Número 495
Rubem Penz
Hoje, dentro de um ônibus, sentei-me outra vez num daqueles bancos que ficam de costas para a dianteira do veículo. Não são muitos os que oferecem essa possibilidade, por isso aproveito sempre que posso. Assim é (ou deveria ser) a vida de cronista: sempre que o destino lhe dá uma chance, é bom olhar a cena cotidiana por outro ângulo.
Para quem ainda não experimentou, descrevo algumas sensações, a começar pelas físicas: quando o ônibus freia e todos se projetam para frente, quem está de costas cola no banco. E, ao contrário, ao acelerar, é você quem precisará segurar o corpo. Além disso, os demais passageiros estarão mais preparados para as mudanças bruscas de direção (quebra de esquina ou desvios), enquanto você gozará de inúmeras surpresas, sacudindo um pouco mais para os lados.
Há também diferenças que muito me aprazem: na posição convencional, passo o tempo inteiro visando cocurutos. Cocurutos ruivos, morenos e grisalhos. Lisos, crespos, pixains. No máximo, vemos um perfil ou dois, quando há passageiros conversando ou olhando para fora da janela. Já no banco invertido, não. Fico olhando para os rostos dos companheiros de viagem. Saberei se é bonita a loirinha que entrou no recente ponto, medirei o belo sorriso da mulata, ficarei comovido com a candura de uma criança no colo da avó. Os marmanjos são paisagens fora do foco, claro.
Quando a linha em que estou atravessa grandes avenidas, e elas estão pouco movimentadas, o motorista costuma ficar menos prudente, pisando fundo. É o momento em que quem está de costas parece ser aquela câmera que filma a montanha russa: todos com cara de espanto ou apreensão. Divertido. E, na freada mais brusca, o medo transparece, para logo guiar os olhos em busca da explicação para a manobra.
Por falar em filmagem, se acontecer o deslocamento no fim de tarde, a vista da janela me leva de volta para a obra Koyaanisqatsi, cuja trilha sonora de Philip Glass poderia embalar qualquer uma de nossas entrópicas metrópoles. Quando de manhã, na cálida luz de um sol ameno, sou transportado para a infância: proponho a mim jogos como os de contar quantas mulheres vestem saias nos carros que nos ultrapassam, quem tamborila música no volante, quais transbordam o tédio pelo para-brisa.
Hoje, quando sentei de costas para a dianteira do ônibus, me perdi nos óculos escuros de uma bela moça, bem diante de mim. Em determinado momento, ao seu lado, esteve uma jovem mãe que ofereceu o seio ao filho. No mesmo banco que eu, uma senhora reclamou bastante daquela posição invertida em que estávamos. Apenas respondi que gostava, e pensei: que outro lugar me daria vista mais afável? Ela praguejou um pouco mais e mudou de lugar, ficando lá, de frente para mim e de costas para o novo.
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4 comentários:
Muito bom professor, pensava ser o único a gostar do banco invertido.
Forte Abraço!
Mais um indício claro que és cronista nato, Tiago! Abração, Rubem
SENSACIONAL!!!!
Tua percepção, além de aguçada, me passou muito da visão de quem fotografa. Vê-se o mundo de outros ângulos. Uns escrevem, outros congelam imagens, outros borram tudo com tinta, mas enfim o que vale mesmo é poder enxergar o novo e se emocionar positivamente com o desconhecido.
PARABÉNS!!!!
Luciano.
Luciano, todo fotógrafo é um pouco cronista, e todo cronista é um pouco fotógrafo. Artes primas irmãs. Também por isso apostei minhas fichas num tal Luciano na Santa Sede! Abraços, Rubem
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