1.10.09

Número 337

LOQUACIDADE

Elisa estava farta de tanto se queixar. Pela manhã, cutucava o marido enunciando sua primeira reclamação: antes mesmo de desligar o despertador; antes mesmo de saber se chovia ou fazia sol; antes mesmo de lavar o rosto. Aliás, quando chegava até a pia do banheiro, pelo caminho, topava com dois a três motivos para reclamar. Outros muitos eram servidos junto com o café, sobrando para todos, incluindo filhos e cachorro. Ao ficar só, enquanto não chegava a hora de ela sair de casa, queixava-se, no espelho, de si para si. E para quem dos arredores estivesse disposto a escutar.

Elisa se queixava da vida para a colega de trabalho que, não lhe dando ouvidos, somava mais um motivo para as tantas queixas. Reclamava do chefe pelas costas. Pela frente, reclamava da falta de estrutura para mostrar seu potencial. Mas a estrutura nunca mudava, o chefe nunca mudava, as reclamações se repetiam exaustivamente. O máximo que recebera, e de alguém que nem era do seu setor, foi a curiosidade em saber por que razão, afinal, só a escutava se queixando. Elisa, atônita com a pergunta, não soube por onde começar, deixando o interlocutor falando sozinho. Enquanto se afastava, queixava-se de tamanha falta de sensibilidade.

Elisa, péssima idéia, queixava-se do marido para a sogra. A velha só não a chamava de maluca por jamais usar esses termos, mas se fazia entender. Isso enfurecia Elisa mais do que qualquer coisa, acrescentando motivos de sobra para incluir toda aquela família em seu interminável rosário de lamentações. Porém, bastava maldizer seus cunhados e cunhadas para lembrar de milhares de causas para reclamar de seus irmãos. Nem o pai morto escapava da língua afiada de Elisa. Logo ele, um abnegado funcionário público, esteio de honradez em uma repartição venal do município. Por falar nisso, uma de suas queixas recorrentes em velórios era a velocidade com que os amigos e parentes esqueciam dos defeitos de quem morrera. Isso, e as reclamações com o eterno descaso do sistema de saúde.

Elisa se queixava para o padre José. Se tivesse chance, queixaria-se ao bispo, ao cardeal, ao Papa. Este último, por sinal, mal podia esperar: se não fosse tão caro ir até Roma, se o seu salário de fome lhe permitisse uma extravagância tão comezinha para os abonados do condomínio da esquina, o Papa teria muito a escutar. Onde já se viu uma instituição tão importante e poderosa ser descuidada a tal ponto com seus seguidores? E sobraria também para o pároco, pois, fosse o pecado que fosse, ele dava o mesmo ato de contrição e as mesmas três Ave-Marias de penitência. Vai ver, e isso sem dúvida era uma queixa, o padre José não escutava ninguém do outro lado do confessionário.

Até o dia em que Elisa chegou em seu limite. Nem soube direito qual fora a gota d’água, mas a bacia, definitivamente, transbordara. Calou-se, Elisa. Muda despertou, muda lavou o rosto, muda serviu o café. Vestiu-se muda, muda enfrentou o ônibus, muda fez suas obrigações, muda almoçou. Muda entrou em casa de volta, muda parou diante da TV, recolheu-se sem dizer uma palavra. Mudara.

No dia seguinte, o marido perguntou mais de uma vez se estava tudo bem; os filhos mostraram para Elisa o boletim escolar; o cachorro pulou no portão como quem quer festa ou pede carinho. O chefe teceu um elogio incomum ao trabalho do setor, e colega convidou Elisa para juntar-se à turma na sexta-feira, quando costumam tomar um chope antes de ir para casa. A sogra, meio bruxa, intuiu qualquer coisa e mandou a cunhada (estranho, ela sorriu) levar-lhes um pudim de laranja para sobremesa. O mundo agora parecia livre de seus pecados.

Elisa finalmente se fizera escutar.

25.9.09

Número 336

ORGULHO DE TER VERGONHA

Não sei quantas vezes durante a infância, pouco importando o tamanho da arte cometida, escutei essa frase vinda dos meus pais: menino, tu não tens vergonha? Fosse fazer xixi no pátio do vizinho, quebrar ‒ de propósito ‒ o brinquedo da irmã, responder de modo desrespeitoso a um adulto, toda e qualquer malcriação, na visão de quem me educava, deveria ser motivo suficiente para que eu me envergonhasse. Além do mais, quando eu não me comportava direito na casa dos outros, na escola ou em uma loja, quem morria de vergonha eram os meus pais. Então, depois de se desculparem por mim, me repreendiam severamente, deixando claro que eu, agindo assim, os envergonhara.

O resultado dessa educação de rédeas curtas e limites claros, muito comum em outros tempos, foi a consciência de que, não gostando de passar vergonha, eu deveria tratar de ser bem educado e andar na linha. Em outras palavras, a capacidade de eu sentir vergonha dos meus desvios de conduta passou a ser motivo de orgulho para quem me educou. Assim, depois de crescido, não precisei mais do pai ou da mãe me dizendo o que é certo ou errado, nem como fazer para ser considerado alguém digno de respeito. Sou muito grato a eles por isso, na mesma medida em que espero a gratidão dos filhos, no futuro.

Essa introdução faz algum sentido quando analisamos um fato recém acontecido em Viamão, cidade da Grande Porto Alegre onde moro, mais especificamente na Escola Estadual Barão de Lucena. Logo depois de arrecadar dinheiro na comunidade e pintar o prédio em forma de mutirão (ele estava coberto de pichações), a professora (e vice-diretora) obrigou um aluno de 14 anos a, diante dos colegas, cobrir com tinta os escritos que ele próprio havia feito, entre outros, nas paredes recém pintadas. Mais: teria dito que o menino seria um bobo da corte, fato evidente por ter sido filmado em um celular. Ao filme, obtido por um estudante sem o aval da professora, foi dada publicidade. O resultado é que os pais se insurgiram contra a educadora, alegando humilhação. Exigem sua punição, enquanto o menino não quer mais voltar para a sala de aula.

Antes de defender ou condenar a professora, ou mensurar seu eventual excesso, fui acometido de um sentimento exultante: até que enfim as pessoas estão retomando a capacidade de sentir vergonha! O pichador foi revelado corrigindo seu delito e ficou com vergonha? Viva! Os pais estão morrendo de vergonha por ter um filho malcriado e reagem de modo passional e desesperado em sua defesa? Aleluia! Porque quando alguém vem me visitar em Viamão, e transita diante dos prédios completamente pichados da principal avenida da cidade, quem morre de vergonha somos nós: eu e todos mais que respeitam o espaço público e privado.

Precisamos abandonar a ideia de que quem comete delitos é esperto e quem é cumpridor de suas obrigações é trouxa. Aparecer na TV algemado depois de cometer um delito é vergonhoso? Sim, é: todos tentam esconder o rosto. Para evitar isso, que tal não cometer crimes? Ver exposta sua identidade sofrendo uma censura depois de fazer algo errado é vergonhoso? Claro que é, tornando legítima a reclamação dos pais do aluno pichador. Vergonha maior, no entanto, deveria ser o fato de ele ter cometido, acintosa e deliberadamente, o ato! Isso foi o que eu aprendi em casa.

Dou a cara a tapa diante dos estudiosos da área da Educação quando me posiciono mais a favor da professora do que dos pais e do aluno. Considero como atenuante o fato de que ela ainda estava com os braços doendo depois de repintar o prédio quando foi incisiva na punição ao pichador. Também desculpo a população que vibrou tanto quanto eu ao ver alguém ser punido de modo exemplar: faz tempo que a vergonha está pendendo apenas para o lado de quem não deveria senti-la. A inversão anda tanta que um corretivo merecido, ao invés de ser trivial, virou notícia de TV! Ou a população revisa seus valores, voltando a ter orgulho da virtude e vergonha da delinquência, ou tudo estará perdido. Estranhamente, uma das minhas virtudes é saber, desde pequeno, como é ruim sentir vergonha.

17.9.09

Número 335

AMANTE DE BOLSO

A tese é de uma amiga, e me pareceu bastante curiosa: o homem ideal para se ter como amante é aquele de porte pequeno – baixo e, necessariamente, magro. A maior estranheza nasce da inversão plena do senso comum, no qual o Ricardão dos sonhos é grande (e aí está o superlativo para nos auxiliar), musculoso e bem dotado. Isso tudo passaria a ser uma polêmica vazia caso ela não fosse capaz de sustentar a sua teoria. O problema é que ela trouxe para a conversa uma série de argumentos, e eles foram por demais eloquentes.

Primeiro, minha amiga se deteve em aspectos logísticos: nos apartamentos de hoje, como esconder um amante de tamanho GG para escapar de um flagra? Segundo ela, é muito difícil. Só um magrinho é capaz de enfiar-se debaixo de uma cama Box ou encontrar um canto em armários cada vez mais lotados. Em outras épocas, as camas eram altas e os amantes do tipo armário cabiam com folga dentro dos robustos guarda-roupas. Isso sem falar nas manobras de desespero: quem aguenta mais tempo pendurado do lado de fora de uma janela, o levezinho ou o pesadão? Acima do segundo andar isso faz muito sentido.

Porém, prosseguiu ela, partindo do pressuposto de que o amante, de qualquer porte, conseguisse esconder-se ainda nu para escapar do flagrante: como explicar as roupas? Para minha amiga, o vestuário está cada vez mais assexuado. Logo, um par de tênis assim pequenos, um jeans de corte clássico ou uma básica Hering não denunciaria, necessariamente, homem algum. Lamento confessar que ela me descrevia... Então, lógico, única preocupação passaria a ser a cueca – que poderia voar pela janela ou ser colocada no lixo do banheiro. A danada parecia ter pensado em tudo!

A seguir foi categórica: amante gordo, jamais. De pesados, bastam os maridos! Os homens miúdos, opinião dela, tendiam a ser mais criativos, ágeis e dotados de bom fôlego. Também mais dóceis para o caso das propostas eróticas que incluem dominação, pois jamais seduziram mulheres na base da imposição física. Outra vantagem dos amantes pequenos seria a necessidade de eles, desde jovens, serem atenciosos e bons de papo. Enquanto os sarados eram assediados por todas as meninas, os miudinhos aprendiam a compreendê-las, valorizá-las, encantá-las, tornando-se uma melhor companhia. E eu nunca havia pensado nisso...

Foi quando eu tentei derrubar sua tese: e aquela específica questão anatômica, como ficaria? Afinal, na média, o corpo humano segue uma certa dose de proporcionalidade. Péssima idéia, pois escutei o que nenhum homem gosta de ouvir: se as mulheres levassem em conta o tamanho daquilo tanto quanto nós pensamos que elas levam, poucos maridos passariam no controle de qualidade. Casado que sou, me senti parte do grupo dos iludidos. Pior, sem saber se deveria me ofender ou me consolar.

Espera um minuto: pensando bem, qual teria sido a razão de ela entrar nesse tema, e com tal riqueza de detalhes, justamente comigo? Será que é por causa do meu manequim 38 e meu pé 37? Ou mesmo por causa do trabalhão que tive na adolescência para arrumar namoradas, enquanto os fortões tinham até duas por vez? Estaria ela tentando me dar algum recado indireto? Não, não, não pode ser. Prefiro acreditar na mera coincidência e ficar imaginando que tem outro magricela por aí, este sim, pegando todas!

11.9.09

Número 334

ANIVERSÁRIO

Aniversário é o dia em que nascemos visto ao longe, nós na janela de trás do ônibus, ele abanando na plataforma de partida. Todo ano nos viramos para conferir se ele ainda acena feliz e, depois de vermos seu sorriso – cada vez mais incrédulo, mas ainda firme –, fica mais fácil seguirmos a viagem.

No aniversário de casamento, por sua vez, somos nós solteiros quem ficamos na rodoviária, abanando para nós casados olhando da janela do assento compartilhado do ônibus. A diferença é que a esposa não gosta muito que olhemos constantemente para trás, nostálgicos, para vermos se aquela vida que deixamos ainda nos sorri. Mas, mesmo ralhando conosco, ela também aproveita para dar uma espiadinha para si, eufórica e saltitante, mandando beijos à distância.

Aniversário de morte são os afetos desembarcados do ônibus por terem chegado aos seus respectivos pontos, nós seguindo adiante. Tanto será mais belo, conquanto beleza e saudade possam conviver em harmonia, tanto mais estivermos sorrindo para quem amamos. Daí a importância de sinalizarem com sabedoria o ponto certo para a despedida. Ou, no mínimo, termos a certeza de que o trajeto percorrido levou todos a uma medida satisfatória de vida.

Meus primeiros aniversários, ainda nos anos sessenta do século passado, tinham sabor de pudim de leite. Um inteiro só para mim, pedia à mãe. Ela, sem falta ou espera, me dava o presente com amor e carinho. Era quando, ano após ano, eu compartilhava a sobremesa com a família. Um doce que excede o apetite, por mais desejado que seja, acaba sendo uma lição para a vida.

O décimo oitavo foi o mais aguardado, torcido, comemorado aniversário da minha vida. Com ele viria a sonhada habilitação de motorista, mil vezes mais importante do que o título eleitoral, outro documento bastante almejado. Também o passaporte para os filmes impróprios para menores – quase todos em tempos de censura. De lá para cá, a censura deu lugar aos dóceis critérios de classificação etária e jamais me envolvi em um acidente de trânsito que me causasse ferimentos, tristeza ou culpa. Porém, quisera ter sido tão bem sucedido com as eleições...

O aniversário repete algumas condições que existiam no momento do nascimento (ou morte). Por exemplo, o sol ilumina a terra de modo semelhante. Em algumas oportunidades, porém, nuvens escuras podem impedir que vejamos esse detalhe. E, mesmo na cálida presença solar, o tempo fará modificar todas as sombras projetadas – as árvores crescerão, a cidade será outra, nós mudaremos também.

Uma vez por ano, somos instigados a olhar para trás, para nossa plataforma de partida. É também quando a vida, a História e a morte sentam-se à mesma mesa em celebração de aniversário, seja ela de uma pessoa, de uma cidade, empresa, conquista ou tragédia. Ali estarão servidas lembranças frescas ou bem conservadas, surpreendendo nossa memória com muita clareza. E, entre comemorações e lamentos, ressentimentos e abraços, o que terá maior valor será a oportunidade de congraçamento, de partilha, de íntima comunhão – por mais legítimo que possa parecer o desejo de um exclusivo pudim de leite condensado.


4.9.09

Número 333

MÃOS ATADAS, SORRISO SOLTO

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Carlos Drummond de Andrade


Aconteceu algo estranho comigo durante a semana, uma situação que julgava difícil de ocorrer. Quando encontrei um bom amigo lá dos tempos de Universidade, e enquanto conversávamos, chegou até nós o seu filho. Depois das apresentações, estendi a mão ao graúdo rapazinho de onze anos. Ele, que estava de braços cruzados, assim permaneceu, deixando minha mão dependurada no vazio. O pai, atônito, alertou: Vem cá, não vai cumprimentá-lo, meu filho? Ele respondeu apenas com um olhar de surpresa, como quem diz: Está louco? Depois de poucos segundos de perplexidade geral, como quem decodificasse a mensagem não dita, meu amigo explicou: Ah, isso é por causa da Gripe AH1N1...

Ato contínuo, falou-me que o menino estava tão imbuído do espírito de prudência que não permitia que ele chamasse o elevador apertando o botão com o dedo (indicava o cotovelo como alternativa), entre outras atitudes de cautela. Mesmo assim, ainda incrédulo, o pai voltou a pedir que a criança apertasse a minha mão, pois isso seria a atitude mais educada. Neste momento, fui eu a declinar, antes mesmo de ele esboçar alguma intenção: nosso aperto de mãos bem poderia ficar para outra hora, em condições menos adversas. E, convenhamos, todos nós já estávamos com uma boa dose de constrangimento para administrar.

Depois de nos despedirmos, imediatamente me coloquei no lugar do pai (pois também o sou). Fiquei pensando se eu, na mesma situação, poderia fazer algo além do que ele fez. Acho que não... Isto é, partindo do pressuposto de que aconteceu uma conversa entre pai e filho logo adiante – e eu acredito nisso. Como se trata de pessoas educadíssimas, ficara evidente que o menino não estava sendo malcriado, muito menos assim considerava-se. Reagia, isto sim, mecânica e incondicionalmente ao treinamento de prevenção recebido. Para a criança, errado (imprudente, deslocado) fui eu quando lhe ameacei com um temerário aperto de mãos.

Aí está o problema da informação, do treinamento, da orientação em massa. Cada um de nós absorve as indicações para prevenir-se do contágio da Gripe AH1N1 em uma medida extremamente variável. Uns, mais paranóicos, deixam de sair de casa sob qualquer hipótese. Os indolentes passam, no máximo, a lavar as mãos com uma frequência um pouco maior. E, entre o preto e o branco, passa a existir uma enorme faixa gris, clareada ou escurecida conforme julgamentos pessoais. Neste sentido, as autoridades sanitárias fazem o que podem, comunicando atitudes que, a princípio, parecem padronizadas. Mas acabam de mãos atadas diante das tantas interpretações diferentes.

Fiquei um tantinho sem jeito com a situação em que acabei envolvido, a ponto de compartilhar o sentimento com os leitores. De um lado, um menino com medo, ou cuja natureza é a de levar tudo ao pé da letra. Do outro, um adulto (eu) até certo ponto descuidado, confiante ao extremo no organismo e suas defesas. Entre nós, um pai colocado em indefectível saia justa. Depois, refletindo, cheguei à conclusão de que só há uma vacina capaz de prevenir essas circunstâncias: o bom humor. Substituíssemos o aperto de mãos por um largo sorriso e um Olha a gripe!, nenhum desconforto teria nos inoculado.

26.8.09

Número 332

EM MEIO À MEIA

Recém passou meu quadragésimo quinto aniversário e tudo parece meio estranho... O problema é a desconfiança de eu estar no ápice, no auge, na flor da meia-idade. Aliás, eu e toda a minha geração. Não que isso me deixe muito preocupado. Digamos assim: estou apenas meio preocupado. Por isso, especulando as implicações que isso traz.

Por exemplo, o que seria a meia-idade, senão aquele momento da vida em que ficamos meio cegos atrás de indefectíveis óculos de leitura, e mesmo assim enxergamos longe barbaridade? Ficamos meio surdos (ainda mais os músicos, especialmente bateristas), mas compreendemos até o que não está sendo dito? E meio mudos para sermos ainda mais eloquentes com nosso providencial silêncio? Ah, pois é...

Outro fenômeno meio esquisito é que, bem na meia-idade, olhamos para os filhos pensando que eles estão meio parecidos conosco. Eles, por outro lado, nos consideram meio parecidos como os avós, que, já tendo passado pela meia-idade, sempre acham tudo completamente diferente. Aí vemos as duas distantes gerações se entendendo bem, e nós colocados meio de lado nessa relação!

Não obstante o fato de termos muito, ou quase nada termos, na meia-idade o que mais acontece é grande valorização de outros termos: os meio-termos. Isto é, não estamos contagiados nem pelos arroubos apaixonados e inconsequentes da juventude, nem pela estagnação aposentada dos que se deixaram envelhecer demais. Quem está na meia-idade, para o bem de todos e felicidade geral da nação, vai mais devagar com o andor, pois ele, e o mundo, pesam em suas costas.

Este período da vida deixa alguns de nós meio gordinhos, outros meio carecas, meio grisalhos, meio doloridos. É um pouco pior quando tudo isso acontece ao mesmo tempo... Sei de amigos que, achando-se meio acabados, chegam a ficar meio deprimidos. Bobagem! Basta meia hora de caminhada, meio prato de comida, meia taça de vinho e meia-rédea no ritmo, de preferência na companhia da cara-metade. Conseguindo isso, já é meio caminho andado.

É também a meia-idade uma boa ocasião para dar-se meia-volta e alterar os rumos da vida enquanto se tem força, vontade e, quem sabe, um pé-de-meia. Que tal dar vazão ao talento deixado sempre meio de lado? Ou ao pobre sonho, esquecido meia hora depois do sol nascer? Quem sabe descer o meio-fio e pegar a estrada? Aproveitar tanta experiência adquirida para encontrar novos meios de realização pessoal – algo já pensado, no mínimo, meia dúzia de vezes? Como diria um presidente, sim, nós podemos!

No coração da meia-idade vale a pena aproveitar o ar aprazível da meia-estação para namorar um pouco. Caprichar na meia-calça, no sutiã meia-taça, nas palavras ditas a meia-voz e no ambiente bucólico da meia-luz. Lamber meias-palavras em beijos mais quentes e prolongados. Mas, de preferência, antes da meia-noite, pois varar manhãs inteiras na cama, com o passar do tempo, vai ficando cada vez mais difícil.

Por fim, caso você tenha se enquadrado na metade dessas ponderações, parabéns: está sobrevivendo aos atropelos da meia-idade, o que nos faz meio parecidos. Contudo, se espera algum tipo de conselho para o fechamento da crônica, com a solução para os males que nos afligem, tenho más notícias: me faltam meios para tanto. Além do mais, para mim, auto-ajuda é literatura de meia-tigela.

20.8.09

Número 331

THE E-BOOK IS ON THE TABLE

Semana passada, enquanto visitávamos a nova morada de uma querida amiga, ao comentarmos as soluções arquitetônicas para mobiliar o quarto de seu filho, mencionamos uma mesa que serve atualmente de escrivaninha para nossa caçula. É um pequeno móvel de aço, desmontável, típico dos anos oitenta. Salvo engano, foi comprado na Tok & Stok – loja reconhecida por sua aposta em design contemporâneo. O interessante na conversa foi a constatação de que a mesa fora adquirida por minha esposa, ainda solteira, para acomodar o computador que à época serviria para a escritura de sua dissertação de Mestrado: um TK-3000.

Os mais velhos certamente recordam o enorme salto qualitativo que o computador pessoal (PC) empreendeu para compor documentos longos como uma dissertação, algo difícil de ser avaliado pelas gerações atuais. A possibilidade de digitar, corrigir e salvar um arquivo em disquete era uma absoluta novidade naquele instante, mesmo contrastando com a atual precariedade do equipamento (o TK-3000 continha um microprocessador de 1 MHz e 8 bits). Nos tempos da reserva de mercado em informática, era o que tínhamos ao alcance. Tanto que sua tela verde fez história, e ele se tornou um dos maiores sucessos de vendas da Microdigital Eletrônica, marca importante no início da Era Digital no Brasil.

Lá se foram duas décadas e, como podem adivinhar, o TK-3000 virou peça de museu. Nem com boa vontade seria possível continuarmos usando este PC, pois os disquetes compatíveis não existem mais no mercado. Porém, desde aquele tempo e até hoje, a pequena mesa desmontável jamais deixou de ter ótima serventia para a família. Esteve compondo ambientes tanto na nossa sala de estar como na de amigos, até a chegada do nosso primogênito. Então, pela facilidade de regular sua altura, virou escrivaninha infantil. Logo depois de um up-grade visual, passando do preto fosco para a tonalidade branca, trocou de dormitório, mantendo igual finalidade. Com seus dias de escrivaninha contados (os filhos e suas necessidades crescem), não creio que faltará bom uso para uma prática mesa de aço em nossa casa.

Se em tecnologia digital vinte anos são uma eternidade, para móveis a regra é outra. Herdamos, por exemplo, mesa e cadeiras de jantar de minha infância, fabricadas na década de cinquenta do século passado (em processo de restauração). Outra mesa da mesma época, e que mobiliava a casa da minha avó materna, está aqui na biblioteca. Ao lado da cama, uma charmosa escrivaninha que pertenceu ao meu sogro compõe a cabeceira, sustentando o laptop vez que outra. Isso sem mencionar outros móveis como cristaleiras, armários e mesas de apoio em estado de novo, avós da mesa de aço, com data de validade absolutamente em aberto, espalhados em todos os ambientes de nossa casa.

Isso me fez recordar a recente polêmica em torno do dito “fim do livro”. O suporte papel, segundo especialistas, será gradativamente abandonado em favor de e-books, telas nas quais o conteúdo será carregado a preços módicos conforme a vontade do freguês. Assim como já acontece com a música, a literatura será desmaterializada, sobrevivendo no etéreo mundo da informação digital. E, na corrida incessante e frenética do mercado, alguns revolucionários mecanismos de ler fora do papel, muito festejados agora, serão iguais ao TK-3000 em cinco ou seis anos. Há quem defenda a tese de que as mudanças de suporte pouco afetarão a obra literária. Algo me faz desconfiar dessa impressão.

Tudo bem: posso apenas estar sendo mais uma vítima da vertigem na escalada digital. Mas, que fazer se cada vez mais me agrada a idéia de materialidade... Quero objetos que pesem na mão, agradem ao tato, sejam frios ou quentes. Tenham, também, cheiro e marcas de história, e que necessitem de boa dose de zelo – além do habitual cuidado com a tecla delete. Como não interfiro em rumos que parecem já traçados – até prova em contrário – meu ato de resistência será acomodar o mp3 (4, 5?) e o e-book sobre sólidas mesas, esperando que o aço e a madeira confiram a estes transitórios objetos um mínimo de perenidade. Míseros bits de ilusão.

14.8.09

Número 330

OS MORCEGOS DO ANDAR DE CIMA

Temos em casa um telhado proeminente, planejado para ocupar os altos da residência com a biblioteca. Como moramos no Rio Grande do Sul, terra que acomoda temperaturas desde siberianas até caribenhas durante as mudanças de estação, deixamos um generoso espaço entre as telhas e o forro, com estratégicas entradas de ar. Isso atenua um pouco o elevado pé direito da sala (bom para o inverno) e promove uma refrigeração para tornar suportáveis os dias de sol escaldante. Porém, tal generosidade foi muito bem recebida pelos morcegos, animais capazes de penetrar por risíveis frestas entre as telhas. Em pouco tempo, habitavam as dezenas (centenas?) sobre nossos livros.

Enquanto somavam uns poucos, os morcegos eram até suportáveis – eles lá, nós aqui. O problema começou a se tornar grave com a proliferação: ruídos, odor, revoadas ao anoitecer, invasões. Como tenho a audição diminuída nas frequências agudas, considerava exageradas as queixas sobre seus grunhidos. Até o momento em que se somaram, multiplicaram e tornaram-se evidentes até para mim. O cheiro dos excrementos, também, começou a ultrapassar a barreira do tolerável. Sem falar no fato de vermos nossa sacada se transformar em intenso aeroporto ao por do sol, com partidas de aeronaves a cada dez segundos. Por duas vezes, também, tivemos morcegos dentro de casa. E não é tão fácil tirá-los, com a uma aranha, sapo ou lagartixa (para ficar nos tradicionais ingredientes das poções de bruxas). Providências já, pedia a esposa.

Fui para a internet e descobri aparelhos que, ligados às tomadas, emitiam ruídos inaudíveis aos humanos e desagradáveis para morcegos. Compramos logo dois, na esperança de sumirem os bichos. Pura ilusão... Ou fomos iludidos pelo fabricante, ou nossos morcegos se habituaram ao desconforto sonoro. Então, chamei um empreiteiro: seria possível lacrar o telhado? Talvez sim, mas sairia muito caro e com tênue a garantia de sucesso – os morcegos são especialistas em procurar novas fendas. Por fim, falei com um biólogo: posso colocar veneno no telhado? Não: os morcegos são importantíssimos na cadeia alimentar e, assim, estão protegidos pela legislação ambiental.

Quando tudo parecia perdido, uma oportuna reportagem de jornal jogou uma luz sobre o tema. Morcegos precisam se abrigar em ambientes sombrios durante o dia, para dormir. Indicava, então, intercalar algumas telhas transparentes com o objetivo de tornar iluminado o espaço acima do forro. Como em um passe de mágica, sem grandes investimentos, os morcegos nos deixaram em paz. A lógica, de tão simples, me fez estupefato: como não pensei nisso antes?

Livre dos morcegos reais, leio sobre a política nacional, sobre nossos poderes, nossas estatais. O Brasil é um enorme telhado crivado de fendas, algumas até protegidas por lei. Somos um criadouro de morcegos, alimentando-se de nosso sangue à noite e protegidos na escuridão durante o dia. Finda a ditadura, a imprensa passou a emitir sons que, ao menos na teoria, deveriam espantar os morcegos. Mas eles não dão bola. Muitos cidadãos perguntam se não é possível reconstruir o Brasil sem frestas, blindado contra tais morcegos. Impossível, é a resposta. Em nenhum lugar no mundo existe telhado assim. Os radicais adorariam envenenar-lhes a pizza, e só não o fazem por ser ilegal.

Agora que a quantidade, os excrementos, os danos provocados pelos morcegos já alcançam o nível do insuportável; sabedores que somos da natureza dessa espécie – que precisa necessariamente habitar a escuridão –; livres para pensar e fazer nossas escolhas, fica a pergunta: o que falta para se fazer o óbvio? Contra todos os morcegos, para que eles não existam ao nosso redor, como bem apregoa Cláudio Weber Abramo, basta transparência e luz.

6.8.09

Número 329

PRECE

Aos meus amigos pais,
dedicados e amorosos,
com grande admiração.


Pai nosso que estás trabalhando – muitas vezes distante, mas com o pensamento na família –; que estás aposentado depois de uma vida inteira de dedicação incansável; que estás convalescente... Pai nosso que já te encontras no céu: relembrado, respeitado, reconhecido seja o teu nome.

Pai: venha a nós o teu legado, teu exemplo, tua história. De preferência em jantares com a família, festejando a vitória do clube, no carinhoso beijo de boa noite. Que não nos falte tempo para falar da tua infância, para recebermos teus conselhos, para que tenhamos a tua vida como bom exemplo a seguir. Que alcances a idade de ver os netos e, sendo pai duas vezes, possas rolar no chão arrancando risadas das crianças – soberana graça.

Pai: seja feita a tua vontade, tanto em casa quanto em qualquer lugar do mundo. Afinal, grande parcela de nossa crise moral tem nascido dentro do lar, justamente com o enfraquecimento da autoridade paterna. Não temas o fardo do comando, pai: prepara teus filhos para que enfrentem as frustrações como sendo inerentes ao processo de crescimento, e os insucessos com energia suficiente para darem a volta por cima. Dota os herdeiros com a consciência de que todos pagamos por nossos erros, cedo ou tarde. Faze-nos verdadeiros cidadãos.

Pai: o pão nosso de cada dia, fruto do teu suor, dá-nos hoje e sempre. Ele será nosso alimento para o corpo e para o espírito. Dará suporte para que cresçamos saudáveis e fortes, prontos para enfrentar os desafios do futuro. Pão este que terá mais valor tanto maior for o sacrifício em obtê-lo – momentos em que os pais passam privações em prol da família. Porém, jamais será por isso que ofertaremos menor reconhecimento àqueles que conquistaram a fartura, vigilantes para que os filhos não incorram em desperdício e soberba.

Pai: perdoa-nos de nossas ofensas. Elas são muitas vezes resultado do grande ímpeto juvenil, de teimosias infantis, de falta de amadurecimento. Quando souberes que estás com a razão, tem paciência e, diante de nossa ira, tem compaixão. Lembra-te do dia em que estavas com a nossa idade e nossa aparente segurança. Tem a grandeza de nos desculpar, na esperança de que tenhamos igual postura para, um dia, reconhecer nossas falhas.

Pai: proteje-nos das tentações. Proteje-nos das drogas fortalecendo nossa auto-estima e discernimento. Proteje-nos da criminalidade e seu sedutor, falso e danoso poder. Proteje-nos da violência ensinando o respeito ao próximo. Proteje-nos da ignorância valorizando a educação. Proteje-nos da cobiça e do individualismo mostrando o caminho da solidariedade. E, melhor, pai: faze tudo isso através do bom exemplo.

Pai: livra-nos do mal nos desejando o bem; nos ofertando o bem; nos indicando o caminho do bem. Que sejamos sempre bem-vindos em tua casa. Bem-quistos por teu coração. Bem interpretados em nossas intenções. Bem-aventurados ao seguir teus passos.

Filho: se você foi abençoado com um bom e justo pai, lembre-se dele todos os dias. Sua luz poderá ser o mais importante farol que o Pai lhe deu.

Amém.

Convite!

Quarta-feira é dia de palestra e autógrafos no Centro Cultural Auxílio ao Tema. Não perca!

29.7.09

Número 328

EXPRESSO

Entrei no bistrô para ali investir o precioso lapso de tempo que a manhã me proporcionava. Mal sentei à janela, o garçom se aproximou no ritmo ideal: nem tão rápido que sugerisse a ansiedade latente de um estabelecimento vazio, nem tão lento como a indicar um bom motivo para o grande número de mesas desocupadas. Solícito, me alcançou o cardápio, recolhendo-o diante do meu gesto de dispensa. Eu já sabia o que pedir.

– Preciso de uma crônica, por favor.

O garçom inclinou a cabeça, apertou suavemente os lábios e arqueou a sobrancelha. Demorou alguns segundos processando o pedido: quem sabe algo em mim não indicasse tal preferência? Buscando mais informações, perguntou se eu desejava um acompanhamento.

– Não, obrigado. Por hora, nada mais.

Ele assentiu, deu um passo curto para trás, girou e partiu na direção do grande balcão de madeira. Virei-me para a janela e deixei que a música ambiente se fizesse notar: Billie’s Bounce, do Charlie Parker. Na falta de alguém para conversar, aí estava o jazz para ser a boa companhia durante a espera...

Do lado de fora, a cidade não parecia sentir nem um pouquinho a minha falta. Os automóveis seguiam em sua habitual urgência, quase não acreditando ser necessário parar para atender a ordem do semáforo de pedestres. Quem estava a pé dividia-se entre taciturnos e distraídos. Todos, porém, dentro e fora dos carros, pareciam colocar o pensamento logo adiante – para o que lhes esperava –, esquecendo de viver o presente. Ninguém olhava para ninguém.

Uma moça de casaco claro, meio tom acima do cachecol, falava sozinha. Procurei por aquele ridículo fio em sua orelha que indicasse o uso do estranho vivavoz do telefone celular. Nada. Melhor assim... A impressão do lado de cá da vitrine era de que ela fazia um ensaio. Isso: ela repassava o texto, com direito a suas diversas nuances. Quando recebeu o sinal verde, partindo para meu lado da rua, uma das mãos mantinha a bolsa firme contra o corpo, e a outra, fechada, apertava-se com energia. Fosse o que fosse o motivo da palestra íntima, parecia sério.

Neste instante, um motoqueiro de entregas ameaçou disparar sobre ela, avançando na faixa de segurança. A mão que estava crispada se espalmou como quem grita pare, ao mesmo tempo em que o corpo saltava para o lado. A mim, que assistia, coube apenas puxar o ar em sobressalto. Os dois trocaram olhares e, cada um com suas razões, xingamentos. Ambos terminaram suas tarefas: ela atravessou a rua, ele prosseguiu com sua roleta russa.

O garçom chegou com a xícara fumegante, atraindo a minha atenção. Dentro dela, o líquido escuro e aromático estava coberto por uma diáfana espuma. Indicou onde estavam o açúcar e o adoçante, se quisesse, e ofereceu um biscoito de canela para acompanhar. Mesa posta, incluindo a comanda de pagamento, retirou-se assim que agradeci.

Quando voltei os olhos para a vitrine outra vez, procurei, mas não vi a moça do cachecol. Todos os demais prosseguiam com sua ensimesmada pressa metropolitana – como se aquela esquina existisse apenas para ser abandonada o quanto antes. Respirei fundo. Ou melhor, suspirei. Agora, ao som de Round Midnight, de Thelonius Monk. Porém, enquanto balançava a cabeça como quem diz que tudo está errado – minha vez de falar sozinho –, reparei que a tal moça entrara no bistrô.

Esperança: mais alguém na sexta-feira de manhã teria disposição para fazer a breve pausa de ler uma crônica. Ou até de servir de inspiração.

22.7.09

Número 327

NA HORA DO SALTO


E o beijinho vai para quem?
Xuxa


Um dos grandes feitos de nossa história recente completa quarenta anos em 2009: a chegada do homem à lua. Ação importante na trincheira científica da Guerra Fria, o pouso do Módulo Lunar da espaçonave Apollo 11 foi um dos primeiros fenômenos de comunicação de massa, acompanhado por milhões de pessoas em escala global. Conscientes da relevância do momento, os norte-americanos buscaram capitalizar o máximo de proveito do episódio, principalmente depois de assistirem ao soviético Yuri Gagarin ser o primeiro homem a alcançar o espaço a bordo da Vostok 1, em 1961. Desde então, pairava pelos corredores da NASA, tal qual o sussurro de um fantasma, a marcante frase do orbitante Gagarin: “A Terra é azul, mas não há Deus”.

Assim, tanto quanto os estudos técnico-científicos que permitiram aos astronautas pousarem e decolarem em segurança do solo lunar, os aspectos de comunicação também foram minuciosamente planejados. Filmagem, transmissão, bandeira, fotos, tudo pensado para enriquecer a História com informações e símbolos relevantes. Nos poucos anos que separaram as expedições de Apollo e Vostok, muito havia se avançado em termos de comunicação, o que permitiria uma visibilidade extrema. E, necessariamente, uma nova frase haveria de suplantar a anterior: “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a Humanidade”, dita por Neil Armstrong.

Por uma questão de romantismo, quero crer que os astronautas foram os autores das duas belas frases. No fundo, claro, e muito por causa da força de ambas, existe a possibilidade de alguma delas ter sido previamente criada. Soube de uma especulação em que o próprio Armstrong teria dito de forma errônea o texto decorado, trocando o correto “um homem” por “o homem” na primeira parte de seu enunciado. Aqui e agora, o mais importante para mim é exaltar a eficácia das palavras que foram proferidas em tais momentos cruciais para a Humanidade. Em igual proporção, louvar as frases marcantes de nossa vida, venham elas de iluminados improvisos ou ensaiadas linhas. Ao mesmo tempo, e por consequência, lamentar que tantas pessoas perdem essa oportunidade de ouro.

Por exemplo, o que acharíamos da seguinte cena: abre o microfone de dentro do capacete do primeiro homem a pisar em Marte. É dele o minuto para ser escutado por todos. Então, vemos o herói tirar do bolso do macacão espacial um papelzinho dobrado, enquanto confessa meio constrangido que precisa de uma “colinha”, mesmo tendo dias e dias para ensaiar suas palavras. Com a voz trêmula de emoção, ele agradece à sua avó, que tanto o incentivou desde os primeiros anos escolares; à sua mãe, que não poupou sacrifícios para que ele chegasse até ali; ao seu pai, esteja ele onde estiver, pelo exemplo; aos seus irmãos, pela camaradagem, e, finalmente, à sua noiva, que abriu mão de muitos finais de semana com ele enquanto estava se dedicando aos exaustivos treinamentos no Centro Espacial. Ah, em desagravo a Gagarin, agradeceria também a Deus: sem Ele, nada alcançamos.

Pois é... Aproxima-se o momento da série de cerimônias de formatura nos mais diversos cursos superiores. E, fazendo questão de acompanhar uma das benquistas professoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), minha esposa, já estou preparado para escutar dezenas de vezes palavras, se não iguais, muito semelhantes àquelas que coloquei na boca do nosso hipotético homem que pousou em Marte. Por isso, minha vontade seria, antes, chegar aos alunos planejam sua colação de grau e pedir: pelo bem comum, que os formandos tenham direito a vinte, no máximo trinta palavras individuais no púlpito – maior extensão cabe, no protocolo, ao orador da turma. Depois, mostraria o magnífico poder de síntese das frases do soviético e do americano. Por fim, explicaria que, para eles, a formatura será o momento do primeiro grande salto de suas vidas, um instante que ficará para sempre. Logo, é a hora exata para falar pouco, todavia muito, muito bem. Este sim, um belo presente à mamãe!

15.7.09

Número 326

MENTIRAS PRESERVATIVAS

A vida de maridos que mentem sistematicamente para suas esposas não é nada fácil. Não que seja complicado inventar histórias, desculpas, explicações. Em regra, os homens são bastante criativos e escorregadios. E solidários, caso necessitem de álibis de parceiros de farra. Porém, do outro lado, encontram mulheres equipadas pela natureza com uma atenção diferenciada (principalmente quando o tema interessa) e uma memória muito, muito superior.

Neste momento, surge um paradoxo: ao criar uma mentira, se ela for pobre em detalhes, jamais será verossímil. Ou, em outras palavras, não colará. Porém, a chance de o mentiroso lembrar por bastante tempo dos detalhes de uma história elaborada e, por isso, presumível, é pequena. Menor ainda será a memória de um eventual comparsa. Por sua vez, a impressionante memória feminina guardará o enredo tintim por tintim. E no futuro, por acaso ou de propósito, a mentira poderá ser desvendada, gerando um desgaste infeliz.

Dias atrás, conversando com um amigo escolado, recebi orientações preciosas para resolver esse problema (o qual, diga-se de passagem, nem tenho). Com rigor quase científico, me disse que devemos ter sempre na lembrança a lição que o educador sexual dá aos pais para quando as crianças fazem perguntas sobre reprodução humana: não informe nada além da curiosidade. Na esperança de que o texto até aqui tenha sido suficientemente calhorda para levar as moças a abandonarem a leitura, reproduzo alguns dos exemplos citados:

Caso tenha perdido a aliança em uma atividade suspeita, e resolva inventar um assalto para explicar seu sumiço, seja econômico: foi na calçada, um homem, armado que, com pressa, levou o anel e mais nada. Não diga o nome e o calibre do revólver. Mesmo sem saber a diferença entre um 22 e um 38, elas guardarão os números e isso pode levar a uma contradição. “Arma” basta. Jamais descreva o assaltante! Diga que foi rápido demais e você nem viu direito. “Perto do escritório” pode ser suficiente. Tudo o mais pode ser passível de testemunhas.

No caso de não ter perdido nada além da hora, explique o atraso com um mínimo de informações. Experimente, primeiro, culpar o trânsito. Mas não caia na tentação de imaginar um acidente, uma obra viária, uma blitze da Polícia Federal. Se ela pedir detalhes, diga que “deve ter acontecido alguma coisa”, e prometa buscar a explicação no jornal do dia seguinte. Quando chegar em casa exalando perfume feminino, diga que foi uma demonstradora que, reparando na sua aliança, borrifou em você para convencer que seria um bom presente de aniversário. Porém, jamais descreva a tal demonstradora: seu inconsciente pode lhe trair e dar pistas do que, justamente, deve ser ocultado.

Dito assim, parece fácil. Mas não é. Se você faz parte da categoria dos homens que recorrem à mentira como ferramenta de harmonia conjugal, pode dar o azar de estar casado com uma mulher perspicaz. Ela, então, fará perguntas para descobrir uma contradição. E guardará as minúcias para futuras inquisições. O segredo é tentar ficar na superfície das generalidades, respirando aliviado, enquanto ela tenta desesperadamente puxar você para as profundezas do detalhamento.

Bom, para o caso de alguma mulher ter chegado até aqui, um consolo: no caso invertido (o de ser ela quem pula a cerca), qualquer explicação mal criada será suficiente. Bem no fundo, tudo o que os maridos querem é nada descobrir.

9.7.09

Número 325

DORME, CAROLINA

Carolina nasceu de parto normal, três quilos e meio, 48cm. Conduzida ao colo da mãe pelo obstetra, ali, nos primeiros instantes, amassadinha e vermelha, não se parecia nem com ela nem com o pai: parecia, isso sim, cansada. E cansada permaneceu durante todo o período em que estiveram na maternidade – mal e mal cochilava, já abria os olhos outra vez. E chorava um pedido incompreensível que punha a mãe nervosa.

Quando deixaram o hospital, eram duas sem dormir. Por isso, talvez seguindo algum instinto, a mãe restringiu tanto quanto pode o assédio natural e carinhoso de amigos, vizinhos, tios e avós em sua casa. Invertendo o senso comum, não era ela quem adormecia quando Carolina pegava no sono: a menina que parecia descansar apenas quando a mãe, exausta, apagava. Porém, bastava alguém entrar no quarto para os olhos da criança se abrirem outra vez. E, com eles, o choro.

A estranha relação de Carolina com o sono quase terminou com o casamento. O marido, lógico, não aceitava com alegria sua expulsão do quarto do casal. Mesmo assim, reconhecia a necessidade, pois a filha não pregava o olho enquanto ele não se retirava. A salvação foi descobrir que ela ficava muito mais tranquila quando a própria mãe se ausentava, deixando-a só. A partir de então, viram Carolina dormir em seu próprio quarto, sozinha, porta fechada, tudo com menos de três meses de idade.

Nunca, porém, o sono da menina deixava de ser preocupação. Quando começou a falar, suas queixas eram estranhas: sombra, mamãe. E escureciam ao máximo o quarto. Lagartixa, mamãe: e caçavam o animalzinho no canto do teto. Mosquito, mamãe: bom, essa reclamação encontrava eco na normalidade. Aos cinco anos ela ganhou um pequeno aquário habitado por um peixe Beta. Colocaram sobre a escrivaninha, imaginando que seria bom para ela curtir a companhia. Na manhã seguinte, lá estava o aquário no corredor, do lado de fora da porta do quarto. Perguntaram a razão. Ele nada durante a noite, foi o que explicou Carolina.

Aos poucos o problema ficava claro: Carolina, desde que nascera, despertava com o menor movimento que percebesse. Por isso adormecia no escuro, sozinha, sem nada se mexendo ao redor. Também essa era a razão de ter destruído três móbiles dados pelo tio (e não uma suposta antipatia que imaginávamos). Dar-se conta desse problema a fazia sofrer, principalmente depois de passar a noite em claro na primeira, e única, vez em que foi dormir na casa de uma amiga. E, para receber colegas e primos em sua casa, só se dormissem na sala de TV. Viagens, passeios, excursões, campeonatos esportivos em outra cidade, nem pensar. E isso explicava o fato de se manter acordada dentro do automóvel, quando todas as crianças dormem ferrado em viagens.

Carolina cresceu. Os filhos sempre crescem. E muito mais rapidamente do que gostariam os pais. Hoje, já uma moça, como não poderia deixar de ser, a menina está namorando. Fernando é o nome do rapaz. Estuda Educação Física, tem quase dois metros de altura e ficou para dormir. Armaram para ele o sofá-cama da sala de televisão, na esperança de que se acomodasse com razoável conforto. Neste momento a mãe está na cama, mas não consegue dormir: o pai caminha de um lado para outro sem parar, bem na frente dela. É compreensível sua preocupação. Ao desconfiar de que algo se move para além de sua porta, teme que Carolina não esteja dormindo.

2.7.09

Número 324

MEMÓRIAS DO FUNDO DO BOLSO

Nasci muitas moedas atrás, lá nos idos dos anos sessenta. Meu pai tinha pouco menos de trinta anos de idade à época. Ele, quando infante, viu morrer o Mil-réis – a moeda que antecedeu nosso primeiro Cruzeiro (Cr$). E foi com as novas cédulas que ele pagou sua grapete, as entradas de cinema, as passagens de bonde. Pagou a faculdade, as alianças que ofereceu à noiva e a maternidade de seus três primeiros bebês. Depois, na curta vida do Cruzeiro novo (NCr$), pagou o hospital que recebeu o filho caçula e, no mesmo ano, as entradas para ir comigo na inauguração do estádio Gigante da Beira-Rio. Com NCR$ comprou a pipoca daquela noite mágica em que o Colorado enfrentou o Benfica de Portugal, time do lendário Euzébio (Inter 2 X 1 Benfica). Para ficar no futebol, os Cruzeiros novos deram lugar outra vez ao Cruzeiro em 1970, um pouco antes de nos tornarmos Tricampeões Mundiais com Pelé, Zagallo, Jairzinho e companhia.

Mesmo reconhecendo que o primeiro Cruzeiro e seu novo (NCr$) saldaram despesas representativas na minha existência, a primeira moeda com que lidei de verdade foi o renascido Cr$. Era com Cruzeiros no bolso que eu pagava o sanduíche prensado durante o recreio no colégio, comprava gibis do Mickey e da Mônica, e picolés Chicabom nos verões intermináveis das férias na Praia do Barco. Com essa moeda levei para casa, orgulhoso, um LP da Clara Nunes. E os Cr$ foram acompanhando meu caminho musical até eu bater nas portas do jazz, no impecável álbum Zabumbê-bum-á de Hermeto Pascoal (1979). Temas como Suíte Norte Sul Leste Oeste abririam meus sentidos para, literalmente, todas as direções. Ainda com o mesmo padrão monetário, desgastado pela persistente inflação, entrei e saí da universidade, caindo no mercado de trabalho em um período de economia muito, muito desafinada. E de desvalorização monetária ensurdecedora.

Em 28 de fevereiro de 1986, no instante em que, entre amigos, cruzávamos o Rio Mampituba (a divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina) nasceu o Cruzado (Cz$). Voltávamos de férias em Florianópolis. Dílson Funaro era o pai da nova moeda, vinda para tempos de Nova República. O mais proeminente ministro do primeiro governo civil de nossas vidas, presidido por José Sarney, cortou, junto com o cordão umbilical, três zeros da antiga cédula. Naquele dia, com tantas incertezas quanto esperanças, eu mudava de categoria: deixava de ser um pé-rapado milionário para me tornar um pé-rapado na casa das dezenas. Foi, também, o momento em que minha vida coincidiu com a vida das moedas nacionais: várias mudanças em pouco tempo. Pulando de plano em plano econômico, troquei de profissão, noivei, casei e descasei. Tudo isso entre Cruzados, Cruzados Novos (NCz$) e os Cruzeiros outra vez – a nova/velha moeda. Perdi as ilusões, muitos zeros no caminho e, tristemente, boa parte dos cabelos. Conheci uma nova companheira: a enxaqueca.

O Cruzeiro Real (CR$), sétima moeda que caía no meu bolso, foi criado por Itamar Franco em 1° de agosto de 1993. Isto é, nas portas dos meus 29 anos, coincidindo com a idade do meu pai à época em que nasci. No mês seguinte encontrei minha amada e, antes da chegada da URV (um fator de conversão com cara de dinheiro) e do Real (R$), já estávamos casados. Assim, para nós será sempre muito fácil saber a idade do atual padrão monetário, cujo aniversário de quinze anos aconteceu dia 1º pp. Na vigência do Real construímos a família. Tediosamente, nossos filhos não conhecem outra moeda. Nem os constantes cortes de zeros arremessados nos dragões da inflação. Nem sabem o que é a inflação. Eles acham isso tudo muito maluco!

A solidez da economia brasileira talvez seja o principal benefício resultante de nossa jovem democracia, senão o único. Meu desejo, agora, é que em um futuro próximo meus filhos escrevam um texto sobre os escândalos políticos, a anarquia administrativa e as fraudes generalizadas estampadas em nossas manchetes de jornais. E leiam para os meus netos, explicando o inexplicável: como conseguíamos viver daquela (dessa!) maneira. E anões do orçamento, mensalões e atos secretos soem tão distantes quanto Mil-réis, Cruzeiros e Cruzados. Enfim, que o nepotismo, a corrupção e o clientelismo sejam, de uma vez por todas, moedas fora de circulação.

26.6.09

Número 323

NOSSOS FABULOSOS PROBLEMAS

Era uma vez um velho chamado Executivo, um menino chamado Legislativo e um cavalo cujo nome era Judiciário. Um dia, Pátria, dona da casa onde moravam os três, pediu que fossem até a cidade para fazer um favor ao Povo, seu filho. Já na partida, foi criado um certo constrangimento: como iriam se portar durante o deslocamento?

No primeiro arranjo, Executivo montou no Judiciário e deixou o Legislativo a pé. Ao passarem por uma vizinha que varria a calçada, foram interpelados com uma certa revolta:

– Executivo, o que fazes aí montado no Judiciário, enquanto o pobre Legislativo está cumprindo o trajeto ao largo, caminhando?
– Ora, não foi nada pensado, minha senhora – respondeu o velho. – Essa forma é apenas uma medida provisória: decidi ficar, assim, acima do Judiciário, e com o Legislativo de fora, só me assistindo.

Quiseram continuar indefinidamente (quer dizer, o Executivo quis), mas a senhora não deixou os três seguirem dessa maneira. Disse que era um escândalo: a posição mais correta para Legislativo seria ali, com o Judiciário lhe apoiando. Enquanto isso, o Executivo, esse sim, andaria com suas próprias pernas. E assim foi feito.

Percorreram mais algumas léguas até chegarem a uma venda. Defronte ao estabelecimento, o proprietário, olhando para a cena, parou o trio mais uma vez:

– Posso saber o que vocês estão querendo, andando aí desse jeito?
– Vamos até a cidade por ordem da Pátria – falou o pequeno Legislativo.
– Mas, menino, como podes ser tão insensível ao deixar o Executivo sem montaria? – quis saber o comerciante.
– É que nos falaram que o lugar do Legislativo é aqui, com o Judiciário. E o Executivo, bem mais forte, pode muito bem andar sozinho.

O homem não concordava. Se não cabiam os dois sobre o animal, que nenhum ficasse com tal privilégio. Além do mais, todos tendo pernas, bem que eles poderiam caminhar juntos, em posição de igualdade. O Judiciário, segundo ele, merecia o mesmo status dos demais. E assim foi feito.

Haviam cumprido mais da metade do caminho, quando passaram por um padre. O sacerdote ficou espantado e, para satisfazer sua curiosidade, perguntou:

– Vocês aí: tendo o Judiciário a lhes servir, como podem desprezá-lo?
– Não se trata de desprezo, seu Vigário – disse o velho. – Ele não parece forte o suficiente para acomodar nós dois.
– E implicam quando um só está com dele – completou o menino. – O senhor pode nos ajudar a decidir a forma ideal para andarmos?

O padre disse que não poderia resolver essa questão. Pastoreava almas, apenas. E, mesmo assim, perdia seu rebanho para os lobos a toda hora.

– Cada um com seus problemas! – falou a autoridade eclesiástica, rumando para o seu templo.

Executivo, Legislativo e Judiciário sentaram-se à beira do caminho. Lembraram que a Pátria esperava que eles ajudassem o Povo. Mas, como só recebiam críticas da opinião pública, sentiam-se paralisados. Foi quando decidiram, a partir dali, cuidar apenas de seus próprios interesses. Azar do Povo que, necessitado, esperava pela liderança do Executivo; pela capacidade de renovação do Legislativo; pela força do Judiciário. Às favas com os pedidos da Pátria! Estamos nos lixando! – foi o brado.

Moral da história: se eles não fizerem nada, a culpa ainda será nossa.





18.6.09

Número 322

O GUETO DE CRACKÓVIA

Para Adriana Marques

A Cracóvia, importante cidade polonesa, foi ocupada por tropas nazistas em 1939, setenta anos atrás. Imediatamente, eles iniciaram a perseguição aos judeus lá residentes. Em 1941, foi construído um gueto para abrigar aqueles que lá restavam, isto é, os que ainda não haviam partido para os campos de concentração ‒ Auschwitz, por exemplo, ficava pouco mais de sessenta quilômetros distante de Cracóvia. Como todos sabemos, em muitos casos, para além do gueto, o que esperava os prisioneiros era a iminente execução.

Vinícius de Moraes, sensibilizado por um desenho de Carlos Scliar, abordou o tema do Holocausto em uma crônica intitulada “Meninas sozinhas perdidas no mundo e dentro de si”. No texto, tão belo quando repulsivo, o poeta nos oferece sua visão de uma das maiores tragédias humanas. São palavras fortes: “ (...) Meninas perdidas, sozinhas no mundo e dentro de si: ó abstratas, mímicas e galglionares! ‒ feixes de ossos armados para a fogueira de todas as esperanças, todos os votos, todos os desejos. (...) Aparentemente meninas: conservais no rosto a perene crispação de um sorriso. Mas não é sorriso, é magreza. Não vos foi dado lábios nem para sorrir, nem para beijar. Tendes a boca negra como uma cratera e vosso mau hálito suspira: amor!”

Corta para nosso Brasil de 2009. Para as acinzentadas metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre. Para muito distante dos horrores da Segunda Guerra. Mas, também, para dentro de corações que sangram tragédias humanas tão graves quanto aquelas experimentadas nos tempos dos guetos e dos campos de concentração nazistas. Súbito, me deparei com Vinícius de Moraes descrevendo com horrenda semelhança as moças e meninos entregues ao vício das drogas, à dependência do crack. Vi-me diante das macérrimas e sombrias meninas de Carlos Scliar, agora prisioneiras de uma nova atrocidade, numa guerra sem pátria, crença, classe social, idade, sexo ou etnia para escolher entre suas vítimas. Em qualquer hora do dia ou da noite, basta circular para encontrarmos meninas perdidas, sozinhas no mundo e dentro de si...

Muitas vozes se insurgem denunciando o horror de um gueto chamado vício, no qual, tristemente, as pessoas entram por sua própria vontade. Depois, atrás de um muro de delírios erguido com pedras, seringas ou fumaça, passam a trabalhar e a viver em função daquilo que as aprisiona. Experimentam os atos mais torpes, aviltam-se, criminalizam-se, humilham-se. Sofrem e levam muitos ao sofrimento. Já não há conforto, não há higiene, não há alimento ou sono. Tudo parece levar à morte. Campanhas publicitárias apelam para que estejamos afastados das pedras que rodeiam o gueto que chamarei de Crackóvia. Um lugar onde, ao entrar, nos perdemos, sozinhos no mundo e dentro de nós...

Porém, há que se ter um cuidado: nossa raiva, nossa indignação, nosso asco deve ser dirigido àqueles que traficam, produzem, lucram com a desgraça dos prisioneiros de Crackóvia ‒ onde há homens e mulheres que “ardem na fogueira de toda a esperança”, como disse Vinícius. O dependente químico, por mais repugnante que seja sua aparência, por mais violentas que sejam suas atitudes, jamais se libertará sem nossa ajuda. Nas palavras do poeta, tem “a boca negra como uma cratera”, e “o mau hálito suspira: amor!”

Quero muito conseguir amar os viciados, prisioneiros de Crackóvia, na mesma medida em que odeio o traficante de entorpecentes. É super difícil, mas conheço quem é capaz de fazê-lo. E admiro tanta dedicação e esforço em lutar pela liberdade alheia. Por enquanto, suplico a quem consome drogas “socialmente”: pare de financiar o Hitler dessa história.

10.6.09

Número 321

POR ARRAIAIS SEM ARRANHÕES

Festa Junina é uma tradição interiorana. Talvez isso explique sua louvável resistência ao vírus do politicamente correto, disseminado nos últimos anos por toda parte, mas, principalmente, nos grandes centros urbanos. Ainda bem! Afinal, bem posso imaginar o estrago provocado nas tradicionais festas de São João, São Pedro e Santo Antônio caso aderissem à intolerância das patrulhas corretoras. Sobraria quase nada.

A primeira vítima, creio, seria a própria figura do caipira. Os politicamente corretos protestariam contra o fato de pintarmos os dentes para ficar banguelas. Afinal, é uma carga violenta de preconceito contra os pobres desamparados, historicamente mantidos longe das cadeiras de dentistas em função de suas condições monetárias. Além do mais, isso evidenciaria um deboche com relação à suposta disparidade social do homem do campo em termos de educação e de higiene. Não faltaria, também, quem exigisse uma atualização no caipira, pois, integrado à cadeia de agrobusiness, ele tem em mãos tanto um laptop, quanto uma escova de dentes de última geração.

A patrulha da moda também poderia colocar suas agulhas de fora: onde já se viu calças surrecas (puídas e remendadas), camisas xadrez sem o menor feitio, suspensórios e chapéu de palha para representar o campesino? Onde fica o jeans justinho, a camisa de grife, o chapéu de vaqueiro norte-americano e as botas de couro, itens predominantes em toda festa de boiadeiro? E os desastrosos vestidos de chita, maria-chiquinha e sardas? Depois do tal Ozônio (que bem poderia ser nome de Coronel), ninguém mais se descuida do protetor solar e, por isso, louvar as sardas pode ser interpretado como desestímulo ao seu uso. No caso sulino, ainda tem os gauchamente corretos patrões de CTG (Centro de Tradições Gaúchas) para proibirem pilchas em festa de caipira. Bombacha e vestido de prenda são trajes de gala, e não fantasia!

Quando o assunto é fogueira, a briga seria com as patrulhas ecologicamente corretas. Não faltaria alguém para citar de memória um coeficiente de poluição gerado por uma fogueira média, ardendo por meia dúzia de horas. Ao multiplicar esse valor pelo número de fogueiras acesas no Brasil em noite de São João, a grandeza auferida significaria meses de produção ininterrupta em uma laminadora neoliberal capitalista e safada (aqui a patrulha de esquerda dá o tom). Isso sem falar na quantidade de mata nativa sacrificada para que homens desprovidos de autocontrole etílico arrisquem sua integridade física em saltos temerosos ‒ flagrantes de mau exemplo para as crianças presentes na festa.

Nem mesmo o casamento na roça escaparia da ação das críticas politicamente corretas. A moça grávida (e ainda solteira) estaria estimulando a prática de sexo na adolescência. O pai, obrigando o noivo a desposar a menina sob a mira de uma espingarda, seria um exemplo cabal de tortura e coerção. E onde estaria o porte e registro da arma? Ela foi adquirida legalmente? Além do mais, ninguém hoje em dia acredita no casamento forçado como método eficaz para corrigir desvios de conduta. Por fim, não faltaria quem também exigisse a realização de casamentos homoafetivos, multirraciais e ecumênicos, com o argumento de que todas as minorias merecem as bênçãos de Santo Antônio.

Que os Santos juninos protejam os arraiais contra a patrulha politicamente correta. Senão, daqui a pouco vão estragar a brincadeira da cadeia com Habeas Corpus preventivos; vão considerar os buscapés como bullying; pau de sebo, só com rede de proteção; para as bandeirolas, exigirão papel reciclado; copo de quentão com a gradação alcoólica; determinados decibéis na altura dos autofalantes; queima de fogos por empresas especializadas etc ao infinito. Na esteira da (corretíssima) proibição de balões, a turma do politicamente correto pode desfigurar uma das mais divertidas manifestações populares. Apagando, enfim, a fogueira em nossos corações.

4.6.09

Número 320

DIA DE FAXINA

Qual o melhor dia para a limpeza da casa? No caso de quem contrata uma profissional, qualquer um, de segunda a sábado, desde que ela esteja comprometida em sua agenda. O ideal – e aqui está uma conquista de clientes antigos – é o dia de faxina cair na sexta-feira, véspera de final de semana. Quinta, ainda é bastante bom. Segunda-feira pode bem servir para juntar os restos mortais de eventuais festanças. Porém, seja contratando alguém para limpar a casa, seja por nossos próprios esforços, um consenso existe: em domingos, não há ânimo para atuar na limpeza.

Esta é a ótica de quem limpa, claro. Do ponto de vista de quem recebe a higienização, dia de faxina é sempre domingo. Ou folga, ou feriado. Um dia para quebrar a rotina, sair do sério, dar um tempo. Rever amigos, até. Senão, vejamos:

Em que outro dia os tapetes ganham uma folga para passear no pátio, na varanda ou na sacada? Eles todos – o da sala, os dos banheiros, aqueles à beira da cama – deixam de receber pisadas distraídas para tomar banho de sol. Quando, de quebra, ganham umas voltinhas na máquina de lavar, galgam a solene altura dos varais. Se não, ao menos sobem para encostos de cadeiras, ou grades, respirando outros ares. E garantem um mínimo de elevação do espírito.

Cadeiras se esbaldam em piruetas, muitas vezes parando de cabeça para baixo em cima da mesa, que já está aliviada da responsabilidade cotidiana de equilibrar aquele vaso de cristal caríssimo (para o azar do sofá que fica por perto, e agora acomoda o enfeite de modo desengonçado). Se o piso recebeu carinhos do pano úmido e perfumado, ou a renovação de sua cera, mesa e cadeiras vão curtir essa inversão de posições por horas a fio, rindo à toa!

Dia de faxina também é a oportunidade das camas, desavergonhadamente, ficarem nuas. E dos lençóis, fronhas e cobertas mexerem-se com o vento. Se os homens tivessem ouvidos mais atentos, perceberiam a algazarra dentro do armário, onde jogos de cama limpos apostam em qual será o preferido para sair da reserva e entrar em campo. Os travesseiros, pesados de tantas confissões inconfessáveis, podem, enfim, dar uma espairecida. Suas penas, afinal, não são de ferro...

Quando é o caso daquela denominada faxina grossa, até as cortinas, para variar, abandonam seus varões. As venezianas curtem chuva de mangueira, e as folhas das janelas passeiam para lá e para cá no bailado das flanelas. Com sorte, as cristaleiras e armários serão arredados para longe das paredes: bancar a estátua para esconder o pó mais rebelde cansa suas belezas. E, já que são muito grandes para sair porta afora, pelo menos ganham a oportunidade de espiar a rotina por um outro ângulo.

Depois da faxina, é impossível não reparar em tantos sorrisos pela casa. Alegram-se os enfeites, os lustres, o piso. O contentamento se reflete em todos os espelhos, reluz nos tampos de granito, transparece no vidro do box. Por essas e por outras que nossos móveis não entendem quando passamos os domingos entediados, amortecidos diante de uma tela de TV. Eles sabem que programa bom é tomar sol, fazer piruetas, olhar a vida por novos ângulos. Desprender-se dos varões, sentir o vento no rosto, perfumar a alma. Trocar afetos para aliviar nossas penas, despir-se de pesadas máscaras.

Para a casa, dia de limpeza é sempre domingo. Para nós, domingo é, ou deveria ser, sempre um dia de faxina.

27.5.09

Número 319

DEBAIXO DO NARIZ

Quem mexe os invisíveis cordões da moda, das tendências, do comportamento? Boa pergunta... Uma teoria é a de que esses movimentos estão sujeitos às deliberações efetuadas em reuniões seletas, em andares altíssimos de edifícios luxuosos em Nova Iorque, Milão ou Paris. Ou, por outro lado, são fruto de disparos aleatórios e pulverizados de tentativa e erro, combinados com pesquisas mercadológicas. Há quem acredite na simpática ideia de inconsciente coletivo. Algo, porém, é consensual: na moda, nas tendências e no comportamento, vale sempre a antiga lei de Lavoisier, na qual nada se cria ou se perde – tudo se transforma.

Por exemplo, em meu pouco tempo de vida, vi as calças alargarem as bocas de suas pernas feito cortinas; depois, retrocederem até quase não passarem os pés e, novamente, ganharem o formato de sino. Na cintura, elas andaram, entre altos e baixos, variando da borda das costelas ao cúmulo de exigir depilação feminina e cuecas de grife. Na minha infância, bermuda era vestimenta de escoteiro: calção de verdade era curtinho como os da Seleção Brasileira de 74. Agora, nada que esteja acima do meio da coxa é aceito por meu filho. Nem preciso entrar no movediço terreno da indumentária feminina, muito mais oscilante e variável, para comprovar a tese de que tudo o que foi moda um dia, fatalmente, retorna.

Vinha faz tempo pensando nas idas e vindas da moda e, duas semanas atrás, lendo uma tirinha em quadrinhos do Recruta Zero, decidi trazer à tona uma inquietação para compartilhar com os leitores. Antes, para quem desconhece as personagens de Mort Walker, apresento quatro delas e suas características: Sargento Tainha, o brucutu, marcado pelo dente inferior acentuado; Dentinho, o tonto, dentuço feito um Ronaldinho; Zero, o desastrado e preguiçoso, com os olhos escondidos, e Quindim, o mulherengo sedutor, com seu indefectível bigodinho. Pois, ao ver o Quindim cercado de gatinhas, algo me estalou: onde andarão os bigodes? Chegará o dia de eles retornarem à face masculina?

Na década de cinquenta do século passado, época em que o Recruta Zero ganhou fama, nada era mais charmoso do que um bigode sutil. Dos astros de cinema, passando por cantores, homens do jetset internacional e, claro, golpistas sedutores, quase todos os bons partidos cultivavam seus bigodes bem aparados. Rapazes de bigode seguiram na paisagem por outras duas décadas – basta lembrar que o desejado Chico Buarque usava bigode. Antônio Fagundes, também. Aliás, lembro de uma série de atores que recorriam ao bigode para variar de rosto conforme a personagem. Os Beatles, antes de aderirem ao visual barbudão, passaram pela etapa bigoduda. E as mulheres se derretiam.

Alguma coisa aconteceu nos anos oitenta para o bigode ver raspado seu status. Freddie Mercury e Village People podem explicar uma parte do fenômeno, mas não todo. Parece que a maior resistência nasceu em quem, tecnicamente, não usa bigodes: as moças. Hoje, se um homem ameaça deixar o bigode crescer, sua namorada, esposa ou companheira logo protesta. Diz que é anti-higiênico, feio, cafona. Proíbe! Será que parte da crise de papéis e de identidade masculina é causa (ou consequência) da falta de autonomia com nosso rosto? Está na cara: elas temem algo que o bigode simboliza!

Sei não, acho que o bigode voltará a ser moda a qualquer momento. Em breve, todos os zagueiros usarão bigodes. E os atacantes precisarão deixar os seus crescerem para continuar almejando o gol. Os professores usarão bigodes, e os cantores, os fotógrafos, os jornalistas. Nelson Motta voltará a usar o seu. E Pedro Bial. Isso reverterá a tendência de mulheres poderosas e homens submissos. Será o único freio à hipertrofia dos bíceps da Madonna ‒ bigode, ela usaria? Também assumiremos um comportamento mais audacioso nos jogos de sedução, recuperando a esquecida iniciativa. A força de Sansão estava, quem sabe, no cabelo das ventas!

Nossa, vai ver que no bigode está a explicação do imenso poder de José Sarney... O tempo todo ali, embaixo do nosso nariz! Para ele, Gillette já!

22.5.09

Número 318

ÓVULOS FECUNDADOS

Segunda-feira passada, dia 18, acompanhamos mais um Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – data instituída em 2000 para recordar um crime de enorme repercussão ocorrido em 1973. Para 2009, o mote da campanha institucional de conscientização contra tal violência é Faça bonito: proteja nossas crianças e adolescentes. Diante do tema, decidi revisar meus arquivos em busca de criações para a mesma finalidade – frases escritas por mim para campanhas que, por um motivo ou outro, nunca saíram do papel. Com elas, pretendo trazer reflexões sobre o tema.

Proteja de olhos bem abertos quem nos ama de olhos fechados. Todos os que têm filhos, ou qualquer um ao passar pela experiência de estar com uma criança sob seus cuidados, notam o elevado grau de entrega que os pequenos nos confiam. Isso é muito natural. Assim, cabe a nós, adultos, desconfiar por eles – ser seus olhos e ouvidos –, evitando que pessoas mal intencionadas avancem (in) justamente sobre quem, por natureza, está desarmado. É imprescindível estar atento aos sinais!

Quem deseja berços merece as grades. Abuso sexual: a reação é cadeia. Não há razão para taparmos o sol com a peneira: existem pessoas cujo objeto de desejo sexual é o infante. Por mais odioso que possa parecer, mesmo ferindo de morte a vítima e seus familiares, quem apresenta tal comportamento reage a uma compulsão. Pessoas assim precisam ser contidas, seja para tratamento psiquiátrico, seja na prisão. Fora de controle, voltarão a agredir nossas crianças. Com certeza.

Não os deixem dormir com os anjos. Exploração sexual infantil: denuncie este pesadelo. Aqui, a expressão dormir com os anjos apresenta, propositalmente, duplo sentido. E aponta para o fato de não ser justo que o agenciador de crianças para a prostituição durma tranquilo – impune – enquanto o agredido tem sua vida transformada em pesadelo. Denunciar essa situação é mais do que dever: é nossa obrigação.

Não o deixe dormir com os anjos. Abuso sexual infantil: denuncie este pesadelo. Estatísticas demonstram que boa parte dos abusos sexuais são praticados dentro do lar, por pessoas que gozam da intimidade e confiança da vítima. Mães: estejam atentas para os sinais emitidos por seus filhos, acredite neles, procure ajuda especializada. Ninguém merece tanto horror...

Abuso sexual infantil: por um futuro em que ninguém tenha passado. Estudiosos do tema nos ensinam que uma parcela significativa dos abusadores sexuais foram vítimas, quando crianças, do mesmo crime. Por isso, impedir que delitos dessa natureza ocorram no presente é, também, prevenir ocorrências futuras. Afinal, a vítima de hoje poderá se transformar no algoz de amanhã.

Se você quiser indicar alguma das frases acima para entidades que costumam agir contra o abuso e a exploração sexual infantil, sinta-se previamente autorizado. Desde que, é claro, respeitando (indicando) a autoria. Afinal, tais chamadas, como estão, não passam de óvulos fecundados antes de serem colocados no útero. Potencialmente, podem ajudar a despertar consciências. Mas, para isso, precisam ser implantadas em campanhas institucionais. Aliás, desde o primeiro momento, elas foram pensadas sem que alguma remuneração financeira estivesse no horizonte.

Tenho esperança de que, dos tais óvulos, ou de tantas louváveis iniciativas de prevenção, venha a nascer o dia em que a sociedade tema bem menos pela salvaguarda da integridade física e psíquica das crianças.

14.5.09

Número 317

SUPERPODERES

Meus filhos, assim como todas as crianças, adoram a ideia de termos superpoderes. Afinal, os heróis são cultuados justamente por essa razão: podem algumas coisas a mais, além do normal, superiores. Um dia, me perguntaram qual superpoder eu desejaria para mim – uma questão dificílima de responder de improviso. Porém, um desafio dos mais interessantes.

Desejando estar à altura da expectativa deles, meu primeiro impulso foi o de escolher um entre os tantos dotes consagrados na tradição dos heróis. Voar, por exemplo. Este desejo acompanha a humanidade desde sempre. Pensando adiante, ser (tornar-se) invisível é outro fetiche contemplado por diversas obras de ficção, vindo a calhar em determinadas situações. Melhor mesmo só quando combinamos o poder de sumir ao de se materializar em qualquer outro ponto do planeta. Já pensou o quanto quem tivesse tais faculdades economizaria com gasolina ou passagens?

Continuei meu inventário: força desproporcional, visão à distância, alcance de elástico, imortalidade... Fiz um rápido passeio pelas mais diversas qualidades dos super-heróis famosos antes de escolher uma para mim. E acabei abandonando todas. O que respondi aos filhos pareceu ser bastante animador: se eu pudesse escolher um superpoder, ele seria o da eloquência. Sim, o poder do convencimento. Depois de hesitarem por alguns segundos, as crianças concordaram: seria um poder e tanto! Com isso, senti até o gostinho de ter tal capacidade.

O passo seguinte foi imaginarmos o que ganharíamos com o superpoder da persuasão. Conseguiríamos convencer alguém a trocar uma nota de um Real por outra de cem? Melhor: trocar o nosso carro antigo por uma Ferrari zero quilômetros, taco a taco? Melhor ainda: propor qualquer negócio deixando a outra parte com a sensação de que saíra levando vantagem? Namoraríamos os mais desejados astros e estrelas? Teríamos o emprego dos sonhos, o salário dos sonhos... Mas, vem cá, precisaríamos mesmo trabalhar em busca do sustento? Em questão de minutos, descobrimos uma força absurda no poder do convencimento. E, de quebra, o perigo que corremos de, com ele, atropelar a ética e nos locupletarmos. Enfim, fazer uso errado deste poder. Horrível!

Lembrei disso pensando em nossos Poderes da República. Excetuando o Judiciário, para o qual os candidatos prestam concurso público (e isso está longe de torná-lo infalível), os outros poderosos galgam suas posições por intermédio do voto. Logo, usam da persuasão para assumirem o Poder Legislativo e Executivo. E, revestidos destes Poderes, fazem o quê? Lamentavelmente, parece que nada do que esperamos dos super-heróis, isto é, proteger os fracos e oprimidos. O noticiário tampouco indica que lutem pela justiça, prendam os facínoras, impeçam as tragédias. Quem dera... Na verdade, alguns usam os superpoderes oferecidos pela democracia para levar vantagem em tudo, segundo a antiga (e famosa) Lei de Gérson.

Fiquei superdeprimido: o poder superior que desejei para mim, julgando-me superoriginal, já é exercido em diversas instâncias. Políticos superpersuasivos são eleitos e, imediatamente, passam a poder diversos poderes: podem voar (sem pagar), podem sumir (e fazer aparecerem laranjas), têm a força das leis a seu favor, usam a máquina estatal para tudo ver, esticam sua influência como um elástico sem fim... Alguns até são imortais. Além disso, ficam furiosos quando, abusando do poder, são flagrados pela igualmente poderosa imprensa.

Da próxima vez em que os filhos falarem sobre o tema, vou desejar diferente: quero só deixar de ser Superimbecil. Quando crescerem, compreenderão.

8.5.09

Número 316

ESPERANÇA

Abre teus braços e canta
A última esperança
A esperança divina de amar em paz

Tom e Vinícius

Se esperança tivesse uma forma, ela seria esférica. Pois assim, redonda, é a forma da mulher que espera um filho. E nenhum outro momento é tão rico em esperança quanto o da gestação. Ele permeia cada sorriso, sublima o desconforto, supera a dor prometida. Ele inunda o coração de modo a fazer passar por ali os melhores fluidos. Ele cativa quem está próximo, ou mesmo quem só passa ao largo. Na gravidez, a mulher espera para si, para o filho e para todos nós um futuro melhor. Espera, também, estar apta para nutrir a vida que se renova. Espera que o pai saiba compartilhar tamanha responsabilidade. Espera viver o suficiente para ver seu fruto tornar-se frondosa árvore. Espera alcançar os netos. Nossa: é esperança que não acaba mais!

Nenhuma mulher perde por esperar. O final de sua espera, ao contrário, coincide com o momento de se ganhar. É quando a felicidade não cabe mais em si: rompe, transborda, derrama-se. E, depois de deixar o ventre, é no seio materno que o filho se alimenta de esperança, de afeto e de vida. O colo da mãe é o endereço do encontro sublime de duas vidas que esperavam uma pela outra – uma dentro da outra –, para firmarem um contrato jamais escrito, mas implícito e reconhecido por suas normas, direitos e deveres. A sociedade espera que as partes cumpram seus papéis. Outra vez, ou seria sempre, é esperança que não encontra fim.

A cada manhã, toda mãe espera ver seu filho despertar. Viverá na esperança de que nada de mal lhe aconteça; de que, com o passar do tempo, caminhe com suas próprias pernas; de que tenha juízo e discernimento; de que encontre bons amigos para compartilhar a vida. Viverá na esperança de que pouco (ou nada) ele sofra por amor. Vã esperança... A mãe espera que o filho seja estudioso na medida de sua capacidade, seja humilde para reconhecer-se aprendiz, seja perseverante e, com isso tudo, possa ter o êxito almejado. Pois o fracasso do filho será também o seu fracasso, sua desesperança.

No entardecer da vida, a mãe espera ter o filho ainda à sua volta. Contará os dias até o final de semana; ou as férias, Natal, Ano Novo. Contará também as novidades adiante e, quando menos o filho esperar, conhecidos distantes saberão detalhes de sua vida. Emoldurará fotografias em portarretratos coloridos, expostos na sala de estar para louvar a certeza de ter oferecido a melhor educação. Escondidas, bem escondidas nas gavetas da cômoda, ficarão algumas desconfianças sobre eventuais falhas aqui ou ali. E a mãe morrerá na esperança de que nada disso seja encontrado por noras e genros de má vontade, loucos para se depararem com explicações, por exemplo, para as manias do cônjuge à mesa. Mesmo na hora da partida, na memória da mãe habitará a esperança.

Faça qualquer maldade com sua mãe. Faça-a sofrer, deixe-a com saudade, ria de seu jeito antiquado, seja presunçoso ou soberbo. Até aplique corretivos, se ela voltar a ser uma criança. É grande a chance de ser perdoado bem no fundo do coração. Pior: ela tomará para si a culpa de, quem sabe, ser justamente punida e maltratada. Só um pecado jamais terá perdão: tirar de sua mãe a esperança. Não imagino ter sido outro o erro do rapaz que, conforme notícia recente, viciado em crack, levou a mãe ao desespero de matá-lo.

Morta a esperança, já não temos mais uma mãe. Já não temos mais nada. E, no vácuo e na vertigem do nada, que vida haverá?

29.4.09

Número 315

AS QUERELAS DE BRASÍLIA*
Boi Barroso & Brejo

Brasília (1), minha Brasília brasileira
Da mamata inzoneira
Vou cantar-te em tantas verbas

Ó Brasília trampa que dá
Bandoleiro que faz lucrar
Ó Brasília do meu pavor
Terra do nosso penhor
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Ô, abre a caixinha do plenário
Tira à mancheia do erário
Bota o imposto no otário
Brasília! Brasília

Deixa ganhar o especulador
Misericórdia é toda tua
Se é banqueiro o devedor
Quero ver essa grana caminhando
Pelos milhões se afastando
Do bolso do assalariado
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Brasília, terra tão onerosa
Da emenda sestrosa
De pilhar indiscreto

Ó Brasília vende que dá
Outra lei complementar
Ó Brasília do meu pavor
Terra do nosso penhor
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Ô esse empreiteiro que não pouco (2)
Fez aumentar a sua renda
Nas obras que soube ganhar
Brasília! Brasília!

Ô, oi essas fontes governantes
Onde mamatam-se com sede
E onde a viúva vai dançar
Ó essa Brasília linda intrigueira
É minha Brasília brasileira
Terra toda eleitoreira
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

* Paródia de Aquarela do Brasil, do mestre Ary Barroso.

Nota-se (1): esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com as teimosas notícias de política e economia das sucursais jornalísticas de nossa Capital Federal terá sido mera coincidência.

Nota-se (2): no original, este verso cita o “coqueiro que dá coco”. E o que mais poderia nos dar um coqueiro? – cabe a pergunta. Bom, em Brasília, dependendo da mão que aduba, coqueiros podem dar até cerejas nas noites claras de luar. Há quem duvide?

22.4.09

Número 314

SÃO TANTAS EMOÇÕES...

Agora é oficial: Roberto Carlos – o cantor e compositor da Jovem Guarda – dá início às festividades de seu cinquentenário musical, a completar-se em 2009. Serão diversos espetáculos e tributos, muita tietagem e mesuras dignas de um rei. Reconhecendo plenamente os méritos da prolongada e vencedora carreira, almejo para outros dedicados profissionais com este tempo de trabalho uma comemoração de semelhante vulto. E, inspirados na majestade dos palcos, poderiam agradecer assim:

Farmacêuticos, olhando a chegada de mais uma receita em suas mãos, diriam: são tantas emulsões...

Os agiotas e demais profissionais que labutam na generosa tarefa de cobrar juros escorchantes, em lágrimas, agradeceriam: são tantas extorções...

Cirurgiões gerais: são tantas incisões... Cirurgiões plásticos: são tantos esticões... Cirurgiões dentistas: são tantas restaurações...

Agentes e guias turísticos, ao completarem cinco décadas à frente de crianças e idosos, diriam: são tantas excursões...

O paramédico, percorrendo a cidade nas ambulâncias, comemoraria seu cinquentenário dizendo: são tantas remoções...

Políticos no palanque: são tantas eleições... E, depois, com seus cupinchas: tantas locupletações...

Os publicitários, gerentes e diretores de marketing anunciariam assim: são tantas ilusões...

Padres, pastores, rabinos e toda sorte de pregadores da palavra de cada um de seus deuses, diriam em ladainhas: são tantas orações...

Jornalistas e escritores, no ano em que completarem seus cinquentenários, autografariam: são tantas edições...

Em cinco décadas, caso tenha conseguido ludibriar as autoridades mundiais, o terrorista mandaria uma carta bomba: são tantas explosões...

Feirante: são tantos agriões... Churrasqueiros: são tantos salsichões... Cozinheiros e garçons: são tantas refeições...

Geneticistas, obstetras e demais pesquisadores da área da fertilidade poderiam agradecer às homenagens dizendo: são tantos embriões...

Motoristas, cobradores e maquinistas, chegando neste ponto, diriam: são tantas estações...

Matemáticos: são tantas adições... Físicos: são tantas equações... Astrofísicos: são tantas dimensões...

Professores de português diriam: são tantas redações... E os de educação física contariam: são tantas flexões...

Atores pornôs: são tantas ereções... Atrizes pornôs: são tantas felações... Censores: e tantas proibições...

Advogados e juízes de direito, afogados em nosso interminável oceano de processos e recursos, julgariam prudente dizer: são tantas petições...

Neurologistas: são tantas convulsões... Cardiologistas: são tantas pulsações... Traumatologistas: são tantas contusões...

Por fim, o cronista amigo, depois de cinco décadas em laudas semanais, agradeceria a sorte de poder escrever sobre qualquer tema, puxando o microfone de lado e atirando uma rosa para a platéia: são tantas opções...

15.4.09

Número 313

CRACK: QUEBRAR, PARTIR

O crack, uma das mais devastadoras drogas desenvolvidas pelo homem, pode ser escutado como uma palavra onomatopéica que significa quebra. E parece ser consensual a ideia de que, depois do crack (após o rompimento), são poucas as chances de as estruturas partidas voltarem à integridade como se nada tivesse acontecido. Cabe, então, pensarmos nas forças que atuaram antes do fato, criando as condições para tal quebra, ou, no mínimo, abstendo-se de cautela. Nossa chance está na antecipação.

Comecemos procurando as frestas, pois, diz a lógica, o rompimento tende a acontecer nas estruturas comprometidas. Quando olhamos para a família, outrora o elo mais forte da corrente social, percebemos que ela nunca esteve tão fragilizada. Sob o manto tecido com mil justificativas, algumas até certo ponto plausíveis como a falta de tempo (causada pelo excesso de trabalho), pais delegam para terceiros a educação integral de seus filhos. Neste cenário, deixam de passar valores básicos para uma boa composição emocional das crianças, tais como limites de conduta, ética, perseverança. Ou, pior, cultivam uma rotina distante, ou até violenta, eco de um ambiente sem fraternidade.

Digamos, porém, que a família esteja bem preservada, com o amor em dia e valores consolidados. A próxima rachadura que facilitaria o crack está no primeiro degrau fora de casa ‒ o espaço gerido pelo poder público. Nele, a impunidade e a permissividade nunca estiveram tão presentes. A falência da ordem institucional fez crescer poderes paralelos, financiados pelo dinheiro das drogas, instaurando um ambiente de terror e subserviência. Além do mais, o trabalho honesto, o estudo dedicado, em última instância a virtude, tudo passa a ser visto como uma fraqueza. Esperto, inteligente e próspero é quem está no lado marginal. Mané é o sujeito que trabalha o mês inteiro para comprar um par de calçado, pronto para ficar sem ele no primeiro arrastão.

Mas não basta atirar nas costas largas do Estado toda a responsabilidade sobre o bem comum. Se existem falhas na fiscalização e punição de agentes ligados ao narcotráfico, a incompetência estatal seria minimizada caso não houvesse consumo. E como há! Além disso, todos os crimes cometidos por usuários desesperados por dinheiro encontram na própria sociedade os receptadores, os comerciantes e os novos compradores do roubo. Cada pedra de crack acendida na esquina já movimentou uma cadeia econômica gigantesca. E isso não é uma rachadura fácil de ser mensurada, interrompida e novamente consolidada.

Por fim, a última falha que causa o crack está dentro do nosso próprio cérebro. Ironicamente, atende pelo nome de fissura. Em nome dela, tudo o que aprendemos com os pais é esquecido; o tanto quanto a escola nos fez crescer cai por terra; as recompensas do trabalho serão menores; nenhum esforço institucional parecerá suficiente. A fissura é a deusa do imediato, não mede consequências, desconhece limites, devora o homem. Antecipar-se à fissura, explicar seu preço e falar de seus riscos é evitar o triste rompimento, a quebra, o crack. Isso, ou ver nossos filhos, tão cedo, partindo.

9.4.09

Número 312

RESSURREIÇÃO

O orador prepara-se para fazer seu pronunciamento. Traz consigo um ar grave, solene. Apóia um pequeno volume de papéis no púlpito. Pousa suas mãos sobre as folhas e mira a plateia por alguns segundos. Nisso, um bêbado, ruidoso, entra e senta-se lá no fundo. O homem espera até que ele esteja acomodado. Limpa a garganta. Toma ar. Começa:
– Nosso tempo se mostra menos esperançoso do que outras épocas. Mas, creiam, houve alguns momentos em que a humanidade pareceu correr mais e maiores riscos ‒ pausa dramática. ‒ Mesmo assim, apesar dos sacrifícios, fomos salvos. E hoje, como ao contrair uma dívida, precisamos renovar nossa crença no amanhã. Nenhuma outra época é mais apropriada.
Neste momento, o orador tira do bolso do paletó um ovo. Olha para ele, gira, examina. Mostra-o a todos como quem exibe um trunfo. O bêbado, lá do fundo, diz:
‒ Já sei! É um ovo! – esperando ser ovacionado.
A assistência olha para trás e murmura em desaprovação. O bêbado desdenha com as mãos. O orador retoma sua linha de raciocínio.
– O ovo – ensina ele – está aqui para nos servir de metáfora. Ele representa a vitória da vida sobre a morte. A célula a partir da qual tudo se cria. Não importa o quanto tenhamos sofrido, o quanto estejamos abalados, diminuídos, carentes: a partir de um simples ovo, tudo o que é capital pode ressurgir. Uma vida nova, em outras condições, em outro cenário. Mais favorável, é claro!, por mais sombrio que sejam os escombros.
O bêbado ergue o braço pedindo um à parte. O orador atende com educação.
‒ Já sei! – fala, enrolando a língua. – O senhor quer nos chocar!
A plateia volta a protestar com mais veemência. O bêbado ri de sua esperteza. O orador agradece com meio sorriso, devolve o ovo para dentro do bolso, junta um cesto que estava no chão, atrás de si, e segue:
– Quando compartilhamos esse sentimento de renovação, é como experimentar a própria ressurreição. Isso, mais do que nunca, é uma garantia a ser repartida. Porém, é apenas o primeiro passo...
– Já sei! – levanta-se o bêbado. – Nunca devemos pôr todos os ovos no mesmo cesto!
Agora, já se escuta mais do que um burburinho na assistência. Não fosse um local civilizado, alguém teria partido para cima do inconveniente alcoolista. Mas o orador, demonstrando uma paciência monástica, pede silêncio e serenidade a todos. E aproveita o gancho:
– Vejam bem: crises como esta que experimentamos, meus caros, é tudo o que desejam os que não professam de nossas crenças.
Os ânimos, enfim, acalmam-se. É quando o orador retira do cesto um coelhinho branco. O bêbado levanta a mão novamente, mas não é atendido. Com o coelho no colo, e o cesto devolvido ao chão, o orador pergunta:
– E o coelho, qual a metáfora que nos apresenta o coelho?
O bêbado acena com insistência, querendo responder. O orador não lhe dá oportunidade, seguindo:
– Eu lhes digo: a fertilidade. A criatividade. A novidade. Crescer para multiplicar!
– Já sei! – salta o bêbado, sem se conter. – Já que é sacanagem, vamos nos f...
– Basta! – altera-se o orador. – O senhor passou de todos os limites. O tema de que estamos tratando é muito sério. É muito caro para a sociedade. Posso dizer... sagrado, até!
– Eu já sei! – comemora o bêbado, ainda de pé e abrindo os braços. – É a Páscoa!
– Óbvio que não! – responde o orador. – Estamos em um Seminário de Economia. Discutimos aqui as alternativas para a grave crise financeira internacional.
– Ih, então já sei... – lamenta o bêbado, mantendo os braços erguidos. – Vocês salvam a própria pele, e cruz vai sobrar para mim.

1.4.09

Número 311

1964

O ano de 1964 é, para mim, impossível de ser esquecido. Mesmo que eu quisesse, lá está ele na certidão de nascimento, na carteira de identidade, de motorista e em todo e qualquer cadastro que venha a preencher. Sim, foi quando eu nasci. Por outros motivos, os meados da década de sessenta estarão para sempre na lembrança do povo brasileiro. Brotaram ali os denominados anos de chumbo, a ditadura militar, nosso mais recente período de rompimento democrático. E, entre a alegria de comemorar o aniversário e a tristeza ao lamentar os fatos históricos, o sentimento que me surge com mais força quando este ano é citado é outro: o medo.

Em 31 de março de 64, data convencionada para marcar o início do levante que tirou Jango da presidência, eu ainda estava na barriga da minha mãe. Teoricamente, nada poderia temer. Mas a vida me deu mostras de que fetos e recém nascidos são criaturas reféns dos sentimentos da genitora. E, na época, minha mãe tinha muito, muito medo. A empresa onde meu pai era diretor estava na lista de estabelecimentos a serem incendiados por militantes de organizações inspiradas em ideologias totalitárias de orientação esquerdista. O patrimônio obtido a partir do trabalho do meu avô, que chegara do interior à cidade de Porto Alegre aos quatorze anos de idade com uma única muda de roupa na mala, corria o risco de virar cinzas. Daí o justificável medo.

Dito isso, não deixo a menor sombra de dúvidas de que fui criado em um lar apoiador das ações militares. Ou, simplificando, de direita. Meu pai viveu defendendo a tese pela qual os quartéis, aqui e em outros países da América Latina, livraram suas nações de grupos financiados, treinados e submissos à Cortina de Ferro, e que pretendiam transformar nossa ordem política e social em uma enorme Cuba. E, isso ocorrendo, ele estaria condenado à prisão ou morte. É impossível adivinhar como seria o Brasil neste caso, pois hipóteses não passam de exercícios de ficção e, assim, não se sustentam. O único parâmetro confiável é o da realidade: meu pai faleceu sem ver a ilha de Fidel abandonar um severo regime ditatorial, bastante impermeável às idéias opostas.

Na medida em que eu e minhas irmãs mais velhas fomos crescendo, todos os nossos heróis surgiam, que ironia, como homens de esquerda. Músicos, escritores, jornalistas, atores, mestres e amigos sofriam com o cerceamento de suas palavras e ações. As idéias que não habitavam no exílio se escondiam em metáforas, resistindo na medida do possível à censura. Multiplicavam-se os relatos de perseguição, morte e tortura. O livre pensar, por si, já era um libelo subversivo. E o medo de que uma palavra mal interpretada levasse a nós, ainda meninos, para os porões da ditadura, voltou para a minha casa. Afinal, claro, engrossávamos as fileiras que pediam o final da ditadura. Tudo o que condenava o Brasil a uma vida miserável de Terceiro Mundo era culpa da falta de democracia. Acreditávamos que o voto viria a nos redimir.

Por fim, a liberdade saiu vencedora. A redemocratização lenta e gradual, muito comemorada na conquista do primeiro governo civil, tanto mais quando pelo voto direto, sepultou o silêncio. Raiou a esperança já desejada e prometida em verso e prosa. Os militares voltaram para a caserna e o medo de emitir opiniões esmoreceu. O cálice de vinho tinto de sangue foi afastado; a noite terminou; o sol nasceu; as flores venceram os canhões. O Parlamento redigiu a Constituição Cidadã. O voto colocou, então, um a um, os principais nomes e partidos de esquerda nas diversas esferas do poder.

Hoje, trinta e um de março de dois mil e nove, no momento em que escrevo esse texto, a ditadura militar volta a ser pauta. Na mesma edição de jornal, pipocam notícias nada abonadoras sobre os poderes Executivo e Legislativo. A violência e a roubalheira crescentes denunciam a falência do Judiciário. Como em um círculo vicioso, o medo renasce em meu coração: o calote vexatório apresentado pela democracia brasileira redime, justifica ou permite cogitar governos de exceção? Temo, profundamente, que alguém responda que sim. Quero morrer acreditando que o voto continuará a ser a melhor maneira de impedir que a liberdade, cujas asas estão abertas sobre nós, defeque em nossas cabeças.