22.5.08

Número 265

CARTOLA NA CABEÇA
(Angenor de Oliveira – 1908-1980)

Quem veio antes: Angenor de Oliveira ou Cartola? Angenor, dirão, na pia batismal. Cartola só viria a ser assim conhecido por causa de seu chapéu-coco, que servia para proteger os cabelos do cimento nas lides da construção civil. Hoje, passados cem anos do nascimento, normas de Segurança no Trabalho ceifariam mais da metade da poesia do mestre, pois não há lirismo que resista ao apelido de “Capacete”. Ainda mais amarelo, que não é nem verde nem rosa.

Mas, afinal, quem veio antes? Essa questão ainda persiste. O menino Angenor logo aprendeu a tocar cavaquinho, instrumento de seu pai nos ranchos – grupos organizados para os folguedos da época. Depois, ainda de maneira autodidata, migrou para o violão. E, se aprendeu sozinho, ou com dicas aqui e ali dos músicos mais velhos, é possível dizer que sua música – a mesma que encantou Heitor Villa-Lobos – já estava na cabeça. E, na cabeça, não há outra coisa senão Cartola.

Ainda perseguindo a dúvida sobre a primazia entre Angenor e Cartola, é preciso dizer que Angenor estudou apenas até a quarta série. Em uma época repleta de analfabetos, o início do século XX no Brasil, não se pode dizer que fosse assim tão pouco. Mas, como já havia muitos “Doutores” no Rio de Janeiro, para intelectual o jovem não servia. Tanto que se tornou pedreiro, como já foi dito. Logo, se não veio da escola sua intimidade com as palavras – atributo primeiro dos poetas –, significa que, Cartola, um dos mais importantes talentos da Música Popular Brasileira, já veio pronto.

Foi por Cartola que dona Deolinda largou seu casamento. Mulher mais velha, sustentou o inconstante pedreiro para que ele se tornasse um compositor requisitado. Cartola também fez nascer a Estação Primeira de Mangueira, para a qual destinou as cores verde e rosa do rancho de sua infância. Mas a nem a dedicação exclusiva de compositor à Mangueira, no momento em que deixou de fornecer sambas para os grandes cantores do rádio, o salvou de uma decepção. A diretoria boicotou seu samba e, avesso à politicagem, afastou-se da escola. Depois, mal recuperado de uma meningite, viu falecer sua Deolinda. Mudou-se para o distante Caju, onde morou com Donária por muitos anos. Tamanho foi o sumiço que Cartola foi dado como morto. Era então Angenor quem vivia, dirão!

Quando dona Sérgio Porto encontrou Angenor, ele subsistia de biscates, estava desfigurado e acabado pela bebida. O jornalista resgatou o artista que, então, foi encantado por Zica. Este novo amor levou o Cartola de volta ao Morro da Mangueira e para perto da cachaça certa: seu amigo Carlos Cachaça. Novos sambas e empregos fixos ressuscitaram o artista. O curto período do Zicartola, restaurante que misturava samba e boa comida, inaugurou este formato de casa tipicamente carioca. De tão bem freqüentado – lá estavam jornalistas, poetas, intelectuais e músicos –, foi o grande responsável pela união entre o morro e o asfalto. Na época, nascia a Bossa Nova.

Enfim, Angenor de Oliveira ou Cartola, quem veio antes? Acho que Cartola chegou primeiro, escolhido por Deus para ser, nas palavras de Drummond, um sambista de “delicadeza visceral”. Ou, como disse Nelson Sargento, alguém que nem existiu, pois “foi um sonho que a gente teve”. Um Angenor qualquer, não o eterno Cartola, teria nascido, quem sabe, nos dias de hoje: em um mundo transformado pela aridez de ritmos e melodias que se parecem com bate-estacas; em um Brasil habitado por artistas pré-moldados; em um cenário musical cuja tinta brilhante mal esconde o interior oco; na pele de um pedreiro destinado a ter o apelido de “Capacete”. E que veria sua namorada dançando o Créu.

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