28.2.08

Número 253

OCASO DE UMA ERA

 

Dois homens estão naquela tradicional cena de fim de noite, sentados no balcão do bar, cada um mais amarrotado do que o outro. O primeiro, Nelson, é completamente calvo. Cláudio, apesar da aparência jovial, não esconde o cabelo grisalho. Garçons varrem o chão em volta das mesas. As poucas luzes estão se apagando. O barman recolhe as sobras de tantos amores que testemunhou fenecer. Há um clima de derrota no ar. No último suspiro, Nelson faz renascer o diálogo.

 

– O ano vai ser difícil. Ainda não me conformo de ele ter se aposentado.

– Bom, a gente sempre soube que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde...

– Saber, sabíamos – o homem calvo se revigora. – Porém, depois que aquele outro bailou na curva, virando ícone – mito! –, só restava ele para manter o encanto da coisa, contra tudo e contra todos.

– É... – Cláudio segue reticente. – Mas tem um consolo: ele deixou o irmão firme, na ativa.

 

Nelson bate na mesa e sobe o volume da voz. Reclama que o tal irmão nada fizera de verdadeiramente admirável para merecer figurar entre os grandes. Com um toque apaziguador no braço, Cláudio tenta retomar o tom de confidência:

 

– Ora, com ele ainda na direção, mesmo sem igual brilho, sentimos que existe alguém para manter o legado, não é?

– Nada! A fibra não pode ser reduzida a uma questão genética. Tem outra: sem o mais velho, o caçula nem tinha chegado lá. Às favas com esse irmão!

 

Faz-se uma pausa. Melhor assim: os garçons já estão se olhando, loucos para expulsá-los do bar por algum motivo. Cláudio, que se tornara mais diplomático com o passar dos anos, diz não entender esse desconsolo fora de hora. Afinal, mesmo depois de tanto tempo de afastamento, o circo sequer ameaçava desabar. – Ou você suspeita de algo? – pergunta.

 

– Não é nem isso... O problema é que não vejo na nova geração um expoente capaz de chegar perto da capacidade dele no controle.

– Como assim?

– As coisas estão fugindo das mãos dos homens, você não vê? – Nelson abre os braços, olha para cima e para os lados enquanto fala para microfones imaginários: – Agora é tudo dominado pela máquina: mil olhos vigiam quem está lá, fingindo que dirige.

– Você está bêbado! – Cláudio perde a paciência. – Não tem essa de controle externo: é a mão do homem que está no poder. Sempre foi e sempre será. O resto é mera tecnologia. Pára de ver Big Brother em tudo!

 

Novo silêncio, cada um concentrado em seu copo. A conta chega para os dois, sem que pedissem. É um recado claríssimo. Cláudio alcança o cartão de crédito e vai ao banheiro. Nelson baixa a cabeça e parece chorar. Sim, está bêbado. E desiludido. O barman, ainda que calejado pelas tragédias do cotidiano, se vê condoído. Em um gesto solidário, repousa a mão no ombro do cliente e busca palavras de conforto:

 

– Calma: enquanto viver, o Fidel ainda estará no comando, todos sabem...

 

Nelson olha para ele, incrédulo:

 

– Fidel?! Que mané Fidel, cara?! Estamos falando do Schumacher!

 

Achado não é roubado 2

ACHADO NÃO É ROUBADO

 

A burocracia nacional é pródiga em criar dificuldades, ligeira para vender facilidades e displicente ao entregar o que vende.

21.2.08

Número 252

MENTE SÃ, CORPO SÃO

 

         O rumoroso caso de denúncia de abuso sexual envolvendo a nadadora Joanna Maranhão e o treinador Eugênio Miranda repercutiu na imprensa brasileira. Não é para menos: além de ter como protagonista uma atleta de destaque, joga luz sobre um tema dos mais sombrios em nossa sociedade. Porém, como nocivo efeito colateral, ele alastra uma sombra de desconfiança a toda uma categoria de profissionais – os professores de educação física – educadores e técnicos responsáveis pelo desenvolvimento sadio de nossos filhos em clubes e escolas. Algo compreensível, mas longe de ser justo.

 

         A lista de preconceitos aos quais os professores de educação física estão sujeitos é extensa e antiga. Fácil entender: na média, são homens e mulheres com corpos bem cuidados, trabalham mais expostos, lideram atividades lúdicas e recreativas (mais relaxadas do que aquelas impostas em sala de aula) e costumam ser ídolos para jovens e crianças. Não raro, e aqui não há nenhuma novidade, habitam inconfessáveis fantasias de cunho sexual na comunidade, sem, necessariamente, moverem um músculo nessa direção. Portanto, queiram ou não, suportam no cotidiano uma constante tensão moral, mal disfarçada em piadas e estigmas.

 

         Avaliações apressadas com base no conceito de que a ocasião faz o criminoso podem incidir em enormes iniqüidades. Depois de cursar a Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEF/UFRGS) e, por dois anos, trabalhar na área, afirmo com conhecimento de causa: nada pode ser mais contraproducente na relação professor/aluno ou treinador/atleta do que o contato erotizado. Se isso fosse freqüente como faz crer a série de reportagens nascidas da denúncia de Joanna Maranhão, as aulas de educação física e a prática de esporte não alcançariam qualquer êxito (o afastamento entre a atleta e o técnico, se ocorreu pelos motivos expostos, prova o argumento). Ao contrário, é a respeitosa abordagem do professor que gera a confiança necessária no aluno. Com base nela, o esporte se desenvolve.

 

         Pai de duas crianças, também sou assombrado com a idéia de ter os filhos molestados por um pedófilo. Entendo o sofrimento de dona Teresinha, mãe de Joanna, e amplifico sua indignação. Considero muito corajosa e repleta de valor a iniciativa de denunciar atos brutais: é apenas com a revelação que as eventuais culpas serão imputadas. Mas ela servirá, antes de tudo, para aguçar nossos ouvidos para as queixas infantis, muitas vezes desesperadas em transmitir um pedido de socorro. Afinal, especialistas apontam o abusador como alguém quase sempre próximo da vítima, gozando de seu respeito, afeto ou admiração. Isso não livra ninguém, nem os pais, de igual suspeição.

 

         Que este episódio, triste sob qualquer prisma, seja base para discussões nos bancos e quadras de nossas ESEF, além de pauta de reuniões de Círculos de Pais e Mestres. Estejam atentas as direções de clubes e escolas: o desenvolvimento do esporte brasileiro, a saúde de nossos jovens e a crença na atividade física como fator de integração social dependem de tal vigilância. As piadas e mitos em torno dos profissionais em nada combinam com a responsabilidade a eles atribuída. Reitero grande respeito e confiança nos tantos professores que conheço – meus mestres, antigos colegas e mestres dos meus filhos. Pessoas de mente sã, responsáveis por tantos corpos sãos.

(Mini) Conto contíguo 2

 
(MINI) CONTO CONTÍGUO
 

 

AQUELE BEIJO

 

Para ter uma idéia, máscaras de despressurização caíram na nossa frente.

14.2.08

Número 251

 

IRRESISTÍVEL

 

Você mesmo já presenciou esta cena – quando não foi o protagonista: no tradicional passeio pelas areias do litoral, o olhar abandona o curso ao ser atraído por algo completamente irresistível. Sim, está ali, repousando na areia como que chamando para uma conferida. Não é nenhuma novidade, em quase nada se difere de outros, vemos muitos durante a vida, é natural que esteja ali – e naquela posição –, mas não adianta... O olhar é arrebatado pela força de mil ímãs e mira na direção exata.

 

Depois de reparar que todos olhavam, aproveitei-me do fato de estar trinta, quarenta minutos de pé, cuidando os filhos no mar, e parei ao lado de um bom exemplar. Então, prestei atenção nas diversas reações dos passantes diante daquele que é feito para guardar e – por que não? – mostrar também. É o que dá a esposa não acompanhar o marido na beira da praia para colocar a leitura em dia: ficamos por ali só pensando em bobagens.

 

Há os passantes discretos. Estes se aproveitam da coincidência na trajetória e, sutilmente, espicham os olhos. Nada comentam: seguram para si as impressões da visão furtiva, que raramente contempla os detalhes. Às vezes, os passantes discretos estão em duplas ou trio. Nesses casos, um cutuca o outro para todos olharem. Se entre eles está um mais entendido no tema, esperam elegantes passos adiante para comentar algo sobre tamanho, forma ou variedade. Essas coisas. Mas sem alarde.

 

Os passantes indiscretos, por sua vez, não tomam tantos cuidados. Ao perceberem que não passarão ao lado, mudam desavergonhadamente a rota para se aproximar ao máximo dele. Então, diminuem o passo e afundam olhos invasores com vontade. Chegam a arquear o corpo para ver mais detalhes. Quando em grupo, os indiscretos emitem opinião em voz alta, envaideça quem envaidecer, doa a quem doer. Óbvio: consideram que, se está ali exposto, só pode ser de propósito. No caso de não encontrarem o que de longe esperavam ver, costumam ser sarcásticos.

 

Por fim, existem os passantes entusiastas. Estes não se contentam em mudar o curso para chegar pertinho: eles param ao lado. Olham com prazer e puxam assunto. Sim, falaram comigo, inclusive. Eu expliquei que mal tinha reparado – estava cuidando das crianças, aquelas dentro da água. Mentira. Notei que os entusiastas, se pudessem, colocariam logo as mãos. (Não, não chegam a tanto. Quer dizer, com oferecimento explícito, sim...) Falam de si, contam vantagem. Mas são, em grande número, ex-atletas, por assim dizer. Seguem adiante com o olhar perdido e uma nostalgia de dar dó.

 

Pois: nos trinta, quarenta minutos em que fiquei parado feito um poste na beira do mar, um olho zelou pelos filhos e o outro observou a reação dos passantes para ele, à minha esquerda. De modo discreto ou ostensivo, parando ou seguindo adiante, raríssimas exceções, todos olharam para o pequeno balde plástico (fazendo a função de samburá) do pescador que estava adiante. Foi o que bastou para me convencer de quão fascinante e mágico é este objeto na beira da praia. Irresistível.

Vim de verso 1

VIM DE VERSO
 
AMOR PÓS-MODERNO

 
o eterno

começo

meio

a fim

7.2.08

Crônica número 250

 

INTERVALO COMERCIAL

 

Intervalo de almoço em uma empresa pública (ou privada, tanto faz). Cinco homens vão juntos ao banheiro, um deles com uma grande sacola preta de nylon ao ombro. Há uma discreta ansiedade no ar. Afinal, ali está a nova coleção de cuecas da Zorba. Entre uma urinada e a escovação de dentes, todos manuseiam as peças íntimas, comparando a qualidade, testando o elástico, comentando sobre as cores ou estampas. Um sexto rapaz entra no local e imediatamente se junta aos demais. Três dos cinco experimentam os modelos. Dois fecham negócio, pedindo para só depositar o cheque no dia 10. Ainda dá tempo para conferirem umas calcinhas e sutiãs rendados para as esposas, de lambuja no mostruário (quem sabe para o aniversário de casamento...). Saem do toalete prometendo avisar os outros colegas sobre a excelente coleção.

 

          Você não caiu nessa, não é? Forcei? É: creio que a cena descrita no primeiro parágrafo nunca aconteceu. Nem jamais acontecerá, seja com cuecas, meias, camisas, bermudas ou gravatas. Porém, na mesmíssima hipotética cena, se trocarmos os homens por mulheres e as cuecas por calcinhas, eu teria descrito uma passagem quase cotidiana da vida empresarial. Mesmo sem ter freqüentado o banheiro feminino em contexto além do imaginativo, suponho que o comércio seja uma das trezentos e cinqüenta e sete ações coletivas praticadas pelo sexo oposto quando a porta do toalete se fecha. E, ao final da história reescrita, uma mulher voltará do almoço com dois cheques para garantir uma renda suplementar para casa.

 

          Assim é a vida: enquanto os homens são dependentes confessos do salário ao final do mês, as mulheres se mostram ágeis e dinâmicas na busca de complemento de remuneração. No trabalho, elas compram e vendem de tudo: cremes ou loções de diversos os tipos, perfumes, bijuterias, roupas íntimas, utensílios domésticos, xampus, maiôs, shake para emagrecer, capas de almofada... A lista é grande demais para o espaço de uma crônica. Algumas fazem cursos e se tornam consultoras disso e daquilo. Aprendem rápido quem merece pagar em três vezes e quem só pode receber o produto mediante dinheiro vivo. Decoram as datas de aniversário da família e chegam ao requinte de fazer visitas a domicílio. Homens investem seus intervalos em discussões sobre se determinado time deve jogar em 3-5-2 ou 4-4-2, as vantagens dos motores 1.5 ou 2.0 para o uso misto (cidade e estrada), ou se a Sandrinha está mais ou menos gostosa depois de voltar das férias.

 

         Bom, estão certas as mulheres e certíssimos os homens. Elas nada mais fazem do que aproveitar nichos de negócios: vendem porque compram e vice-versa. Eles não se arriscam a passar vexame ao convidar os parceiros de futebol para dar uma olhadinha em uns cremes, sungas ou artesanato no vestiário, por melhores que estejam os preços. O máximo que vão conseguir é perder o lugar no time.

 

A única exceção que lembro era o Alfredo. Ele sempre partia para o trabalho com uma mala preta de rodinhas. Dentro, coleções completas de chaves-de-boca (milimétricas e de polegadas), chaves-de-fenda, Allen, chave-estrela, cachimbo, extensores, martelos, formões, plainas, lâminas importadas para serra. Mais: furadeira portátil importada, aparafusadeira elétrica, multi-teste, pequenos tornos de bancada, luvas, máscaras, óculos de proteção e outros tantos itens igualmente cotados. Depois do almoço, quando abria a mala, causava furor no escritório. Mas durou pouco: foi proibido pelo ortopedista depois de ganhar menos dinheiro do que hérnias de disco...

5.2.08

Achado não é roubado 1

ACHADO NÃO É ROUBADO
 
Lógica 
 

Povo ingrato: que são cartões corporativos depois de nos franquear o voto?

31.1.08

Número 249

CYBORG E A OLIMPÍADA

 

         Nos anos setenta (1974-78), a série televisiva O homem de seis milhões de dólares – baseada no livro Cyborg – transformou o amputado Steve Austin, astronauta vivido por Lee Majors, em super-herói. Trinta anos depois, o atleta sul-africano Oscar Pistorius se aproxima do índice olímpico mesmo sem ter as duas pernas abaixo do joelho. Porém, é impedido de pleitear uma vaga para Pequim pelo Comitê Técnico da Federação Internacional de Atletismo (IAAF). Motivo: as próteses biônicas lhe garantiriam vantagens sobre os demais competidores. Longe da ficção, forjar heróis é mais complicado.

          Toda a minha geração correu pelos pátios e calçadas imitando a trilha sonora que acelerava a performance do Cyborg. Na época, se nos propusessem trocar nossas pernas naturais por biônicas como as do Steve Austin, toparíamos imediatamente: não haveria quem nos segurasse no brinquedo de pegar, faríamos um gol atrás do outro, ganharíamos qualquer disputa de força e também, quem sabe, o coração da menina mais bonita. A medicina e a engenharia, desde antes e até hoje, trabalhavam com objetivos bem mais modestos, isto é, devolver para alguém que perdeu braços ou pernas a igual mobilidade dos ditos normais. Para um menino amputado que sonhasse correr tanto quanto eu, os superpoderes podiam esperar.

         Em três décadas temos bastante a comemorar neste sentido. Creio que bem mais de seis milhões de dólares já foram investidos em pesquisa para assegurar a muitas pessoas, e não apenas a uma (ou duas, se lembrarmos da biônica Jemmie Sommers) a possibilidade de caminhar para além da cadeira de rodas. Contornando a fatalidade através da tecnologia, a humanidade devolve a quem precisa as condições, se não ideais, próximas de uma igualdade plausível. Tomara que, com freqüência, o Cyborg esteja anônimo, bem ao meu lado na fila da padaria.

         Mas, e no caso de Oscar Pistorius, que em vez de compartilhar comigo a espera do pão, pretende estar perfilado na largada dos cem, duzentos ou quatrocentos metros rasos da Olimpíada de Pequim, que fazer? Ao negar este direito, conquistado no disparo do cronômetro, estaremos nos desviando do rumo que leva à igualdade entre deficientes físicos e pessoas com membros completos? São estas as questões impostas aos dirigentes da IAAF no momento.

         Com base na letra fria dos resultados biométricos – que apontaram vantagens ilícitas no movimento das pernas postiças –, Pistorius precisará, ao menos por enquanto, contentar-se com as Paraolimpíadas. O temor dos técnicos repousa sobre o que está sendo chamado de doping tecnológico. Algo que, trocando em miúdos, lembra muito o dilema que Steve Austin impunha a uma criança na década de setenta: que tal trocar suas pernas naturais pela glória olímpica? A luta contra doping químico nos dá pistas para possíveis respostas antiéticas... Mesmo assim, uma aura de injustiça macula a decisão da entidade. Afinal, ela condena o menino que teve as pernas amputadas aos onze meses de idade à eterna marginalidade.

Por fim, a despeito da decisão tomada agora ou em apelações futuras, por seu dedicado esforço atlético e valor simbólico, para muitos deficientes físicos – e também para mim – Oscar Pistorius já é um herói.

30.1.08

Conto contíguo 1

CONTO CONTÍGUO
 
BOAS MÃOS

 

Pestana tirou o boné e coçou a cabeça. Seu olhar acompanhava as formigas levarem pedaços de flor em fila indiana para fora do avarandado. Ponderava aquela proposta – nem sabia nadar tão bem. Quer dizer, saber sabia, disse, mas não o bastante para salvamentos. Além do mais, fazia tempo que não entrava fundo no mar. E, na última vez, em Tramandaí, fora da temporada, passou um aperto danado quando precisou enfrentar um repuxo tipo bandeira vermelha.

         – Olha aí: escondendo o jogo! – retrucou Paulo, ao seu lado. – Você até sabe qual a bandeira precisava colocar naquele dia! Fica tranqüilo... Eu vou lá, faço uma surpresa para a Jurema, nem anoitece e estou de volta. Enquanto isso, você fica em meu lugar ali na guarita, cheio de pose e sendo chamado de salva pela meninada.

         – Bom, e se alguém pedir socorro?

         Paulo fez a volta para ficar diante do amigo, segurou-lhe os ombros com as duas mãos. Sacudiu-o até seu olhar subir à tona.

         – Aí o Jair tira o sujeito da água, ora. Você fica com a corda, só dando linha para o cara, que é um peixe. E então? Conto contigo?     

         Despediram-se na Interpraias: Paulo, paisano, apanhou a condução para Arroio Teixeira. Pestana, de uniforme, seguiu caminhando até a beira do mar. Bóia e corda. Bandeira debaixo do braço. Ele e o Jair.

 

        

         Uma das crianças que sempre rondam a guarita dos salva-vidas perguntou as horas. Passa das quatro e meia. Foi o salva Pestana quem respondeu, olhando para o Jair e dando razão ao amigo Paulo. Certo ele de aproveitar o dia com a fulana – escapou-lhe o nome. Aquilo era uma rotina meio morta, mesmo. Não acontecia nada. Antes de receber a resposta, uma gritaria e um corre-corre fizeram com que os salva-vidas saíssem em disparada. Jair com a bóia. Pestana logo atrás. Mas eles só molharam até o joelho: o mar tinha devolvido alguém que se afogara bem longe dali, pela experiência de Jair.

         – Isso deve ter acontecido de manhã. Fica aqui e eu vou achar o carro da Brigada. Eles acionam o DML no rádio.

         – Mas se perguntarem alguma coisa, o que eu digo? – confidenciou Pestana.

         – Embroma. Quando eu chegar, sai de fininho que eu digo que comigo estava o Paulo. Uma mão lava a outra, não é?

         O homem se investiu de autoridade. Sem muita conversa, tratou de manter os curiosos a uma distância regular do corpo. Era uma questão de ocupar-se e nem pensar no risco de dar algum problema. No momento em que Jair voltou, o improvisado substituto saiu enrolando a corda; foi até a guarita, recolheu o restante do material e abandonou a praia.

 

 

          Insone, Pestana caiu cedo da cama. Procurou a notícia no jornal:

A empregada doméstica Jurema Santos Silva, 23 anos, natural de Canoas, é o décimo segundo caso de afogamento no Litoral Norte gaúcho. Ontem, seu corpo já sem vida foi retirado do mar pelos salva-vidas Jair Melo e Paulo Castro entre Capão Novo e Praia do Barco, cerca de nove quilômetros ao sul de Arroio Teixeira, balneário onde a moça trabalhava. Segundo testemunhas da investigação, ela foi vista pela última vez cedo da manhã, enquanto deixava a residência acompanhada de um homem não identificado. Em seu depoimento, Jair creditou os hematomas no pescoço da vítima a uma provável tentativa de salvamento. Para ele, "Dentro d'água, qualquer bem intencionado pode causar a morte de alguém. Seguro está o banhista em nossas mãos".

24.1.08

Número 248

SECANDO DEBORAH

 

Roger, o meio-campista contratado pelo Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, desembarcou na capital gaúcha trazendo na bagagem uma dúvida e uma certeza. A dúvida é se desfilará em campo o futebol que o consagrou nos bons tempos ao invés da inconstância que tem sido sua recente marca. A certeza é um gás danado para as colunas de fofoca em jornais e revistas dos pagos. Afinal, a tiracolo chegou sua namorada Deborah Secco.

Não conheço a menina, mas já estou compadecido com seu destino. Nascida em 1979 no Rio de Janeiro, ela cresceu acostumada com a sem-cerimônia carioca no convívio com os famosos: estrelas globais são numerosas por lá, tanto quanto a torcida do Flamengo. Uma atriz a mais, uma a menos no balcão da farmácia tanto faz. Em Porto Alegre, não... Cidade traumatizada pela desconfortável posição de rápido trampolim no Festival de Cinema de Gramado, sorve até os ossos um artista com peça encenada no Theatro São Pedro. Para "mais ou menos" morar aqui, o pedágio será caro.

Habitam na cidade muitas pessoas com hábitos, educação e rotinas cosmopolitas. Mas é bem verdade que, em sua maioria, os porto-alegrenses são um tanto provincianos. Assim, Deborah presenciará chiliques homéricos ao circular pelas ruas cantadas por Mário Quintana. Se tiver sorte, será apenas alvo de mil olhos a julgar e comentar sua aparência, achando-a mais baixa ou mais alta do que na TV, tão gostosa quanto o tal ensaio fotográfico já revelou, menos provocante do que deveria, simpática como aquela personagem ou insuportável como a outra.

Mas isso ainda não é a pior notícia. Desde já, ela deve estar preparada para amar incondicionalmente o Brique da Redenção. Tomar ao menos um mate por semana para satisfazer determinado(a) apresentador(a) local, festejar o churrasco, dizer que "Porto Alegre é demais" e cantar uma estrofe do hino rio-grandense. Preferir Inter ou Grêmio – ai dela se confundir o time do seu amor –, garantir que se adaptou ao clima, esperar com avidez a Feira do Livro e a Expointer. Confirmar a fama do pôr-do-sol do Guaíba, dizer que parece estar em Buenos Aires e achar o MARGS melhor que o MASP. Também admirar-se com o tamanho da chaminé da Usina do Gasômetro sempre que passar diante dela, comparar Atlântida com Copacabana, considerar a Elis Regina insubstituível, posicionar-se contra ou a favor no embate Tchê Music versus CTG etc. A vida de neo-gaúcho é um espeto sem filé mignon...

A nosso favor, deve acontecer algo parecido em Florianópolis quando o assunto for ponte Hercílio Luz, em Curitiba andando na Boca Maldita, comendo uma moqueca capixaba em Vitória, sacudindo ao som dos tambores do Olodum nas barbas do baianíssimo Elevador Lacerda ou visitando o Forte dos Reis Magos em Natal. Mas especulo. Certeza mesmo, tenho da paciência que Deborah precisará ter com os chatos que consideram o Rio Grande do Sul o umbigo do mundo, Porto Alegre seu piercing.

Para encerrar, desejo que o Roger jogue apenas o suficiente para que o Grêmio permaneça com ele por longos anos, e menos do que necessitaria para ganhar alguma vez do Colorado. E que o romance dos dois fique velho o bastante para deixar de ser notícia até para os fofoqueiros locais. Com tal sorte, a atriz poderá circular por aqui sem que todos a fiquem secando. Esse é o melhor jeito de curtir o Brique da Redenção, tomando um mate e exaltando nosso pôr-do-sol.  

18.1.08

Número 247

UM ALÉRGICO ENTRE POTIGUARES

 

Crônica dedicada aos queridos e atenciosos

anfitriões da família Negretto.

 

Quando pensei em escrever sobre minha estada de férias em Natal (RN), me veio na memória uma clássica passagem de Indiana Jones e a última cruzada. Nela, Dr. Jones Jr. (Harrison Ford), prisioneiro dos nazistas, informa que seu amigo Marcus Brody (Denholm Elliott) já está em Iskenderun com o mapa que leva ao Santo Graal. E que seria impossível localizá-lo, por ele contar com dois dias de antecipação, dominando 10 idiomas, conhecendo cada biboca da região e certamente misturado com a população local. Depois do corte de cena, o que se vê é o exato oposto: um homem perdido, incapaz de se comunicar e mais estrangeiro impossível. Bom, resguardado o exagero cômico do filme, um gaúcho teuto-brasileiro em terra potiguar se mostrou quase tão esdrúxulo quando o Mr. Brody na Turquia.

 

Na viagem, inúmeras marcas conspiravam para me destacar na multidão. Por exemplo: o olhar maravilhado para aquele mar límpido, quem sabe escondendo o esforço brutal para segurar o queixo no lugar, impedindo-o de cair. Para quem cresceu diante de um oceano escuro, bravio e linear – três palavras que definem a costa do extremo sul brasileiro –, o cristalino aquário nordestino é uma visão do paraíso. Isso sem falar na beleza das falésias, dos parrachos (recifes de corais), das piscinas naturais que surgem nas oscilações da maré, das dunas e das baías. O deslumbramento, enfim, me denunciou.

 

Minha cor, por outro lado, também não ajudou muito na tarefa de parecer tão brasileiro quanto qualquer outro habitante local. O sangue alemão que me corre nas veias é praticamente visível a olho nu, só para dar uma idéia da palidez característica. E, independente da oferta de melanina, a exposição constante ao sol equatoriano confere ao natalense mais branquinho um tom muito mais amigável do que o meu. Por lá, antes das cinco horas já é dia claro e a chuva não somou dez minutos em toda a temporada. Neste sentido, pior mesmo só se me deixasse esbaldar: o vermelho da pele me levaria ao ridículo, ou ao hospital.

 

Mas nem ao potiguar cego eu teria sido capaz de ludibriar: meia palavra basta para revelar um gaúcho no nordeste. Nada me valeu ter escutado durante a vida o tanto de Alceu Valença, Caetano, Gil, Zé Ramalho, Dominguinhos, Fagner, Lenine e outros mais. Minha melodia frasal soa Teixeirinha aos ouvidos do restante do Brasil. Ou, no mínimo, Kleiton & Kledir. Como apenas pedindo confirmação, me perguntavam a toda hora se eu era gaúcho. Algo como se, ao invés de deixar o Rio Grande do Sul, eu o levasse junto comigo. Isso é uma barbaridade, tchê!

 

Voltando ao filme do Spielberg, Marcus Brody foi encontrado facilmente por aliados e inimigos nas ruas de Iskenderun, sem nenhuma surpresa de roteiro. De minha parte, fui visto, tido e tratado como turista em todos os momentos nas praias, feiras e restaurantes de Natal. E, por mais tempo que ficasse no Rio Grande do Norte, para sempre até (de mala e cuia), nem assim eu estaria perto de ser um potiguar. Simples: em tupi-guarani, potiguar significa comedor de camarões. E eu, antes de ser um deslumbrado gaúcho alemão, sou alérgico à iguaria. Como diriam:

 

         – Pode comer não? Ih... Danou-se.

11.1.08

Número 246

(DES) AMOR ETERNO

 

Tenho um amigo que, de tanto sofrer (provocar?) desilusões afetivas, sepultou de vez a crença no amor ideal.   Mas, nem por isso, perdeu a fé no "felizes para sempre" – o que parece um contra-senso. Na verdade, passou a escolher as namoradas com um rigor científico. A pesquisa, porém, não busca conhecer as qualidades que fariam da moça uma companhia duradoura: investiga como será a reação dela no pós-rompimento. Com o fracasso tido como certo, o negócio seria ser feliz no depois. Posso imaginar a cena...

 

É domingo. Primavera. O parque distribui com ampla generosidade panoramas ideais para os mais diversos roteiros: relva macia, flores de suave perfume, sol cálido, brisa amena. Ali convivem crianças saltitantes, pais zelosos, vendedores de pipoca, cães sob controle, pares românticos. Alessandro está deitado, pernas estendidas e cruzadas. Apóia-se em seus cotovelos e descansa os olhos no meio sorriso de Ana. Ela, sentada quase de lado, mão direita na grama, também lhe fita a boca, desejosa de novos beijos. Desde sexta-feira tudo corre muito bem entre os dois. Os ares são de eternidade quando, sensível, ela vê uma sombra correr sobre a face do rapaz.

 

– Aconteceu alguma coisa, querido?

 

Alessandro diz que não é nada. Ela duvida. Ele reluta em admitir que pensava em como seria o seu ex. Ana aperta as vistas e desfaz o sorriso. Apruma-se, cruza as pernas e repousa as mãos nos joelhos. Não gostaria de falar do assunto. Agora é Alessandro quem insiste. Na certa ela que teria despachado o namorado – supõe ele, como quem pede a confirmação.

   

– Zé Otávio era um canalha!

 

Ao revelar o nome, Ana se incendeia. Passam-se dez minutos enquanto um monólogo rico em detalhes desfila nada menos do que vinte razões para desqualificar Zé Otávio. Alessandro jamais altera as feições, nem mesmo quando, a folhas tantas do processo acusatório, ele se identifica com os diversos defeitos do pobre Zé – principalmente com coisas do tipo "parecia distante, como se pensasse em outra mulher".

 

– Mas você é totalmente diferente dele, querido!

 

Ana acaricia o rosto de Alessandro que, agora sentado, retribui com um longo beijo. As crianças brincam diante do olhar atento dos pais, os cães passeiam, o pipoqueiro faz sua propaganda, o casal volta a se recostar no gramado. Alessandro cochicha para Ana, entre mordidas em seu ombro:

 

– Não dá nada. Aposto que esse tal Zé Mané foi uma exceção na sua vida.

 

Ana se eriça outra vez. Quem dera fosse! O Leandro que, por ser arquiteto também, ela ainda encontrava por aí, foi outro cafajeste. E, para piorar, deixara dela para ficar com uma loirinha sonsa, fútil. Mas se mereciam, os dois! E, em outros dez minutos, a moça destila ódio por Leandro, com sobras para Zé Otávio e leves menções desabonadoras a um certo Betinho.

 

Alessandro olha para os lábios de Ana, mas desliga-se da conversa que segue. Pensa agora em Luísa, professora de Educação Física, separada, e que, ao se referir ao ex-marido, dissera ter sido um cara bacana, e que era uma pena não ter dado muito certo.

 

Pois é: precisava ligar para Luísa.

14.12.07

Número 245

Estou saindo de férias... Durante 3 semanas, o Rufar dos Tambores dará lugar ao mergulhar nas águas. Desejo um Natal de muita paz e um Ano Novo cheio de prosperidade! Boas Festas!

 

Natal de A a Z

A – Árvore. Pouco importa o tamanho: o ritual de montá-la com os filhos é delicioso;

B – Bicicleta. "Não esqueça da minha Caloi". Essa campanha publicitária fez parte de quantas infâncias?

C – Calor. A tradição impõe para dez entre dez Papais Noéis muito, mas muito calor no dezembro brasileiro;

D – Dívidas. Várias vezes fazem companhia às belas recordações durante longos meses;

E – "Espera até a meia-noite". Era isso que eu ouvia enquanto espiava embaixo da árvore, de olho nos presentes;

F – Felicidade. É o desejo mais freqüente. Às vezes vem maculada por lágrimas e saudade;

G – Guardanapos bordados. E toalha de linho, louça de porcelana, taças de cristal...;

H – Hóspedes. Natal é uma data que reúne famílias. Vai ver que foi daí que nasceu a gíria "peru" como sinônimo de hóspede;

I – Igreja. Convém fazer ao menos uma visita para compensar as dezessete ao shopping center;

J – Jesus. Sabe o menino na manjedoura? Lembre-se dele! É seu aniversário, afinal;

K – Kitsch. Há quem julgue o sentimentalismo natalício e a histeria comercial de última categoria;

L – Livros. Um dos melhores presentes para oferecer ao amigo secreto. A modéstia me impede de recomendar um em especial...;

M – Maria: cheia de graça, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da provável ressaca. Amém;

N – Noel. O velhinho que, apesar da boa fama, é quem recebe o dossiê com as peraltices infantis;

O – "Oh Tanenbaum, Oh Tanenbaum..."   Cânticos em alemão: uma das minhas lembranças familiares;

P – Peru (Meleagris Gallopavo). Ave da família Phasianidae. Ágil, dribla o destino: morre na véspera;

Q – Quebra-nozes. Instrumento de metal desenvolvido para partir a casca da noz. Está no fundo da gaveta, pode procurar;

R – Roupa de Natal. Era assim que nos referíamos à melhor peça do vestuário, aquela que não deveria ser usada no dia-a-dia;

S – Salada Waldorf. Adoro. E, parece mentira: entra ano, sai ano, só preparamos para o Natal e Ano-Novo. No fim, ganha gosto de festa;

T – Trenó. O batmóvel do Papai Noel. Veículo de tração animal capaz de voar. Mistura de carroça com cheque pré-datado;

U – Ubicuidade. A única palavra que explicaria a capacidade de o bom velhinho estar em todos os lares ao mesmo tempo;

V – Velas. Antes da eletricidade, iluminavam as árvores de Natal. Ainda hoje estão entre os mais belos adornos para a Noite Feliz;

X – Xará. Um bom negócio para homens na terceira idade é deixar a barba crescer e assumir a identidade de Noel. Isso, ou a ubicuidade.

Z – Zumbido. Som que se assemelha ao ruído de insetos. Presente nos ouvidos dos xarás de Noel ao terminar mais uma noite de trabalho no shopping center;

 

7.12.07

Número 244

CARTA DE UMA DEPENDENTE

 

Circula na imprensa mundial uma carta de revoltante contundência. Ela foi escrita por alguém dependente das drogas. Diz: "A vida aqui não é vida, é um desperdício de tempo"; "Aqui vivemos como mortos. Estou mal fisicamente. Não consigo comer, estou sem apetite, meus cabelos estão caindo em grande quantidade"; "Não tenho vontade para nada. Creio que esta é a única coisa boa...".

 

A mensagem, que serviria como uma luva para ser emitida por alguém que afundou no precipício da dependência química, é de Ingrid Betancourt, uma franco-colombiana que está há mais de cinco anos em cativeiro. Ela é refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC –, um grupo de narco-gerrilha. Enfim, sua liberdade depende da disposição dos barões da droga em negociar o resgate.

 

Suas dependências se resumem a uma rede e uma prateleira. Há três anos pede "um dicionário para ler, aprender algo, manter a curiosidade intelectual viva". As drogas que estão atrofiando o cérebro desta mulher são aquelas que a sociedade consome com uma hipocrisia inacreditável, e que sustentam a guerrilha. Talvez sua disposição em afrontar este sistema perverso quando candidata à presidência da Colômbia tenha sido determinante no momento do seqüestro. Com certeza a disposição social em continuar consumindo drogas ilícitas, ou de mantê-las como mercado criminoso, perpetua sua tragédia.

 

Ingrid é uma dependente em todos os sentidos. Depende da civilidade dos guerrilheiros e dos companheiros de martírio para se manter íntegra – é a única mulher em seu grupo. Depende do julgamento alheio – e sumário – para viver ou morrer. Depende dos movimentos do Exército Colombiano para ficar ou partir às pressas do acampamento. Depende da comida que lhe alcançam, das roupas que ainda tem, de um mosquiteiro para não ser devorada por insetos na Selva Amazônica. Mas depende também do esforço do governo em subjugar os criminosos, depende das orações e da esperança dos amigos e parentes, depende de uma imprensa livre e disposta a denunciar seu estado de sofrimento.

 

A inter-dependência entre os crimes de seqüestro (e os assassinatos, os latrocínios, os roubos à mão armada, a corrupção) e o consumo de drogas não pode ser mais evidente. Ela já foi alvo de campanhas publicitárias diretas e indiretas, é um discurso recorrente entre as autoridades da segurança pública e, mais do que nunca, foi amplificada no filme "Tropa de Elite". Os usuários de drogas fazem de conta que uma coisa não está ligada à outra. Porém, desde sempre, o dinheiro que sustenta a máquina tem origem na compra da cocaína, da maconha, do ecstasy. O destino dos prisioneiros das FARC depende, sim, do cardápio daquela festa bacana para a qual você poderá ser um dos convidados.

 

Morro de pena dos dependentes de drogas – pessoas que, entre nós, corroem sua vida social, sua saúde, sua família. Lamento, também, a existência de uma moral torta entre os usuários não dependentes – gente disposta a aspirar princípios em troca de um delírio químico fugaz. Contudo, nenhum destes casos é mais grave do que o de Ingrid Betancourt: alguém que, em suas próprias palavras, vive como uma morta. Dependente da droga que ela não consome. Consumida pela droga de quem dela depende.

29.11.07

Número 243 e convites

DEZEMBRO DE 1987

 

um de nós sangra moinhos

de nós, um não crê em miragens

à paz, ao infinito

em nós nasce a viagem

além

Xavier & Penz

Era uma tarde de sábado. Fazia o tanto de calor que se espera do verão porto-alegrense, amenizado por um ambiente subterrâneo – a garagem da casa dos meus pais, onde eu ainda morava. O carro da família, por força da circunstância, estava na rua, ao sol. A bateria ocupava o lugar de praxe: à esquerda de quem entrava no grande salão para dois automóveis, sobre o seu tapete verde, diante da pia ao lado da churrasqueira. Eu repassava pela terceira ou quarta vez a afinação das peles. Revisava as baquetas. Tirava com uma flanela alguma opacidade nos pratos. No peito, uma contagem acelerada queria chamar, de uma vez, o início da música. A primeira batida, contudo, coube à campainha.

 

Antônio, Marcelo e Felipe chegaram juntos. Sorriam. Fora muito fácil localizar o endereço. Trouxeram consigo, entre os amplificadores e estojos de instrumentos, algo fundamental: muita camaradagem e descontração – os três já eram grandes amigos. Perguntaram se a tomada era com certeza em 110 volts. Pediram um T. O sax tocaria acústico e, por isso, não era bom exagerar no volume. Melhor: eu não queria bronca com a família ou com os vizinhos. Ainda tinha o problema da enorme reverberação do ambiente, amenizada somente pela porta de correr em madeira. Para entrar mais ar e luz, abrimos uma grande fresta para a rua – não tinha perigo. O ideal, segundo o consenso, era ter um tecladista na formação. Enquanto não encontrássemos alguém disponível, atacaríamos de quarteto: sax, guitarra, baixo e bateria.

 

No ano anterior eu havia conhecido o primeiro deles: Felipe. Estávamos na praia, em um aniversário. Ambos um pouco deslocados na festa, sem intimidade com quase ninguém. Quando a música entrou na conversa, salvou a tarde. Num instante comparávamos influências, citando álbuns e avaliando compositores. Na época, ele tocava violão e contrabaixo. Prometeu me apresentar outros músicos que também gostavam de jazz e faziam música instrumental: Marcelo e Antônio. De fato, na volta para Porto Alegre, fui assisti-los em uma festa e, depois, em um show do Quarteto Insólito, formação de muita inventividade e pouco futuro. Após a dissolução do insólito grupo, e com os avanços do Felipe no saxofone, os três resolveram procurar um baterista. Apesar de estar mais afastado, eles tinham o meu telefone e quiseram saber se eu topava um ensaio, mais ou menos sem compromisso. Sim, claro! Marcamos.

 

Todos prontos. Coube a mim abrir a contagem. Naquele primeiro sábado, tocamos standards: Sugar, Stella by Starlight, This Masquarade. Best Wishes também, se não me engano. Alguma bossa nova – Wave com certeza. Logo escureceu e, como manda a educação, tínhamos que parar. Era tarde. Tarde demais: vinte anos se passaram e ainda não paramos. A musicalidade experimentada, resultado do bom casamento dos instrumentistas, pedia um novo encontro a cada sábado. O conjunto se mostrava melhor do que o individual, os caminhos melódicos bastante harmônicos. O Grupo Versão Brasileira, nascido assim, mais ou menos sem compromisso, sobrevive por quase metade de nossas vidas. Em dezembro 1987, eu nem sonhava como onde e estaria ao final de 2007. Hoje, não imagino minha vida sem aquela longínqua tarde de sábado. De cinco em cinco anos, mais ou menos, lembramos de que o ideal seria encontrar um tecladista disponível. Se demorar, vamos acabar desistindo.

 

Convites :

 

1)      Dias 30/11, sexta-feira (19h30min), e 1° de dezembro, sábado (17h), o Grupo Versão Brasileira celebra seus 20 anos de existência. Será no Auditório da Livraria Cultura , no Shopping Bourbon Country, 2° piso. No palco, o jazz que marcou nossa história e a participação especial de José Paulo Pires (guitarra) e Clóvis Pires Jr (percussão). Na platéia, contamos com você.

 

2)      A Casa Verde e os autores (eu sou um) convidam para o lançamento do livro Contos de Algibeira. Será na Alameda dos Escritores – Shopping Total (Cristóvão 545) –, também dia 1° de dezembro, a partir das 18h30min. Bom, dá para ver que eu chegarei mais tarde... Mas estarei lá!

23.11.07

Número 242

Convite do baterista: na sexta-feira dia 30 (19h30min) e sábado dia 1° (17h), celebraremos os 20 anos do Grupo Versão Brasileira. Serão shows no Auditório da Livraria Cultura – Shopping Bourbon Country. Venha curtir um jazz!

 

O REINO DESENCANTADO

 

Alice desobedeceu à mãe, que sonhava em preservar sua inocência mais um pouco, e se debruçou sobre a fonte das notícias. Um vacilo e, oh!, despencou no poço que, diziam, era sem fundo. A menina, já adolescente, caiu, caiu e caiu... Na medida em que rumava para baixo, porém, a gravidade parecia diminuir mais e mais. Bizarro!, pensou.

 

Deste modo, enquanto descia quase a flutuar, olhava para os lados e via coisas estranhas: prédios de apartamentos desabavam sem gravidade; escândalos governamentais se sucediam sem gravidade; centenas de assassinatos eram cometidos todos os anos sem gravidade; o trânsito matava mais do que uma guerra sem gravidade; o tráfico de drogas acontecia a céu aberto sem gravidade; aviões escorregavam nas pistas (ou se chocavam no ar) sem gravidade; vândalos pichavam e depredavam monumentos, praças, paradas de ônibus, prédios públicos e privados. Tudo e muito mais sem a menor gravidade. E assim foi caindo, caindo e caindo em si.

 

Quando a menina chegou ao fundo do poço – sim, era mentira: a fonte sempre tivera um fundo de verdade – pousou suavemente no Reino Desencantado. Embora parecesse ter descido ao inferno, tamanha distância que percorrera do mundo anterior – vamos denominá-lo de primeiro mundo – o Reino Desencantado se igualava ao lugar onde Alice sempre vivera. Erguia os olhos e sentia os efeitos do buraco na camada de ozônio; dos rios vinham os odores da poluição; das matas o zoar das serras; olhava para os valores e os via em franca degradação. Bandidos tratados como heróis e vice-e-versa.

 

Mas, qual a diferença? No tal reino, tudo era o mais perene desencanto. Ele se refletia nos olhos das pessoas que por ela cruzavam. Pairava no ar como um sentimento de impotência, ou uma falsa idéia de que sempre fora assim mesmo, ou uma dúvida sobre quando, como e por que reagir. Em contrapartida, líderes se adiantavam em dar explicações: conversa fiada que não aplacava o desencanto reinante. Logo Alice passou a viver, ela própria, desta forma. Um dia, conheceu um rapaz que lhe sorria tímido, verdadeiro príncipe desencantado, e com ele se casou.

 

Quando Esperança nasceu, Alice viu no primeiro olhar da filha um raro manancial de perspectivas. A criança era, sem dúvida, um encanto só. É sempre assim quando nascem, dizia um. Não, respondia Alice, vejo muitos bebês já desencantados nas ruas... Alice e o príncipe cuidaram de preservar o encanto da Esperança, convidando muitas fadas madrinhas para o batismo. Mas os Correios estavam em greve e não entregaram o convite para a fada Ética, que vivia exilada do Reino Desencantado. Ela ficou ofendida por continuar excluída e reeditou, feito uma Medida Provisória, sua maldição: enquanto não a chamassem de volta, trataria de manter aberta a fonte das notícias. Poço que, no futuro, consumiria a Esperança.

 

Passaram-se os anos. Alice recomendava todos os dias para que a encantadora filha andasse do condomínio para a escola, ficando longe daquele maldito poço aberto. Até que uma vez, mocinha, Esperança desobedeceu à mãe. Curiosa, debruçou-se sobre a fonte e, oh!, um vacilo...

15.11.07

Número 241

HINO AO BANDEIRA *

 

Até onde eu saiba, o Árbitro Auxiliar de Futebol, popular Bandeirinha, raramente ascende ao estrelato. Mesmo a virulência da imprensa tende a recair preferencialmente sobre o portador do apito. Uma recente exceção, a bela Ana Paula, apenas confirma a regra. Mas, convenhamos: ela virou celebridade muito mais em função de atributos não laborais, estampados na Playboy. Com justiça, é certo.

 

Compadecido com a eterna posição coadjuvante destes profissionais destemidos (sim, experimente ficar de costas para milhares de pessoas que podem discordar da sua opinião), me lancei à empreitada de compor-lhes um hino.   E, como já existe o nosso belo Hino à Bandeira, tirei proveito realizando pequenas adaptações. Espero, assim, estar homenageando estes auxiliares para lá de imprescindíveis para o bom espetáculo esportivo. Os árbitros que o digam! Vamos ao hino:

 

Salve lindo pendão na esperança/De que o jogo transcorra em paz

Tua nobre presença à lembrança /A grandeza das regras nos traz

 

Percebe o acerto que se encerra/No erguer firme, viril

Querido é símbolo que flagra/Impedido, quem ninguém mais viu

 

De tua vista do campo demarcas/Se a bola, inteira, cruzou

Outra linha, no centro das metas/Validando ou não mais um gol

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Contemplando o trio perfilado/Compreendemos o vosso dever

Auxiliar quem está imbuído/De toda autoridade e poder

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Sobre a imensa nação brasileira/Nos momentos de festa ou de dor

Pegas sempre, sagrada bandeira/Na banheira, mais um jogador

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Bom, para quem estranhou o tema, explico: a crônica acima foi escrita sob encomenda para veicular no jornal Marca da Cal de agosto de 2007 – publicação do Sindicato dos Árbitros do Estado do Rio Grande do Sul. De parabéns Carlos Eugênio Simon, Presidente, pelo espaço sempre reservado à literatura.

 

Mas, qual a razão de ela estar aqui, agora? É por tê-la apresentado para alguns estudantes em Feiras do Livro escolares como exemplo de crônica que utiliza uma paródia. E, para a minha surpresa, por nenhum aluno ter mostrado o mais remoto conhecimento sobre o Hino à Bandeira (apesar de todos os professores terem ao menos a melodia de cor). Aproveito, então, a passagem do Dia da Bandeira – 19 de novembro – para compartilhar com vocês a minha preocupação: onde andará o civismo?

 

* Paródia do Hino à Bandeira, de Francisco Braga e Olavo Bilac.

 

8.11.07

Número 240

A TEORIA DA MOELA

 

Na família estruturada sob o domínio patriarcal, a moela, iguaria unitária e diminuta de um frango, cabia ao provedor. Também a ele era destinada a primazia na escolha do corte de sua preferência. Aos miúdos, digo, aos filhos, eram franqueados os demais cortes da ave, mais ou menos nobres, dependendo do gosto do pai. Na época, o homem gozava de prestígio, ou de poder, para ditar regras que lhe favorecessem. E ai de quem questionasse tais regras. Eu sei porque fui criança nesse tempo.

 

Duas ou três décadas se passaram e a figura do homem provedor se tornou tão rara quanto galinheiro no pátio de casa. O número de filhos diminuiu radicalmente e as mulheres ganharam o mercado de trabalho. Um cenário tão modificado exigiu novos papéis e, com eles, novas regras. Quando o homem acordou, a moela já estava no prato do filho – ou dividida, em caso de mais de um bacuri. Agora, também, as crianças escolhem os pedaços do frango que mais lhes agradam. E ai de quem as desfavoreça. Eu sei porque sou pai nesse tempo.

 

Você já se deu conta de onde quero chegar: sou de uma geração desmoelada. Não comemos a moela quando éramos filhos e não estamos comendo quando somos pais. Para piorar, nada indica que comeremos quando chegarem os netos – os avós são uns derretidos. Mas não se compadeça, porque isso não é uma queixa. É uma triste constatação, carregada de implicações simbólicas. A novidade é que me tornei um revolucionário.

 

E contra o que luto? Contra leituras mal feitas de manuais pedagógicos e toneladas de culpa por pai e mãe estarem absorvidos pelo frenético mercado de trabalho. Criaram-se alguns monstros. Meninos e meninas de classe média cobertos de mimo e proteção; isentos de limites; imunes à frustração; devoradores de moelas. Hoje, pais são amigos e confidentes. Há liberdade que beira o acobertamento. No melhor dos mundos, os rebentos desaprenderam a questionar – questionar quem, se todos estão a meu favor? Assim, sequer saem de casa.

 

Aos dezessete anos eu já sonhava em morar sozinho. Tudo o que eu queria era um JK mal mobiliado e uma moela no prato. Azar que eu tivesse que prepará-la e lavar a louça depois – os ganhos compensavam o esforço. Tive pais dedicadíssimos e que pagaram aos filhos escola e médico particulares, mas nem em sonho nos deixaram (os filhos) mandar em casa. Mesmo sem uma cobrança explícita, estava claro que não podíamos perder o ano na escola ou sair e chegar em casa quando bem quiséssemos. Para se governar, era preciso, antes, se sustentar.

 

Sim! É isso! Para o azar – sorte? – dos nossos filhos, tomamos uma decisão revolucionária lá em casa: passem a moela para cá! Vamos dividi-la entre o casal provedor e saborear na frente das crianças. Horror, horror! Eles precisam crescer sabendo que há algo para perder e para conquistar. A paternidade já nos faz abrir mão de coisas demais, sem medir sacrifício. Não parece justo perder o controle da situação – sem falar de alguns bons prazeres. Quem quiser nos acompanhar nessa trincheira, não tire o olho da moela!