são bailarinos, goleiros são acrobatas!

Esta semana, uma marca esportiva estupenda foi notícia no mundo inteiro: Rogério Ceni, "guarda-metas" brasileiro do São Paulo Futebol Clube, alcançou o patamar de 100 golos marcados. Ok, ainda faltariam mais de 900 para bater o Rei Pelé, Atleta do Século XX e ícone mundial. Porém, o detalhe é que Ceni, um acrobata, costuma estar afastado estimados 100 metros das redes adversárias, objetivo maior do esporte bretão. Enfim, tamanha é a raridade de seu feito, que o goleiro mais próximo é o aposentado Chilavert, com respeitáveis 62 tentos no currículo.

Posso me considerar um privilegiado, pois testemunhei jogar esses dois grandes recordistas do futebol, Pelé e Ceni. Homens que viram seus esforços reconhecidos em cada gomo do planeta bola. Iguais a mim, devem ter ocupado bom tempo da infância em pátios transformados em campos imaginários. Diferentes de mim, ambos nasceram, e muito bem, para a coisa. Hoje, uma necessidade se impõe: se o Jorge Benjor nominou o Fio Maravilha o "Homem Gol", nada mais justo do que compor um tema para o Rogério Ceni, imortalizando melodicamente o "Homem Gol a Gol".


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25.3.11

Cavalo dado

Número 414

Rubem Penz

Setúbal teria sido para sempre de uma só mulher se não fosse por um detalhe sutil: Antonieta pedira divórcio duas semanas antes de completarem bodas de pérola. Segundo ele, assim, do nada. Segundo ela, Santo Deus!, por tudo. Justamente na distância entre estes pontos de vista, mesmo que imprecisos, poderia estar a provável causa do litígio. Ou na abrupta proximidade do casal, depois de ele ser afastado para o Conselho de Administração da empresa.

Agora, morando em um apart-hotel, custava a se adaptar com algumas novas rotinas. Por exemplo, gerir suas próprias necessidades: serviço de café da manhã, arrumadeira, lavanderia, restaurante. Tudo muito bom, mas, segundo Setúbal, sem nenhuma sombra de lar, de cordialidade ou afeto. Em resumo, numa questão de meses, estava sem trabalho e sem família. E muito deprimido.

Antes de vê-lo doente, os amigos resolveram arranjar nova esposa para o Setúbal. Às escondidas, alimentaram um site de relacionamentos com seus dados: peso, altura, idade, cor dos cabelos e dos olhos, preferências musicais e gastronômicas... Essas bobagens que podem indicar o par ideal. Ah, claro, e a situação financeira, seu único sex appel. Por fim, apropriaram-se da aparência da ex para montar o perfil de preferência.

Rodolfo, o mais despachado da turma, foi o responsável pela triagem. Fazia-se passar por Setúbal e marcava encontros com as pretendentes. Depois de umas dezessete tentativas frustradas, e com a turma desconfiando de que Rodolfo estava era tirando proveito da situação, ele anunciou que conhecera a mulher ideal para o solitário amigo. Raquel – seu nome – parecia uma fiel reprodução de Antonieta aos trinta e tantos anos. Tiro certo.

Setúbal, homem de uma única mulher, seria defrontado com uma versão revisada e ampliada de seu amor primeiro. Nos planos da turma, passaria os dias lendo a mesma obra em busca das pretensas atualizações, algumas bastante evidentes, saltando do decote. Teria a oportunidade de voltar às joalherias para reescrever suas observações pessoais em momentos mais brilhantes. Com sorte, em poucos meses, já estaria morando em um apartamento, todo bobo ao acompanhar Raquel escolhendo móveis e artigos de decoração.

À moça, uma única recomendação: jamais comentar nada sobre os dentes do Setúbal, por maior que fosse o estranhamento provocado por eles. Foi agindo assim que Antonieta, a ex, ganhara seu amor e tudo o que o pacote contemplava, incluindo a pensão. Além do mais, sob certo prisma, os dentes eram o único traço distintivo daquele homem de bom coração, mas um tanto convencional.

A aproximação se deu de modo calculadamente fortuito, em um jantar. Tudo estava tão bem articulado, que as primeiras palavras de Setúbal à Raquel foram "Não lhe conheço de algum lugar?", ainda durante o serviço de canapés. Depois, sentaram-se juntos à mesa e pareciam emendar um assunto no outro, como se estivessem a sós na movimentada recepção. Mal terminaram a sobremesa e Setúbal convidou Raquel para darem uma volta pelo jardim. Diante da cena, os amigos comemoraram a vitória. Antes do tempo.

Naquele instante, ao abrir um sorriso mais largo, Raquel revelou um desconcertante pedaço de alimento entre o canino e o pré-molar. Setúbal percebeu e, sem coragem de falar, começou a passar a língua em seus próprios dentes. Notando que Raquel prestava mais e mais atenção, passou a fazer movimentos amplos, ostensivos, que se transformaram em caretas e, estas, foram acompanhadas de pequenos grunhidos.

No relógio, 11h. Setúbal dispensa o café da manhã. No corredor, dá bom dia para a camareira e sorve o tímido sorriso que recebe de volta.


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