15.4.10

Número 365

UMA HISTÓRIA DE AMOR

Padeiro de ofício, ele deixava a cama na madrugada para dar forma ao perfume nosso de cada manhã ‒ pão francês quentinho. Tinha o cabelo moreno, levemente ondulado de tão farto. Olhos escuros como o carvão, pele um pouco tostada. As mãos fortes e o sorriso jovial e confiante, atributos capazes de superar as agruras do trabalho árduo, imediatamente chamaram a atenção dela. Então a moça, dona de caprichoso pomar, adicionou uma quadra ao trajeto pelo qual, cotidianamente, levava uma cesta de frutas ao pároco da Matriz ‒ tudo para cruzar diante da loja de pães.

A jovem era linda como uma eterna primavera. A beleza saltava discreta ‒ mas sensualmente ‒ pelas poucas fendas do vestido sempre muito claro. O cabelo se mantinha domado em um rabo de cavalo e voava para a esquerda e para a direita no deslocar brejeiro. Sua tez, macia como o pêssego e rosada como as maçãs, trazia convite de morangos frescos. Os olhos, de tom esverdeados, lembravam uvas brancas; e a boca, quase vermelha, cintilava como uma cereja. Diante da padaria, o pescoço pendia como galhos ao vento, espichando a vista.

Compreendendo o recado do insistente olhar, o padeiro adiantou-se em aguardar a moça na calçada com sua melhor oferta: trocar dois pãezinhos por uma das laranjas da cesta. Ela, subitamente tímida, recebeu o mimo, agradeceu e sumiu pela esquina em passo apressado. Isso no primeiro dia, pois, dali em diante, ela já vinha fagueira, tendo sua fruta em mãos, brilhante como o sorriso. E, com o passar do tempo, deixava a frente da padaria com um número cada vez maior de pãezinhos, ainda quentes e crocantes. Então, ela abocanhava a delícia diante dele, gemendo de prazer, antes de sair correndo para a igreja.

Um dia, de surpresa, apareceu um cliente novo na padaria. Alguém de fora da cidade, com certeza. E levou um número considerável de pães, afetando a previsão do comerciante. Temendo deixar muitos clientes desatendidos, o padeiro recusou, embaraçado, a oferta da suculenta laranja de sua amada. Explicou o ocorrido, lamentando não poder abrir mão de um só pão para venda. Ao mesmo tempo, não queria aceitar o presente sem oferecer sua contrapartida. A dona do pomar seguiu o caminho batendo os pés ‒ considerara o gesto como uma ofensa. Da esquina, ao ouvir um até amanhã desenxabido, atirou a laranja no padeiro.

Nas manhãs seguintes, o caminho para a Matriz seguiu a lógica do menor esforço. Desesperado, o padeiro mandou entregar um pacote de presente na casa onde morava o pomar: cinco pães e uma flor. Foi assim durante uma semana, dez dias, um mês, meio ano. Estranhamente, os pães nunca voltavam. Fruta que é bom, não mais aparecia. Mas o jovem padeiro, com a força de suas mãos, mantinha a oferta sem relaxar ‒ tinha fé de que um dia ela voltaria a passar diante da padaria, saltitante, com sua laranja nas mãos e o mesmo sorriso no olhar.


O marido não pergunta a razão de terem à mesa pães tão saborosos sem jamais passarem sequer perto da padaria. Os dois simplesmente saboreiam aquelas delícias sempre chegadas ao alvorecer, trazidas por rapazolas variados pedalando ligeiras bicicletas. No centro da mesa, contumaz, uma nova flor oferece suas cores. O homem também não repara o olhar distante da jovem esposa, mirando aquelas tantas árvores do pátio teimando em florescer e frutificar. O único que conhece a história é o padre, mas guarda segredo de confissão. E já não sabe mais como orientar a penitência para um pecado que sai do forno a cada dia, todos os dias.

9.4.10

Número 364

RESGATANDO AMÉLIA


Tudo que você vê, você quer
Ai meu Deus, que saudade de Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Ataulfo Alves & Mário Lago


Se há algum consenso, este é de que Amélia, a tal mulher de verdade eternizada pelo samba de Mário Lago e Ataulfo Alves, não existe mais. Ela, dependente, conformada e sem vaidade, hoje foi substituída por outra, super atuante, realizadora e, ainda assim ‒ ou até por isso ‒, vaidosa. Porém, mesmo correndo o risco de ser chamado de machista, considero a ode, à época, até justa, pois estava atrelada ao paralelo com um terceiro tipo de mulher: megera insensível, fútil e mimada. E as virtudes de Amélia, reconhecendo que virtude não seja o termo mais adequado, nasciam tão somente da comparação entre as duas.

Mas, se morreu Amélia (e acho que sim), teria desaparecido também sua imagem invertida, motivo dos ais de saudade? Lendo os versos com atenção, as melancólicas queixas do homem com relação à nova companheira bem que podem ter permanecido dentro de casa, apenas se deslocando para os filhos. E as vítimas da tirania que fez nascer o lamento de Mário Lago agora são os pais ‒ tanto compreendidos como o casal, quanto, separadamente, pai e mãe.

Mesmo parecendo, esta tese não é de todo estapafúrdia. Afinal, é fácil identificar tais queixas entre nossos amigos e conhecidos: “Não aguento mais meus filhos! Nunca vi fazerem tantas exigências. Parecem não ter consciência da realidade à sua volta, sequer de nossa condição financeira. Pensam apenas em luxo, conforto e riqueza ‒ tudo aquilo que veem nas vitrines do shopping, querem. Assim não dá!” Por fim, não seria surpresa se algum pai verbalizasse em tom de desabafo: “Ai meu Deus, que saudade da Amélia!”

Calma: não creio que seja preciso exagerar, esperando que nossas crianças e jovens passem fome ao nosso lado achando bonito não ter o que comer. Ou estejam despidos de toda vaidade, e totalmente conformados: “Meu pai, o que se há de fazer...”. Porém, vários relatos de homens e mulheres vencedores revelam privações significativas em seus anos de formação. E muitas delas foram determinantes no momento de forjar o espírito para as futuras conquistas. Um prato vazio à mesa, quando nos serve de metáfora, também ensina a lutar pelo que se quer. E a dar valor para o que se tem.

A eficácia ‒ que novidade! ‒ deve estar no equilíbrio. Seria um erro brutal desejar filhos “Amélias”, mas nem por isso devemos nos submeter à tirania de quem tudo tem e tudo quer. As escolhas continuam sendo nossas, a educação sempre cabe aos pais. Com sorte, com afinco e perseverança, ganharemos a oportunidade de olhar para nossos herdeiros e dizer: isso sim é que é homem, isso sim é que é mulher de verdade!

PS.: Há algo que o Mário Lago não explicou: teria o homem deixado da Amélia, ou a Amélia dele? Na resposta, pode estar contida a data do óbito deste tipo de mulher... Arrisquem seus palpites!

31.3.10

Número 363

RÉGUA EMOCIONAL

Sábado passado cheguei numa festa com passos miúdos. Naquele momento eu estava assim, como dizer, meio deslocado. Em cada ambiente, a conversa já corria solta. Peguei uma em seu final, sem saber por onde tinha começado. Mas pouco importa, pois o que escutei fora suficiente para ficar calado por mais um tempo, pensativo. Dizia um interlocutor: “O melhor é nunca voltarmos para os lugares grandiosos de nossa infância. Basta o olhar adulto para vermos que é menor do que lembrávamos, mais feio, menos encantador. Nem os livros eu releio: prefiro guardar a impressão que tive na primeira passada de olhos”. Fui tomado de assalto – eram palavras que faziam sentido.

Quem de nós já não sofreu uma cabal decepção ao chegar num pátio em que jogava futebol – muitos em cada time – para descobrir que o espaço nem acomoda uma cancha de vôlei? Ou naquele corredor enorme na lembrança, encurtado pela perspectiva madura? Isso sem falar no muro altíssimo, na árvore frondosa, na piscina sem fim, na caverna assustadora... Esses dias, descrevia para meus filhos o barranco que havia no pátio da escola: perigoso. Será? Para o olhar infantil, os ambientes têm outra medida, jamais determinada por metros: fatores intangíveis são preponderantes. Quanto mais medo, respeito, desafio, tanto maior representavam.

Alguns adultos também eram verdadeiros gigantes. Pouco importava a altura em centímetros: valia muito mais suas atitudes, ferocidade, imponência. Intuíamos com perfeição a autoridade de alguém – crianças compreendem muitas coisas. O tom da voz também fazia a diferença, e nisso os homens sempre levaram vantagem na hora de impressionar um pequeno. Quando crescemos, ao mesmo tempo em que idosos diminuem, a mágica perde impacto. Os bem educados preservam o respeito aos mais velhos. Mas, no fundo, a relação de forças tende a favorecer as gerações que estão no ápice, e não raras vezes nos decepcionamos com a fragilidade de pessoas que julgávamos invencíveis.

O mar, as dunas, o cão feroz, a mesa de jantar. Na meninice, tudo era maior, tudo mais grave. Paisagens recobertas por uma aura de mistério, tecidas pela fantasia, impossíveis de se aferir ou compreender. Mensagens cifradas surgiam nas rodas dos amigos dos meus pais: política, economia, sexo. Tão grande quanto o pé direito da igreja ou do saguão da escola, era o mundo que desfilava naqueles discursos noite adentro. Isso até quando nos permitiam ficar acordados, o que em tempos passados era pouquíssimo.

Confesso que algumas vezes já questionei a riqueza, ou precariedade, que pude oferecer aos filhos durante seus primeiros anos de vida. Ainda mais agora que crescem diante de nós, deixando a inocência cada vez mais para trás. Talvez estivesse sendo severo demais comigo. Ou equivocado, simplesmente. Afinal, o mesmo olhar deslumbrado que um dia tive, faiscou no semblante deles até pouco tempo. E ainda falta muito para terem a fria compreensão das proporções, empobrecida por fatos, alijada de imaginação. Assim espero, ao menos...

Só sei que sábado, na festa, eu era um dos gigantes, numa casa enorme, argumentando sobre temas complicados, oferecendo e cobrando explicações dos pares. Mas apenas depois de passar pelo meu leve desconforto. Estranhamente, cheguei de calças curtas no lugar. E um pouco assustado, pois aquela conversa sobre o olhar infantil, incrível, me denunciou.

25.3.10

Número 362

A BELA ENSURDECIDA

Bela, ao nascer, encantou a todos: seria a herdeira do legado artístico da família. O pai, produtor musical, e a mãe, cantora, chamaram compositores, intérpretes, instrumentistas, maestros e programadores da TV e rádio para a festa de boas vindas ao bebê. Por algum engano, porém, uma das correspondências não chegou. Justo aquela dirigida para a mais badalada apresentadora, Ibope altíssimo e fada madrinha dos artistas de destaque. Tomando como pessoal, a fada virou bruxa e rogou uma praga: aos quinze anos de idade, Bela espetaria o dedo em uma agulha de vitrola, perdendo a voz e o ouvido musical para sempre.

O pai se desesperou. Investiu todas as economias em empresas que desenvolvessem algo que aposentasse o disco. Num instante inventaram o K7 (cassete), tipo de fita magnética popular, muito mais delgada e barata do que as tradicionais. Recebida com entusiasmo, a novidade se tornou bastante difundida. Mas quem disse que o pessoal abria mão dos discos? Que nada: até criaram o três-em-um, uma espécie de plataforma de mídias para contar com a fita e o disco em um mesmo som. Nessas todas, Bela estudava nos melhores conservatórios e entoava com precisão clássicos do cancioneiro popular.

Sem poupar esforços, o pai arregimentou cientistas ocidentais e orientais numa ação revolucionária: a utilização do laser para tocar música. Costurou com muita habilidade interesses conflitantes e ajudou a desenvolver o compact-disc. Livre do incômodo de virar de lado, o pequeno disco prometia jogar os bolachões para o lixo da história tecnológica. Estranhamente, quem rumou para a extinção foi o cassete. Mesmo assim, os discos foram sendo gradativamente abandonados e, com eles, os toca-discos e suas malditas agulhas. Bela já cantava e seduzia platéias infanto-juvenis. Cientes de que o mundo pop era restritivo, os pais impunham doses de bossa-nova, jazz e MPB mais refinada – era preciso preservar o nível da princesinha.

Como cartada final, o pai de Bela tomou carona no incremento acelerado da informática para saudar a chegada do i-pod e do MP3. Também estimulou a difusão de músicas pela internet – um tiro no pé, segundo colegas produtores musicais. Azar! O que não podia era a sua amada filha ficar sem ouvido e voz. Porém, para seu desespero, movimentos contra-revolucionários defendiam a melhor qualidade sonora dos tradicionais LPs, elevando os antigos toca-discos, ainda que raros, ao patamar de fetiche.

Ah, a adolescência... Nos exatos quinze anos de idade, Bela foi até a casa de uma amiga e enlouqueceu ao ver um belíssimo prato Gründing. Sem saber lidar muito bem com aquilo, a pobre espetou o dedo na agulha, fazendo cumprir a profecia. Com voz de taquara rachada, contou aos pais, que imediatamente entraram em depressão. A bruxa, suplantando doses elevadas de botox, sorriu vingada.

Quando tudo parecia perdido, surgiu um jovem príncipe, também produtor musical. Ele vestiu roupas eróticas em Bela, contratou coreógrafo, assessor de imagem e o melhor técnico de som com seus afinadores digitais. Também obscuros compositores e venais poetas. Comprou espaços privilegiados na TV e catapultou a moça ao estrelato instantâneo. Casaram-se e se separaram várias vezes, sempre com generosos espaços em mídia espontânea. O casal enriqueceu em poucos anos duas vezes mais do que os pais de Bela, que morreram de desgosto fulminante vendo a filha rebolar em um clipe do youtube.

A bruxa, por sua vez, não morre tão cedo: apreciadora de música, seu castigo é viver com a internet, a TV e o rádio ligados em Bela e seus clones para se martirizar pela besteira que fez.

18.3.10

Número 361

O DESEJO

Se um homem for sincero, verdadeiro e puro, talvez, um dia, quem sabe?, confesse para a mulher o que sempre desejou dela. Não será tarefa fácil. Alguma coisa em nossa carga genética, na sabedoria (burrice?) ancestral, induz os homens a jamais declararem o mais recôndito desejo à companheira, o qual nem ousa lembrar. O desejo que, quando atendido, de tão magnífico, de tão significante, parecerá pedir demais. E, pela envergadura, transformar-se no último desejo.

Aliás, para quem critica a simplicidade dos machos, temos aqui um paradoxo masculino: como pode vir a ser o último, aquele desejo jamais confesso? Ele estaria, isto sim, mais adequadamente classificado como primeiro desejo. Por isso, quando o homem encontra a mulher de sua vida, aquela que aceita sua corte e, de permissão em permissão, torna-se sua esposa, projeta nela a pessoa capaz de, na hora certa, cumprir com seu maior desejo. O problema é: existe a hora certa? E, ela chegando, haverá coragem para a revelação?

Esta constante repressão faz muito mal ao homem. Ela é presença firme em sua vida. Toda vez que ele olha para a mulher no fundo dos olhos, mas no fundo mesmo, fundíssimo, e puxa o ar para enunciar seu desejo, algo lá no fundo diz: não peça! E o homem nunca sabe ao certo se a misteriosa voz veio do fundo dela, ou estava no fundo de si. De uma maneira ou outra, recua. Adia. Volta a conviver apenas com a promessa de talvez, um dia, quem sabe?, dizer o que verdadeiramente quer. É quando ficamos mudos diante delas – nem sorrindo, nem chorando, nem nada. Tipo, abobados.

A pior notícia ainda está por vir: homem que é homem desconfia de que a mulher sabe o que ele guarda trancado na garganta, mas jamais se antecipará ao seu pedido. Ela deixa, ardilosamente, ele a cozinhar em fogo brando. Faz tudo para manter a crença de que, pedindo, será atendido. Principalmente por saber o quão difícil será para o homem proceder com sua confissão mais reveladora. Age como quem blefa: pouco se importa com o jogo que tem nas mãos, ou se estará apta a atender, enfim, ao desejo. Sua aposta é a de que, na hora H, o homem corre da mesa. Ganha sem revelar-se.

Em uma reunião de amigos homens – na volta da churrasqueira, no vestiário do campo de futebol, na mesa de bar – pode haver quem proclame: minha mulher faz tudo aquilo que eu peço. Será festejado, sem dúvida. Elas não costumam ser assim tão generosas. Cada vez menos, diga-se de passagem. Dependendo do teor alcoólico, da intimidade ou da falta de vergonha, o falastrão poderá desfilar detalhes capazes de fazer corar uma freira. Ou se gabará por ter uma vida de Paxá: ao som de suas palmas, coisas incríveis acontecem. A alegria, na certa, terminaria se um gaiato fizesse a pergunta fatal: mas, nesse tudo, está tudo mesmo? Claro que ninguém questiona. Estragar a festa, para quê?

Porém, embriagado por uma aflição inexplicável, desde que comecei a escrever, o fiz disposto a abrir o coração. Dar uma de Jesus Cristo e me imolar por todos nós, homens. Morrer (atenção que é metáfora, se acontecer algo comigo não usem esse texto como carta de adeus) para libertar a todos de seus pecados. Ou, no caso, sonhos. Jogar a dádiva no ventilador! Ainda agora, nas últimas linhas do derradeiro parágrafo, brilham as teclas capazes de revelar o secreto desejo dos homens. Vou ao sacrifício na esperança de que a amada me atenda, constrangida pelo testemunho dos leitores? Ou me calo outra vez? Força: desde a primeira hora do dia, estive com a impressão de que era agora ou...


11.3.10

Número 360

TANTAS INFUSÕES...

Surpreendo-me distraído, preparando o café da manhã. Uma ação que, de tão rotineira, assume contornos de ato reflexo. Tanto quanto lavar o rosto, fazer o café já se tornou uma prática adotada pela coletividade. Hoje, parece acontecer em cada metro quadrado do planeta. Porém, a banalidade esconde a natureza mágica e ritualística de preparar e sorver infusões. Pior: a pressa sonega dos sentidos toda e qualquer ambição transcendental que, um dia, encantou o homem diante do vapor aromático e do paladar excêntrico.

Há registros que datam a preparação sistematizada de chás no Oriente à época da dinastia Tang. Parênteses: a coincidência com determinado suco em pó pode tanto ser algo a enaltecer em termos de marketing, como a lamentar pelo sabor adocicado da bebida industrializada. Sem incidir em excessos, arrisco-me a elevar o ato de mergulhar ervas, flores, folhas ou raízes em água quente a uma escala global e tempos imemoriais. Afinal, também nossos antepassados africanos, americanos e europeus, de modo mais ou menos organizado, experimentaram suas próprias imersões e usufruíram seus resultados.

O café como nós conhecemos, arábico, nascido da observação de pastores às reações das cabras que comiam a fruta, talvez seja a infusão mais relevante da história. No passado, denominou ciclos econômicos e, hoje, elevado a status de commodity, chega a rivalizar com o petróleo em termos de representatividade no mercado mundial. Nada mal para um líquido escuro incapaz de mover qualquer máquina. No entanto, o que ele proporciona vai muito além da combustão ou da petroquímica: deleite! Além do perfume imbatível e do sabor inigualável, o café ainda oferece como subproduto uma maior disposição – há quem seja movido pela cafeína. Aposto que essa droga lícita até nos deixa mais inteligentes.

No Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai...), temos outra infusão digna de registro: o chimarrão. Há poucos dias estava, justamente, ensinando meu filho a cevar o mate. Ensinando modo de dizer: ele mesmo afirmou que, na teoria, por observação, já era capaz de montar o chimarrão sozinho. Logo, o que fiz foi apenas lhe dar a oportunidade de preparar a bebida que seria compartilhada por nós. Mesmo aquém do café em termos de perfume e intensidade gustativa, o chimarrão é, para nós gaúchos, a síntese da congregação. Enquanto a cuia roda, os homens são iguais, adquirem um caráter de pertencimento e cultivam a fraternidade. Valores dignos de serem passados para aqueles que estão, justamente, entrando na juventude.

Por falar em legado, jamais podemos deixar de mencionar o valor medicinal dos chás. Quantas dores de barriga foram amenizadas pelo delicioso remédio familiar? Outras vezes, é no amargor da infusão que repousa a solução de nossos males. E, mesmo quando a química contida na água quente em nada contribui para a cura, o carinho de quem oferta um chá pode vir a ser o placebo mais eficaz do mundo – principalmente para os reflexos da dor em nossa alma.

Como estava dizendo, surpreendi-me, distraído, preparando o café pela manhã. Mas – que dádiva! – seu perfume acabou por me libertar das grades da banalidade. Talvez esteja aí a grande importância dos pequenos rituais: nos induzir para além dos movimentos peristálticos ou condicionados. E, no beijo quente da xícara, pelo método mais saboroso: o do prazer.

4.3.10

Número 359

TODA INFIDELIDADE É BURRA

Pesquisadores ingleses colocaram mais um tijolinho na muralha que divide os homens entre fiéis e infiéis. Agora, de acordo com os números apurados, os comportadinhos tendem a ter um QI mais elevado do que os peraltas. Em outras palavras, a inteligência seria um traço mais frequente nos rapazes monogâmicos. Ou, sem perder a graça, fica revogada aquela máxima que diz: duas cabeças pensam melhor do que uma. Pela nova lógica, a sabedoria repousa em não dar ouvidos aos argumentos sempre muito urgentes da cabeça pélvica, má conselheira contumaz. Parênteses: estranhamente, tal relação não apareceu entre as mulheres pesquisadas.

De modo tão instantâneo quanto o nascimento da exceção quando proposta a regra, surgiram piadas assim que anunciaram o resultado da curiosa pesquisa. As primeiras que ouvi: burrice é trair e ser flagrado; homem inteligente jamais admite que trai (nem mesmo em pesquisas); tudo não passa de uma conspiração dos chifrudos para desqualificar os amantes da esposa. Outra foi indagar a legitimidade dos ingleses e norte-americanos para servirem de parâmetro quando o tema é sexo, o que faz muito sentido... E a melhor de todas: homem inteligente não trai a esposa porque é solteiro! A enorme repercussão da pesquisa prova, sem dúvida, o sucesso que é debater nossa sexualidade.

Nessas todas fiquei com algumas dúvidas: estaria a fidelidade tão desprestigiada nos dias de hoje a ponto de precisar outra virtude associada para enaltecê-la? Ou, ainda pior, um homem casado assumiria a fidelidade não por ser o correto em termos éticos, e sim para contemplar a opção mais racional? Valeria mais escapar de um divórcio oneroso do que corresponder verdadeiramente a um juramento de lealdade? Quando a (re)pressão sexual se distende, o senso comum aponta justamente para o caminho contrário, ou seja, anormal é aquele que fica de fora da festa, da orgia. Periga ter safado se comportando melhor por pura malandragem!

Eu, muito particularmente, continuo fiel a minha teoria que divide os homens e as mulheres nos grupos com e sem vergonha. De acordo com ela, os com vergonha são fiéis por natureza e total incompetência para agirem de outra forma. Se pularem a cerca, ou serão flagrados, ou terminarão confessando para aplacarem a torturante culpa. Já os sem vergonha ‒ que fazer? ‒ não traem por maldade: apenas respondem a uma verdade pessoal. Para eles, para elas, casos extraconjugais não representam necessariamente uma traição. Sexo e compromisso estão em gavetas separadas. Enfim, contrariando a pesquisa, a fidelidade estaria muito mais ligada aos traços de personalidade, anteriores ao casamento ou namoro, do que aos níveis de QI.

Porém, correndo sérios riscos de parecer moralista, quando um pacto de confiança existe, assinado ou não, considero toda infidelidade burra. Afinal, desobedecer regras ‒ romper compromissos ‒, sempre implica sanções. Por mais que existam justificativas (e elas sempre existem), quem trai perde a causa. Para escapar dessa armadilha, a única saída é o diálogo. No momento em que ambos refazem os pactos, casos extraconjugais deixam de ser deslealdades. Antes disso, ou quando isso não é possível, o traidor estará sempre constrangendo, ferindo e humilhando a pessoa amada.

Opa! Agora a vaca foi para o brejo: inventei de falar de amor no final da crônica. Logo dele, que tem o poder de tornar irrelevante o embate entre o instinto e a razão...

24.2.10

Número 358

FORÇA VERSUS JEITO

De todas as virtudes de um humano masculino, a mais festejada continua sendo a força. Não importa quantas ferramentas criamos para substituir, com ampla vantagem, nossos músculos: um bíceps bem formado, rijo, saliente, segue campeão de audiência. Antes que os defensores incondicionais da inteligência considerem tal premissa um absurdo, antecipo-me respondendo que nada é mais inteligente do que cuidar minimamente do corpo. E, na hora certa, mesmo com moderação ou sutileza, quase como quem pede falsas desculpas, dar uma cabal demonstração de força. É uma delícia para a auto-estima. É sexy. Dependendo, é tão útil quanto necessário.

Ser forte, porém, não deve justificar a brutalidade. Ao contrário: junto com a rigidez muscular, deve vir o controle de cada gesto. Conheço grandes homens (literalmente) cujos movimentos e, principalmente, intenções são de uma delicadeza ímpar. Outros, mirrados – intelectuais! –, são rudes e desastrados. O grande equívoco é pensar que a força física, atributo tão caro na evolução da espécie, deva ser abandonada para tornar alguém civilizado. Ou, pior, seja motivo de estereótipo. A rápida ascensão das mulheres no mercado de trabalho pode indicar, falsamente, que o homem de sucesso deva se render a um modelo de fragilidade física. Por trás dessa ideia, a falácia de que não é possível conciliar força e jeito.

Sim, existe uma rede de intrigas sendo urdida – uma hipótese – naqueles encontros no banheiro das damas: opor a força e o jeito de modo a torná-los excludentes. Elas, sabendo que na média não conseguem ser tão fortes quanto os homens, tomam para si a hegemonia da delicadeza. No fundo, almejam nossa renúncia à potência muscular para, só então, avançarmos nas tarefas sutis. Uma verdadeira castração, falsa como cinco ases. Eis um pequeno exemplo de harmonização tipicamente masculina: alguém já reparou que o homem jamais bate a porta do carro? Diferentemente das mulheres, que oscilam entre muita e pouca força, nós sempre sabemos impor a medida correta. Meninas, agora o horror: quando o automóvel não é nosso, intuímos a força ideal. Isso mesmo: existe intuição masculina!

Quando o homem, além de forte, é seguro, a estratégia muda: elas nos reduzem à condição de músculo ambulante. Como prova, as frases ditas em tom de piada, do tipo “se não conseguir destampar esse vidro de conservas, pode ir embora – foi-se a derradeira utilidade”, ou “a porta emperrou: abre ou eu chamo um homem de verdade”. Experimente dar um ultimato na esposa: pregue esse botão aqui, ou vou procurar uma mulher de verdade! Cai a casa! Logo, ou a tática de redução vale para os dois, ou não vale para ninguém. Além do mais, aposto todas as minhas fichas no marido pregando seu botão sozinho muito antes de a esposa desemperrar a porta sem auxílio (ok, peguei pesado).

Fisiologicamente, o último bastião da masculinidade é a força. Perderemos a flexibilidade, a agilidade, a resistência e até a precisão antes de nos despedirmos da força. Por isso minha revolta ao perceber que existem homens que aceitam abrir mão dela para competir com as mulheres. Que vergonha! Sejam delicados, suaves, minuciosos e, também, fortes. Curtam, até o fim da vida, o brilho que nasce no olhar das fêmeas quando vêem nossa musculatura retesar-se. Elas, lamentavelmente, não costumam creditar a nós a acuidade para reparar em algo tão sutil!

17.2.10

Número 357

RÉQUIEM PARTICULAR

Dentre os cronistas que não canso de visitar há os que me surpreendem, os que me encorajam e os que me deliciam, quando não tudo ao mesmo tempo. Destes, Paulo Mendes Campos. Dono de uma prosa contaminada até a última gota de sangue pela poesia, ele é doador universal para todos os que almejam a verdadeira literatura pelo caminho da crônica. Seus textos sempre conseguem nos fazer pensar na vida, mesmo quando se referem a um tempo e espaço que não coincidem com o nosso.

Foi o que aconteceu enquanto eu lia Réquiem para os bares mortos. Em suas orações, Mendes Campos cita casas cariocas que faleceram muitos anos antes de eu nascer, na distante Porto Alegre: Vermelhinho, Alvear, Bar Nacional e do Hotel Central, entre outras. Há ali, porém, uma saudade tão germinal que faz brotar no peito do leitor uma melancolia que se transfere para as próprias lembranças. Afinal, quem já cruzou a casa dos quarenta anos, como eu, e não viu fecharem cortinas de amados bares para sempre, não pode dizer que tenha verdadeiramente vivido.

Meu primeiro bar, por exemplo, findou incendiado depois de permanecer morto e insepulto por, talvez, uma década. Não era um bar de cidade, mas de praia, contíguo ao salão de festas do Hotel Vendaval. Ambiente em que, durante o dia, coabitavam crianças comprando picolés e adultos abrindo os serviços etílicos com horas de antecipação. À noite, na medida em que a meninada se recolhia, ele testemunhava jovens em seus preliminares jogos de sedução, incursões musicais e, claro, nos primeiros tropeços alcoólicos. Em retrospectiva, fico surpreso – até comovido – com o pessoal que nos atendia: há que se ter paciência e carinho com os calouros da vida noturna.

Em Porto Alegre, são raras as casas que frequentei na juventude ainda vivas. Uma das que mais deixa saudade é o Espaço IAB, bar do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Ponto de convergência da intelectualidade gaúcha nos anos oitenta, seus drinques tinham o sabor do momento brasileiro. Diante do mesmo cardápio, escorados no mesmo balcão, estudantes que espremiam os bolsos para pagar a noite ao lado de profissionais bem sucedidos da arquitetura, psicologia, jornalismo e artes. No IAB, minha nascente banda de jazz consolidou algo muito maior do que uma carreira musical: forjou a cumplicidade que resiste por incontáveis compassos.

Outro falecido, do qual nem a linda casa ficou para a história, é o bar e restaurante Lugar Comum. Tempo de se ir aos shows no Teatro Leopoldina, na Av. Independência e, depois, descer a pé à Rua Santo Antônio – todos para o mesmo Lugar, degustando a culinária brasileira ao som de música instrumental. Mais tarde, quando o Leopoldina se tornou o Teatro da OSPA, abriu nos altos da mesma casa a lendária Sala Jazz Tom Jobim, palco de músicos inesquecíveis. Hoje, parece que era sempre inverno quando cruzávamos a porta de vidro daquele sobrado – uma atmosfera mais européia do que tropical. Só não há mais piano ou franguinho à mineira para aquecer a alma.

Claro que falta espaço na crônica para descrever com detalhes minhas lápides. Contar das fotos que as ornamentam, falar dos nomes que ali se encontram. Não existe outro cemitério, porém, no qual se possa depositar flores em homenagem aos bares mortos: só a lembrança. E toda oração, para cada um de nós, será muito particular, fale de Porto Alegre, do Rio, Belo Horizonte ou Paris. Assim mesmo, sirvo-me de Campari com água tônica, limão e gelo. Depois, em pensamento, brindo com Paulo Mendes Campos e contigo, por todos os bares e cronistas que viveram e morreram por nós.

11.2.10

Número 356

O ÚLTIMO BREQUE

Há quem associe Carnaval com folia, alegria, fantasia. Hoje, caso voltasse a fazer versos carnavalescos, rimaria Carnaval com nostalgia. Sim, das festas de Momo, só me restaram saudade e lembranças. Também algumas boas surpresas, como descobrir que ainda sei inteiro o “Vai passar” do Chico Buarque, entre outros temas que sempre cantávamos na juventude. Pular quatro noites faz parte daquelas rotinas de outrora as quais pergunto a razão de ter, há longo tempo, abandonado. Não sendo a resposta muito fácil, ou indolor, me faço de surdo diante da questão – perdoe-me o trocadilho.

Porém (ah, porém), sempre chega fevereiro. Com ele, a onipresença do Carnaval nos veículos de comunicação. É o que basta para eu voltar 25, trinta anos e recordar alguns instantes em que o tempo deixava de fazer muito sentido – períodos de caráter imortal. Incrível era eu, com tão pouca idade, já ter a consciência de que fazia algo simples, porém sublime: gravava de modo perene na memória a sensação de transcendência da música e da dança. Sorvia com prazer indescritível a energia de um baile, de uma avenida, de centenas de almas transformando fantasias individuais em coletivas.

Neste quesito, posso me considerar um privilegiado. No bloco que construímos desde pequenos até taludos (nós em idade, o bloco em número de componentes), tínhamos um fac-símile de escola de samba: porta-bandeira, destaques, passistas, samba-enredo, bateria... Éramos bem recebidos na avenida e nos salões de clubes. E, momentos antes de qualquer apresentação, toda atenção convergia para mim, mão direita erguida empunhando a baqueta. Um lapso de silêncio e concentração, quase imperceptível para quem assistia à distância, antecedia o disparo de sons. Alertas, bloco e bateria aguardavam o rufar do meu repinique. Creia: é a mesma sensação de pressentir e segurar o inevitável orgasmo, que explodirá logo a seguir, com a potente marcação do primeiro surdo.

Pode parecer exagero de cronista dar tanta importância para um simples breque de repinique. Creditar uma elevação desproporcional à chamada de uma bateria e um protagonismo tolo para quem quer que o faça. Mas todos os que já praticaram algum esporte, seja vôlei, futebol ou tênis, sabem que o destino da bola é decidido nos momentos que antecedem o contato, quando do enquadramento corporal. Pois, igualmente, quem puxa o samba tem um único compasso para enquadrar música e músicos. Não pode falhar. Como se diz, pura adrenalina! E, ainda por cima, é preciso impor para todos aquilo que se costuma chamar de intenção: o ânimo que guiará ritmistas, passistas e público. Experimentar essa responsabilidade, chamando-a para si com o braço erguido, é uma das emoções que deixaram saudade. Sem dúvida, foi uma honra.

Talvez seja um pouco melancólico ficar recordando as passagens que, pela força e representatividade, tornaram-se eternas na vida da gente e nunca mais serão reprisadas. Mas nem tanto. Triste seria nada ter de bom para lembrar. Sim: quando o assunto é Carnaval, há quem só fale do pisão no pé sofrido em uma noite, da moreninha que lhe escapou no girar do salão, do amor que saiu abraçado em outro alguém, da ressaca depois de passar da medida na cerveja. Isso é circunstancial, acontece para todo mundo e não foi diferente comigo. Lamentável, doído de verdade, é saber que também puxei, no breque final de repinique, o encerramento de uma Era. Um caso raro em que o samba desandou logo depois do bloco se calar.

3.2.10

Número 355

O CARINHA DE PAU

Era uma vez, em um reinado de faz-de-conta, um soberano falastrão. Pouco ou nada produzia, diziam seus detratores. Na verdade, nem mais nem menos do que seus antecessores e, quem sabe, seus sucessores. Porém, quando o monarca abria a boca para falar, falava e dizia. Tinha em seu discurso aquele não-sei-o-quê capaz de fazer a diferença. Vindas dele, todas as palavras ganhavam sentido e pareciam fatos. Atacava e era inatingível. Mesmo as (muitas) gafes revertiam a seu favor. Sua lábia era reconhecida em reinos distantes.

Um dia (sempre que o narrador começa uma frase assim, o protagonista treme de medo), sem nenhuma explicação ou doença, o rei falastrão ficou afônico. Tudo começou com uma rouquidão suave, apenas em pronunciamentos oficiais. Agravando-se, atacou em entrevistas para rádio e TV. Soaram os alarmas quando ela apareceu nas inaugurações de suas obras. Mas aí foi tarde: certa manhã, o rei acordou sem palavras.

Seu porta-voz (cargo que daquele dia em diante passou a auferir adicional ironia) se adiantou em minimizar o problema. Um homem é muito mais do que suas cordas vocais, disse em alto e bom tom. Uma junta médica havia sido escalada para fazer uma bateria de exames. Outros monarcas já ficaram sem palavras, disse sem que ninguém estivesse disposto a pesquisar se era ou não verdade.

Imediatamente a mudez real causou um alvoroço na corte. Como fariam para ser entendidos pelo povo de agora em diante? E, não sendo a resposta fácil, muito menos a cura do misterioso mal que se abatera sobre a primeira garganta, o reinado começou a sentir as mudanças. Era como se as obras, os benefícios e os projetos acontecessem tão somente nas palavras de seu líder maior. Sem elas, o reinado estava nu.

O secretário da educação deu uma idéia: que o rei escrevesse o discurso com suas próprias palavras para um deles ler. Em dúvida, pediram ao autor que servisse de cobaia. Diante de dezenove reitores das universidades do reinado e dos arredores, o secretário da educação apanhou o discurso. Olhou bem. Leu um pouco em silêncio. Engasgou. Transpirou. Desistiu. Ele não poderia ler o que estava escrito ali. Não daquele jeito. Dificilmente seria demitido, mas temia por sua reputação.

Uma revolta popular começou quase calada. Todos diziam que a corte, ao contrário do rei, não falava o que fazia ou fazia o que falava. Os burgueses começaram a adquirir moeda estrangeira e investir os lucros além muros. O povo partiu para as compras com medo de desabastecimento e, rapidamente, subiu a inflação e a inadimplência. Com elas, os juros. Séculos de economia saudável estavam em risco. A própria monarquia se mostrava fragilizada. Nessas todas, o rei mudo.

Então, em cadeia nacional, o soberano apareceu com um bonequinho de ventríloquo, a sua cara, sentadinho no colo. O porta-voz perguntou: Majestade, o boneco fala pelo senhor? Imediatamente, sem que o rei desfizesse o sorriso, o boneco disse que sim, isso mesmo, podem acreditar! E logo começou a discursar, sacudindo sua cabecinha de pau ora para a direita, ora para a esquerda. Alívio na corte. Apavorada, até mesmo a oposição se uniu para exaltar o grande líder e o pequeno falante. O reinado estava salvo! A economia estava salva! A monarquia estava salva! A vida de todos voltaria a melhorar. Principalmente a do bobo da corte que ganhara o concurso de imitador real, pago a peso de ouro por suas palavras e, principalmente, pelo seu silêncio.

27.1.10

Número 354

MUNDO PET

Eram amigas desde os tempos de escola. Não poderiam ser mais diferentes entre si: uma era alta, outra risonha, outra médica, outra comia as unhas... Porém, laços invisíveis de afeto e confiança faziam com que estivessem, uma vez por mês, diante de taças e mais taças de espumante. Chamavam o encontro de nossa pequena extravagância. Com o avanço das horas, o papo tendia às confissões. Naquela noite, Adelaide (os nomes estão todos alterados para evitar processos) estava muito queixosa.

– Meu marido é um cachorro! Vocês têm um em casa, por isso sabem do que estou falando...

Fez-se um silêncio prolongado. Cada uma retornou ao lar por instantes, em pensamento, para tentar acompanhar a linha de raciocínio. Ophelia, com sorriso fugidio, lembrou-se de que o seu atual não poderia ser mais meigo. Nos últimos anos fora o responsável pelos mais encantadores momentos de sua vida. Bastava uma troca de olhares para que ela recebesse um carinho. Logo tratava de retribuir e, em frenesi, já se viam rolando pelo chão.

Emília admirava muito o seu pela retidão de caráter e objetividade. Nunca traíra sua confiança, fosse no dia-a-dia, fosse em momentos de exceção. Algo que perpassava o conceito de subserviência: mesmo quando ela viajava para os inevitáveis congressos, chegando a se ausentar por mais de uma semana, era certo que nada em casa aconteceria fora do esperado. Ao contrário: havia um zelo incorruptível por tudo o que se estabelecera na partida.

Ursula quase deixou escapar uma gargalhada. Nenhum outro poderia ser mais divertido do que o seu. Meio palhaço, meio malabarista, comportava-se como se todos em sua volta fossem uma platéia. Especialmente crianças e visitas. Muito especialmente se fossem crianças, as visitas! Acontecia de passar um pouco dos limites de vez em quando, a ponto de perder a graça... Mas era só uma questão de pedir para que parasse quando já estava perturbando.

Olga sentiu muita saudade do seu... Falecera há menos de um ano, o luto sequer estava completo. Estiveram juntos por tantos anos que se conheciam pela respiração. Quando ela chegava em casa depois de um dia estressante, bastava sentar ao seu lado por minutos para abandonar os problemas. Mesmo quando ele adormecia enquanto olhavam TV, um absurdo, diriam tantas, era repousando docemente a cabeça em seu colo que o fazia.

Ernesta nutria, secretamente, um pouco de medo do seu. O que não era, exatamente, segredo para ninguém, pois todas as suas amigas tremiam diante dele. Ele era agressivo, temperamental e grande. Muito grande. O lado bom é que ninguém, nunca, meteu-se com ela ou com os filhos. A figura impunha respeito! E sua agressividade jamais foi dirigida à família. Ao contrário, a fúria era sua maneira de ser atencioso.

O silêncio foi interrompido pela própria Adelaide, retomando o pensamento que interrompera para servir-se de mais espumante:

– ... um verdadeiro cachorro, o Adamastor! Acreditam que teve o desplante de chegar em casa fedendo a perfume e cigarro, e me dizer que tinha ido à missa depois do trabalho?

Todas se entreolharam. Ah, ela estava falando do marido!? Talvez fosse o caso de suspender a próxima garrafa...

20.1.10

Número 353

MÚSICAS QUE EMBALAM SONHOS


Pobre, quando pensa, é sonho.
Dalva Damiana de Freitas


Sou praticante do zapping seletivo: diferente do simples subir e descer pelos canais de TV por assinatura, espio as emissoras mais ligadas à cultura em busca de boas surpresas ‒ e as encontro com frequência. Foi o caso de quando selecionei o Canal Brasil e o rosto de Naná Vasconcelos encheu a tela. Passava (lamentavelmente, já da metade para o final) o documentário Diário de Naná, dirigido por Paschoal Samora. Uma viagem do percussionista pelo Recôncavo Baiano em busca da sonoridade de raiz de nossa música popular e, nela, do Samba de Roda. A parada foi obrigatória, pois, além de ele ser um dos mais destacados e sublimes músicos brasileiros da atualidade, desde a juventude aprecio os múltiplos sons de Naná.

Naquele instante, era entrevistada Dona Dalva do Samba, uma compositora descendente de escravos, nascida na cidade de Cachoeira, interior da Bahia. Idosa, porém muito lúcida, ela explicava seu processo de criação: escutava uma palavra aqui, outra acolá ‒ tudo anotava. E dormia com lápis e caderno debaixo do travesseiro, para não perder as ideias que vinham. Dando (e provocando) risadas, Dona Dalva disse: “Naná, sabe como é: pobre, quando pensa, é sonho!”. Corri para meu próprio bloco de notas e registrei a frase na hora, pois, a exemplo dos compositores, cronistas também vivem de palavras escutadas aqui e acolá.

O aforismo de Dona Dalva, gracioso e espontâneo, permaneceu dançando em minha mente, girando ao som do samba que ela entoava com o luxuoso acompanhamento de Naná Vasconcelos. A frase explicitou com arguta ironia o preconceito de grande parte da sociedade com relação ao conhecimento e à arte de autêntica raiz popular, especialmente indígena e africana. Concluí que, em muitas oportunidades durante a vida da artista, teria causado surpresa a qualidade de sua obra, dada a humildade de sua origem. Fenômeno que ela reconhece não ser, nem de perto, uma exclusividade sua ‒ generaliza como normal aos “pobres”. E nessas todas, eu pensando: para criar com tamanha limpidez, eu teria que nascer de novo...

Segui assistindo o documentário até o final, embevecido com a cantoria do Samba de Roda e com as composições daquela senhora que, reunindo outras mulheres, utilizava as taquinhas do trabalho na antiga charuteira Suerdieck (pequenos tocos de madeira) para acompanhamento da música. Depois, quando quis conhecer mais sobre ela, soube do recente reconhecimento do Samba de Roda do Recôncavo Baiano como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas pra Educação, Ciência e Cultura. Tive até vergonha de não ter sabido, muito antes, quem era Dalva Damiana de Freitas.

Felizmente, instituições como a Associação de Pesquisa em Cultura Popular e Música Tradicional do Recôncavo, e Associação Cultural do Samba de Roda "Dalva Damiana de Freitas" trabalham de modo incansável na preservação e divulgação da música típica desta região brasileira. Cada vez mais, também, atraem a atenção de pesquisadores do Brasil inteiro e mesmo de outros países. Combatendo todas as dificuldades orçamentárias da área da cultura em nossa nação, essas pessoas provam que os pobres, quando pensam e realizam, também fazem isso parecer um verdadeiro sonho.

14.1.10

Número 352

O MELHOR DOS MUNDOS

Muito já foi dito sobre a superprodução cinematográfica Avatar. Há quem comente apenas o fantástico senso de oportunidade de James Cameron, abordando o tema ecológico bem no momento em que o assunto esquenta de vez no planeta (com o perdão do trocadilho). Outros destacam a revolução tecnológica desta obra em 3D, promessa de ser divisor de águas para o cinema. Como a história não é nem de longe a primeira a ser ecologicamente correta, além de nascer fadada a ter seus avanços técnicos suplantados em poucos meses, decidi me concentrar naquilo que deu o nome ao filme: os tais avatares.

A palavra avatar vem do sânscrito (avatara) e significa, originalmente, encarnação. Ou, para ser mais específico, o espírito que ocupa um corpo carnal. Por um deslocamento muito curioso, o termo foi adotado na internet para dar o nome à representação pictórica de alguém no ambiente virtual. Isto é, uma desencarnação! Bom, se no induísmo o avatar é deus que vira gente, quando invertemos o sentido, é muito justo que o homem almeje nada além da divindade. Na virtualidade, tímidos ficam extrovertidos, sacanas se transformam em anjos, avaros esbanjam e pobres enriquecem. Ao nosso pequeno deus virtual, tudo é possível.

No caso do filme, os avatares são clones da espécie Na’vi, nome dos nativos da Lua Pandora, criados pelos humanos para encarnarem e, a exemplo da web, despirem-se dos pecados humanos. Afinal, os seres azuis são de uma pureza de dar inveja aos índios românticos! Vivem em perfeita harmonia com o exuberante meio ambiente e não matam uma pulga sem uma finalidade nobre ‒ e, mesmo assim, ainda oram pelo animal falecido. Organizam-se de modo a respeitar hierarquias políticas e religiosas (com um viés monárquico) e curam seus males usando a força da natureza. Também já superaram as picuinhas internas entre as diversas tribos. Lucro, essa coisa tão Hollywoodiana, os Na’vi parecem desconhecer.

Ainda que fosse apenas a redenção de todos os males do espírito, o que não é pouco, quando um ser humano encarna seu avatar no filme de Cameron, torna-se também um coquetel de nossas melhores virtudes físicas. Porque os Na’vi são todos esbeltos como uma top model, altos como um jogador de basquete, ágeis como nossos melhores ginastas, rápidos como um corredor de 100m e resistentes como um maratonista. Também são hábeis como um jóquei, fortes como um alpinista, precisos como um soldado... São, enfim, tudo de bom. Nem precisa ser paraplégico para desejar a troca de corpo e viver no avatar de uma vez por todas!

E é justamente aí que o Na’vi torce o rabo: a mensagem final, de um outro mundo possível, só se concretiza com a expulsão dos homens do paraíso, digo, de Pandora, e o herói, desencarnado, abdicando definitivamente de sua humanidade. Em outras palavras, nós (humanos) perdemos o minério, a guerra, o direito de habitar essa formosa lua e o líder que, por seu exemplo, poderia ser o agente de mudança de nossa consciência. O único que ganhou o direito de viver como um deus foi aquele homem que deus se tornou: belo, puro, sábio, ágil e, também, morto.

Está tudo muito bem na bilheteria, está tudo muito bom nos efeitos especiais... Mas, em se tratando de um libelo ecológico, bem que merecíamos um desfecho um pouco menos maniqueísta. Daqui a pouco vai parecer que vale mais a pena nos mudarmos para avatares virtuais, todos tão lindos e bacanas, e onde não há risco de frustrações ou efeito estufa. Ou morrer de uma vez, pois, no céu de São James, vamos casar com a filha do cacique.

6.1.10

Número 351

ANO AUSPICIOSO

Quem se arvora na arte (ciência?) de fazer previsões, antes de arriscar palpites, detém-se na leitura de sinais. Isso vale para todas as atividades que sobrevivem da necessária antecipação, tais como investidores da Bolsa de Valores, meteorologistas, cartomantes, consultores e professoras de pré-escola. No caso, entenda-se como sinais tudo aquilo que pode ser indicativo de consequências futuras, para o bem e para o mal: um silêncio, um movimento súbito, uma coincidência, uma novidade etc.

Fora do âmbito profissional, é bastante comum que façamos igual em nosso dia-a-dia, com ênfase em dezembro. Afinal, é sempre útil conseguirmos vislumbrar um ou dois movimentos adiante do destino. Isso, claro, quando ele não nos prega peças, blefando escancaradamente... Na fé em que o destino tenha mais o que fazer do que me sacanear, passei uns dias de olho ao redor, garimpando sinais capazes de me preparar para o ano de 2010.

Como exemplo, vejam o que ocorreu na janela da biblioteca – pela qual vejo o mundo enquanto escrevo. Falhas de acabamento no entorno da esquadria (pelo lado de fora), constatadas pela esposa, explicaram a entrada de água quando a chuva se fazia acompanhada de ventos sul e sudeste. Por conta disso, neste inverno e primavera, muitos temporais nos tiraram a paz. E choveu muito em 2009! Sempre que eu julgava que a parede estava suficientemente seca para aplicar silicone, chovia antes de eu realizar o trabalho. Foram uns três meses nesse chove-e-molha. Com a chegada do verão, e a nova posição do sol, enfim apareceu a oportunidade.

Terminei o serviço moído e com as mãos doendo: o trabalho precisou ser feito por dentro, uma vez que a biblioteca fica nos altos de um sobrado, e com uma posição arriscada e desfavorável. Parece ter ficado bom! Digo parece porque, incrível, nunca mais choveu. Aliás, desde a mudança de estação, chove pela primeira vez agora, mas com vento sudoeste – nenhuma gotícula no vidro da dita janela. Isso é um sinal evidente de que todas as minhas necessárias providências no ano que findou demorarão um pouco para comprovarem sua eficácia. E, mesmo assim, para que isso de fato ocorra, precisará continuar chovendo em minha horta!

Outro exemplo está intimamente ligado ao Natal. Enquanto todos esperam a chegada do Papai Noel, eu espero a maravilhosa Salada Waldorf da minha amada. Mulher ardilosa (já sei, são sinônimos), ela me cozinha o ano inteiro com a promessa da iguaria de dezembro. E, enquanto eu reviro os olhos, ela diz, suavemente: “Se tu gostas tanto, nem sei porque não faço a salada durante o ano”. Doce mentira. Como prova de fidelidade e aprendizado de um dos segredos do amor – a paciência –, nunca peço Waldorf em restaurantes nem faço por minha conta. Quem disse que é fácil manter os encantamentos do matrimônio?

Pois, para a minha surpresa e deleite, além do jantar natalino, tivemos Salada Waldorf na ceia de Ano Novo. Tilintem os cristais, desfraldem-se os guardanapos, estourem as rolhas: para mim, isso é o mais claro sinal de um 2010 bastante auspicioso. Um ano de fartura, um ano de encontros, um ano de prazer. Mesmo que tragédias sigam acontecendo (horríveis), políticos nos decepcionando, economia em tênue equilíbrio, duas saladas Waldorf em questão de uma semana é promessa de boas novas. Isso, ou o destino está me ofertando a mais cruel das armadilhas...

PS: 23/12, fim de tarde, supermercado entupido. Na enorme fila do caixa, uma senhora me pergunta por que enfrento isso com um único molho de aipo nas mãos. Porque já não havia aipo (ingrediente chave na Waldorf) em outras duas lojas, explico. Ela recua um passo. Olha-me de cima a baixo. Não sei se teme ou respeita. Na dúvida, muda de assunto.

29.12.09

Número 350

TRIBUTO AOS PESSIMISTAS DE PLANTÃO

Coisa irritante é essa época do ano, não acham? Parece que todo mundo resolveu ficar feliz, com uma alegria sem motivo ou, pior, movida apenas pela convenção do calendário. Será que esse coro dos contentes não vê que dezembro e agosto são iguais? E maio e setembro e fevereiro e julho... Só porque resolveram virar o ano nesse período, ficam impondo bem-dizeres. Quem aguenta?

Aliás, espero que 2009 vá embora de uma vez por todas. Êta aninho sem graça! Quando choveu, molhou tudo. Mas não ficou nisso: alagou. Em algumas regiões, consta que foi o ano mais chuvoso em cem anos. Até parece que os outros 99 deram mole para nós: esses caras só olham o lado positivo da estatística! E o sol, então? A camada de ozônio anda uma peneira velha. Com isso, ficou impossível ir para a rua de dia. Nem durante a chuva, pois as nuvens nos molham, mas não barram os raios daqueles raios UV. Saiamos à noite para sermos assaltados!

Dezembro vira uma verdadeira gincana. Não bastasse tudo que se tem para fazer normalmente, ainda tem o Natal. E as mensagens de Natal. E os espiritualizados lembrando todo mundo que as Festas existem para elevar o pensamento. E os lojistas lembrando que o crediário existe para elevar nosso poder de compra. E as financeiras lembrando que os juros existem para elevar seus lucros. E os filhos, netos e sobrinhos lembrando que os presentes simbólicos (maneira educada de dizer baratinhos) existem para elevar nossas culpas. E quando o presente é caro, dizem que também é por culpa da culpa!

É nessa época, também, que tiramos férias. Coisa horrível! Férias é igual a domingo: só existe para lembrar que dura pouco e no outro dia é segunda-feira. Quem vai para o Litoral, fica com inveja dos que estão na Serra. Quem está na Serra, sente falta de um banho de mar. Quem fica na cidade não tem o que fazer, nem amigos para conversar. E, se resolve dar um pulinho na praia no final de semana, fica parado na estrada reclamando que os outros tiveram a mesma ideia. Para viagens, caos nos aeroportos. Roteiros alternativos são sinônimos de mosquitos e banho frio. Aí, o melhor continua sendo ficar em casa: só assim se pode reclamar o ano inteiro que não se fez nada durante as férias.

Quem acha que está ruim, esqueceu dos otimistas. Os queridos que lotam nossa caixa de mensagem com desejos irrealizáveis. Dinheiro, sucesso, amor, amizade... Até parece que o Ano Novo vai ser diferente. Só porque é novo, não quer dizer que não venha bichado. Pensando de modo realista, as chances de baterem no seu carro ao furarem o sinal vermelho continuam as mesmas. Ou melhor: se não aconteceu ainda, só aumentaram! A mulher pode sair de casa, o marido arrumar uma amante, o filho rodar no colégio. 2010 é uma caixinha de surpresas desagradáveis, creia. Está só esperando o dia primeiro para nos decepcionar.

Estou exagerando, é?! Ah, não é bem assim? Parece que eu estou tirando onda, ou disfarçando muito mal o meu otimismo, reclamando de forma caricata? Quer dizer, então, que só vocês podem se queixar e lotar nossos ouvidos de lixo? Antes de escrever, deveria ter desconfiado que é impossível agradar vocês, os pessimistas de plantão.

Agora me afundo de vez: FELIZ, MUITO FELIZ ANO NOVO!

22.12.09

Número 349

NOEL NÃO EXISTE

Eu sei que essa polêmica sobre Papai Noel existir ou não é tão velha quanto piada sobre peru de Natal. Porém, me dei ao trabalho de recolher evidências mais do que suficientes para convencer até mesmo os mais crédulos de que o Bom Velhinho, por mais doloroso que seja, não existe. Vejamos:

Primeiro, quem acharia plausível que um garoto propaganda (e garoto, aqui, soa com muita ironia) ostentasse tamanho sobrepeso em uma época de evidente culto ao corpo? Como pode essa figura ilustre ainda não ter sofrido alguma pressão das entidades ligadas à saúde para deixar de estimular o acúmulo de gordura abdominal, fator de risco às doenças cardiovasculares? Bom velhinho, de verdade, mantém o peso sob controle através de dietas orientadas e exercícios moderados. Mesmo assim, Noel segue brilhando como um ídolo. Por isso, afirmo: esse cara não existe!

Outra: nenhuma de minhas roupas, por mais clássicas que sejam, sobrevive ao tempo sem as máculas da mudança de moda. Seja pelo corte, pelo tecido ou caimento, tudo na indústria do vestuário pede atualização. Sem parar, crescem e diminuem as ombreiras; alargam e estreitam as golas dos casacos e as bocas das calças; sobem e baixam as cinturas; cores vão e voltam... Só o jaquetão vermelho do Papai Noel, suas calças largas, cinto preto de fivela quadrada e gorro (gorro!) de pompom seguem firme. Nem os uniformes dos times de futebol, cuja expressão “uniforme” presumiria longevidade, deixam de ser atualizados. Logo, esse fenômeno fashion natalino, que atende pelo nome de Noel, só pode não existir!

Mas não para por aí. O que diriam meus amigos se eu ainda dirigisse o Corcel 1977 com o qual prestei exame de motorista? Carro muito bom para a época, típico de classe média, não tinha injeção eletrônica, freios ABS, air-bag, vidros elétricos, desembaçador, ar-condicionado, cintos retráteis, apoio de cabeça nos bancos e outros inúmeros itens normais na atualidade. Automóveis como esse foram batizados pelo Collor de “carroças”, lembram? Só Papai Noel não avalia a possibilidade de aposentar seu velho trenó movido por força animal. Então, já viram um homem que jamais pensa em trocar de veículo? Realmente, não existe!

E a barba? Se não for por preceitos religiosos, ninguém mais usa barbas longas hoje em dia. Lembrou do Fidel? Eu também! Mas, sejamos justos: o líder cubano não é parâmetro seguro para quem deseja defender tendência de comportamento. Se o Papai Noel existisse de verdade, já teria sido aconselhado a aparar a barba, como bem manda o visual do momento. Ou mesmo raspar, o que faria Noel rejuvenescer uns cinquenta anos... Além do mais, as mulheres pós-feminismo, seguras do que desejam, andam pouco pacientes com os companheiros barbudões. E um camarada que resiste firme e por tanto tempo à pressão feminina para uma aparadinha na barba não existe.

Por fim, minha tese ganha força lembrando a inquietação que a letra da antiga canção natalina já nos trazia: “Como é que Papai Noel, não esquece de ninguém?”. Do tempo em que foi composta para cá, a população humana cresceu aos milhões, espalhada em cada canto do planeta. A medicina, por sua vez, demonstrou para onde vai a memória com a chegada do Alzheimer. E, nessas todas, como crer que, “Seja rico, seja pobre, o bom velhinho sempre vem?” Nada me faz pensar que alguém desligado de sua saúde, barba por fazer, que não se importa em vestir sempre a mesma roupa e nem pensa em trocar de veículo, vai investir num computador. Avaliando sem paixões, com a quantidade de trabalho que dá atender todas crianças, alguém que confia simplesmente na memória, sinceramente, existe?

PS para o caso de o Noel estar lendo: velhão, você não existe, mesmo!

18.12.09

Número 348

NÃO PERDI: SÓ NÃO SEI ONDE ESTÁ

Existem duas situações que, mesmo diferentes entre si, quando vistas de modo simplificado, se irmanam. Refiro-me a perder as coisas e não saber onde elas estão. Aconteceu comigo esses dias: minha mulher encontrou órfã, na área de serviço, a capinha do recém comprado guarda-chuva portátil. Perguntou onde ele estava. Respondi que não sabia. “Depois reclama quando as crianças perdem as coisas”, ela me repreendeu. Em minha defesa, disse que não havia perdido, só não sabia onde ele estava. Gargalhando, ela não aceitou meu argumento. Porém, sustento que há diferenças.

Por exemplo: se por distração, desleixo ou mera interrupção da tarefa (toca a campainha), eu deixo a tesoura da cozinha sobre a pia. Ato contínuo, alguém passa e a leva adiante. Quando retorno ao local, sem encontrá-la, considero que a perdi? Ou simplesmente não sei onde ela está? Ora, objetos inanimados não mudam sozinhos de lugar. Logo, se alguém pegou de onde eu tinha certeza ter deixado, simplesmente não sei onde está. Mesmo que pareça ter perdido! Nesse caso hipotético, se a pessoa que apanhou a tesoura de cima da pia foi minha esposa, nem é preciso sair da cozinha: basta ir à segunda gaveta (de cima para baixo) e lá estará. Tudo que passa por sua mão repousa no lugar. Mas, e se foi um filho?

Na mesma situação, tudo muda se vou atender à campainha levando a tesoura comigo, e a deixo sobre o chapeleiro do hall de entrada para apanhar a chave da porta ali pendurada. Agora, ao retornar à tarefa, constatarei ter perdido a tesoura. Notem: ninguém mais interferiu na ação. Restará a alternativa de refazer meus passos para tentar de algum modo encontrar o objeto perdido. Isso na hipótese de a esposa já não ter passado pelo chapeleiro do hall de entrada e ter devolvido, indignada, a tesoura para o pouso correto. Sim: aqui em casa, o primeiro lugar para se procurar algo é onde sempre deveria estar. Sou casado com a organização em pessoa.

O caso do guarda-chuva novo foi parecido com o exemplo da tesoura: saí com ele para ir à casa de um vizinho próximo. A chuva prometida não aconteceu: perde-se guarda-chuvas assim. Cauteloso, usei toda minha concentração para voltar com ele para casa. Entrei pela porta da área de serviço. Deveria estar ali, bem próximo de onde ficara sua capinha. Mas não estava. Por isso, justo depois de tanta atenção, de tanta certeza, não aceitei a acusação de tê-lo perdido. Tinha convicção: voltei com o guarda-chuva para casa, só não sabia onde estava. Gargalhadas...

Anteontem (de quando escrevi a crônica) nosso filho encontrou o guarda-chuva. Estava pendurado no cabide de parede onde há bonés, sacolas de feira, guia do cachorro, aventais de cozinha etc. Além de não ser seu lugar habitual, estava oculto pelo avental de churrasco. Em suma, nunca havia saído da área de serviço. Apanhei-o nas mãos, triunfante, e bradei: “Viu só! Eu disse que não tinha perdido! Só não sabia onde estava!” Na certa, alguém o guardou fora do lugar. No caso, se eu tivesse deixado na casa do vizinho, aí sim teria perdido.

Ao escutar meu libelo cheio de entusiasmo, o filhão disse que existe uma comunidade do Orkut com esse nome. Aliás, segundo consta, ele próprio é um dos integrantes. Está lá: “Não perdi, só ñ sei onde está”. Na foto, uma menina mergulhada em seu guarda-roupa. São 801.752 pessoas a me darem razão. Em sua maioria, devem ter sido acusadas injustamente de perder algo. Ganhei o dia!

Desde então, meu guarda-chuva portátil está, devidamente encapado, no lugar certo: no chapeleiro do hall de entrada, junto com suas irmãs sombrinhas. É onde também está pendurada a chave da porta, bem como manda o figurino. E, por falar chapeleiro do hall, se por acaso eu agora precisar da tesoura, sei exatamente onde encontrá-la.

Na segunda gaveta da cozinha, de cima para baixo. Claro!

10.12.09

Número 347

AMIGO SECRETO

Um dos mais tradicionais ritos de final de ano é o amigo secreto. Em resumo, um sorteio para definir a quem presentear entre familiares, colegas de trabalho, amigos, vizinhos ou qualquer outro grupo que pretenda festejar Natal e Ano Novo. Prenúncio de desastre, ele é adotado pelo mesmo motivo por que optamos pela democracia: dos males, continua sendo o menor. Comprar presentes para todos é muito caro. Para ninguém, antipático.

Desde a primeira vez em que participei de amigo secreto, assisti inúmeras tentativas de aperfeiçoar o método. Por exemplo, estipular um valor a ser despendido. Fruto do nobre intuito de evitar constrangimentos entre humildes e abastados (ou domar avarentos e perdulários), o parâmetro monetário já apresenta defeitos na largada: nunca há consenso. Uns acham impossível comprar algo de qualidade por R$10,00, outros preferem morrer a gastar R$50,00 nessa bobagem. Deixar em razoáveis vinte ou vinte e cinco reais pode até funcionar. Mas sempre aparece aquele maldoso fofoqueiro dizendo que determinado presente está por R$9,90 na loja da esquina, e olhe lá!

Outra forma de fazer o amigo secreto menos acidentado é o uso da lista de presentes. Nela, há um quadro em local público e, ali, cada um coloca o que gostaria de receber. Gravata, saleiro, tesoura de jardim, caneta tinteiro, xícara decorada... Aí começam a perverter: Grazi Massafera, Ferrari, laptop, a paz mundial etc. Mesmo quando todos levam a lista a sério, o risco de receber um presente horrível permanece. Uma vez coloquei na lista: despertador. Pensei que seria algo útil, fácil de encontrar, barato e com mínimas chances para o azar. Ganhei um relógio de mesa de ursinhos, daqueles que parecem esculpidos em durepoxi. Até hoje fico intrigado: devia ter uma mensagem subliminar embalada no mesmo pacote. Ninguém dá um presente desses sem segundas intenções...

Porém, o mais bizarro amigo secreto que já soube foi em uma empresa cuja gerente de RH era tão esforçada quanto inconsequente. Por uma teoria maluca, decidiu fazer um amigo secreto temático. Todos deveriam presentear os colegas com roupas íntimas. No quadro de dicas, as seguintes alternativas: convencional, moderno, avançado, sexy ou fetichista incorrigível. Depois, P, M, G ou XG. Frisson geral, comentários ruidosos, promessas de sacanagem... A empresa era só alegria enquanto dezembro avançava. Era de se tirar o chapéu para a RH, pois ela conseguira um ambiente descontraído em uma época do ano cheia de stress. Todos achavam graça, menos o Durval.

Durval recém havia começado no emprego e era muito, muito tímido. Não tinha coragem de perguntar quem era Gessy, que nunca encontrara em sua rotina. Com certeza trabalhava, como ele, direto em serviços externos. E lá estava no quadro de dicas, supostamente marcado por Gessy: sexy, M ou G – quem haveria de duvidar? Durval, filho temporão e solteiro, não fazia ideia de como escolher uma boa lingerie. Encheu-se de coragem e comprou um baby-doll azul turquesa. Tamanho G: não queria parecer vulgar.

Quando o Dr. Gessy, diretor da empresa, foi saudado ao microfone, Durval pensou que fosse enfartar. E, segundo o protocolo, o chefe precisava ser o primeiro a receber o presente (voltaria para São Paulo em poucas horas). Durval subiu ao palco e improvisou: disse que comprara o presente pensando em quanto o Sr. Gessy apreciaria retirá-lo de sua companhia amorosa. Aberto o pacote, todos passaram mal de tanto rir. O próprio Dr. Gessy se contorcia. Depois do surto hilariante, aos sussurros, começou um bookmaker para descobrir se o pobre Durval resistiria no emprego até o Ano Novo.

Em dois dias saiu a nota de demissão: foi-se a gerente de RH. Durval se mudou para São Paulo, promovido ao escritório central. Hoje é o braço direito do Dr. Gessy. Sem dúvida, o danado acertou na cor.

3.12.09

Número 346

NO FUNDO, É TUDO AO CONTRÁRIO

No fundo, no fundo, os torcedores do Flamengo estão torcendo muito para o Grêmio engrossar o caldo no último jogo do Campeonato Brasileiro de 2009. Impor uma resistência brava, gaúcha, Farrapa! Transformar o Maracanã em um novo Estádio dos Aflitos e, quem sabe, lançar um DVD em 2010. Se os gremistas amolecerem, se entregarem o placar sem resistência alguma, de modo vergonhoso e pusilânime, o título ficará para a eternidade maculado – e de modo indelével. Não faltará, em nenhum dos botecos cariocas, um vascaíno para dizer a verdade: sem luta, não há mérito. O verdadeiro rubronegro almeja o título depois de uma batalha inesquecível.

No fundo, bem lá no fundo, os São-paulinos e Palmeirenses torcem de modo apaixonado pela amarelada do Grêmio no próximo domingo. Nada melhor do que conspurcar um título dos cariocas colando na faixa um episódio sórdido de entrega covarde capitaneado – que espetáculo! – por gaúchos. Aliás, isso será motivo de novas piadas sobre a masculinidade do Centauro dos Pampas, com requintes de crueldade. Todos os paulistas esquecerão o papel ridículo a que se prestou o Corinthians, cujo goleiro correu o risco de defender um pênalti sem sair do lugar: em ato reflexo, por pouco não esticou o braço para o lado. É o que bastaria para bloquear um chute quase no meio do gol. Depois, bateu palmas.

No fundo, no fundinho mesmo, os colorados torcem muito para os rivais humilharem-se no lendário palco do futebol mundial, ainda mais diante de todos os olhos da nação. Essa atitude colocaria para baixo do tapete uma quantidade enorme de pontos desperdiçados em jogos fáceis, diante da torcida, em pleno Beira-Rio. Nas contas de qualquer analista neutro, durante jornadas ridículas da equipe, o Inter jogou fora nada menos do que cinco pontos. Isso sem falar no prazer em lembrar dessa passagem negra da biografia tricolor para sempre. Aliás, seria uma atitude representativa para tantos outros fracassos no Rio Grande do Sul: aqui, se torce mais para o malogro do outro do que para nosso próprio sucesso.

No inconfessável fundo da alma, os gremistas de verdade torcem muito e fervorosamente, domingo, por aplicarem uma goleada heróica no Flamengo. Depois, todas as possibilidades de resultado no Beira-Rio são deliciosas: se o Inter empatar ou perder, a flauta será histórica. Se ganhar do mísero Santo André, os alvirrubros ficarão devendo este título para o rival por, no mínimo, três gerações. E, aos olhos da nação, a bravura tricolor fará sombra à taça de qualquer um dos beneficiados – prato cheio para quem se gaba de feitos improváveis, mesmo quando em escalas inferiores.

No fundo, bem no fundo, é tudo ao contrário do que parece. Mas ninguém está muito interessado em chegar no fundo dessas questões. É na superfície que respiram as aparências e derramam-se as lágrimas.

26.11.09

Número 345

NOVO PARABÉNS

Um dia, em um cubículo obscuro de uma repartição nada representativa de um escalão para além de inferior, dois prestimosos funcionários públicos chegaram a uma conclusão definitiva: ninguém aguentava mais cantar Parabéns a Você. Não era possível que, em um país como o Brasil, com sua vasta tradição musical, ninguém fosse capaz de atualizar a maneira de entoar os votos de aniversário. Pensaram em um concurso. Elaboraram um anteprojeto e, de articulação em articulação, percorreram os mais diversos escalões da política nacional. A ideia era convocar os mais talentosos compositores e criar uma nova trilha sonora para o apagar das velinhas.

Como a iniciativa não melhorava em nada a saúde, a segurança, a educação ou a infraestrutura nacional, ela prosperou. E, chegando à mesa da Secretaria de Comunicação do governo ao mesmo tempo em que eclodia mais um escândalo de corrupção, ganhou grande publicidade: o Brasil sempre soube eleger seus temas... Então, atraídos pelo nobre intuito de melhorar a vida das pessoas e, em escala menor, pelo elevado valor do prêmio, alguns artistas mandaram suas contribuições, salvaguardados em cuidadosos pseudônimos. Seguindo a tradição do sigilo em concursos no Brasil, tive acesso a uns fragmentos. Façam suas apostas.

Borges Vem Jor
Que maravilha / Nós gostamos de você / (tuturutututututu) / Que maravilha / Faz mais um pra gente ver / (tuturutututututu) / Quando esse dia foi chegando, ninguém acreditou / Com muito amor, com emoção, você aniversariou, oôu! / Foi há tanto tempo que esqueci do primeiro / Mas dá para ver que continua inteiro / Que maravilha / Nós gostamos de você...

Humberto Vil
Olha pr’esse bolo / Se lhe serve de consolo / Todo mundo vai querer / (vai querer) / Na data querida / Que consiga nessa vida / O melhor para você / (pra você-e-ê) / Apagando a vela / Desejar diante dela / Vai enfim lhe garantir (garantir) / Amor e dinheiro / E saúde por inteiro / No ano que está por vir (no porvi-í-ir!)...

Mico Buarque de Irlanda
Parabéns a você! (breque) / Parabéns a você / Amanhã há de ser / Outro dia! / Mais um ano acabou / E você não dançou / Isso ninguém queri-ia / A saúde vai bem / O dinheiro também / E você merecia! / Mais um ano chegando / E a gente querendo / Muito sua companhia / Parabéns a você! (breque)...

Zeca Tagordinho
Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Paz, dinheiro e saúde / Para dar e pra vender! / (Só no sapatinho!) Deixa a vida desejar...

João Gil Lerdo
(introdução) Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom (paciência, ainda vai longe)...

Carlinhos Brownie
Parabenaculelê / Parabenaculalá / Paratimbum, paratinalê / Piroperoparará, tô lá! / Indaiaiê: saúde! / Ondanelê: dinheiro! / Parabenaculalé / Zunarecatinguelê! / (Mãinha, me alcança o caxixi) / chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic-chic chic-chic-chic...

20.11.09

Número 344

A MORTE E A MORTE DE UM IMORTAL

Até a pé nós iremos, para o que der e vier
Mas o certo é que nós estaremos
Com o Grêmio onde o Grêmio estiver
Lupicínio Rodrigues


Meu sogro era gremista. Bem gremista. Visceralmente gremista. Tanto que, para estar à altura de sua paixão, decidiu levar esse ardor para além da vida. Ele, que talvez não seja o único, comprou uma sepultura especial no João XXIII: na face do cemitério porto-alegrense que dá vistas ao Estádio Olímpico. Desde 1996, é lá que repousa sua alma. Sobrevive (agoniza?) o plano de acompanhar a saga esportiva de seu amado time, do qual era sócio remido, para a eternidade. Seguindo à risca os belos versos do hino composto por Lupicínio Rodrigues, tornou-se um imortal tricolor.

Quanto respeito e admiração eu, que sou colorado de nascimento e orgulho, devoto ao grande gremista que foi meu sogro! Que honra me foi concedida ao me tornar parte da família de alguém cuja entrega transcende a própria existência terrena! Seu exemplo impõe a mim, esposa e filhos, alvi-rubros, um parâmetro elevadíssimo de apego. Afinal, nesse Grenal de torcidas, desejamos a vitória, mas o empate é o mínimo que perseguimos.

Por isso, em respeito à memória do Seu Telmo, quero registrar o protesto com relação à provável demolição do Estádio Olímpico, parte do projeto de uma arena esportiva em outro ponto da cidade. Caso se confirme, representará uma segunda morte imposta a um grupo de torcedores diferenciados e que elevaram suas intenções terrenas ao mundo dos céus. Verdadeiros tricolores imortais! Pessoas que dedicaram suas vidas ao Grêmio, e, para sempre, a morte também.

É claro que o tema suscita a história recente de Porto Alegre, na qual o Sport Club Internacional deixou o Estádio dos Eucaliptos para mudar-se para o Gigante da Beira-Rio. Porém, nossa nova casa (hoje quarentona) foi construída conforme o exemplo do lendário Olímpico: com recursos próprios, com participação da imensa nação colorada, com o suor e o sangue de mais de uma geração. O que se avizinha no horizonte tricolor é um estádio edificado por terceiros, dispostos a explorar comercialmente a paixão de uma torcida. Pior: caso o empreendimento naufrague em seu transcurso, como já ocorreu no recente e bem intencionado caso ISL, nossos irmãos azuis restarão despejados, prejudicando o equilíbrio que sustenta e eleva a dupla Grenal no cenário futebolístico mundial.

Em respeito ao imortal tricolor que foi (é) meu sogro, lamentando a impossibilidade de salvaguardar seu último desejo, faço um alerta: gremistas, roguem para que os deuses da bola não punam aqueles que decidiram macular a vontade derradeira dos que, hoje sepultados, viveram e morreram arrebatados pelo Grêmio. Será que seus heróis precisavam de um novo templo? Ou bastava a modernização de uma casa histórica, construída com os bravos recursos da paixão? Afinal, nada será maior do que um fracasso capaz de deixar o tricolor gaúcho mais do que (até) a pé: sem ter para onde ir.

12.11.09

Número 343

LONGEVIDADE

Existem expressões, modos de falar ou metáforas que, de tão perfeitas, sobrevivem por um longo tempo, mesmo após a extinção do ato ou objeto gerador. Por exemplo: dar a mão à palmatória. Com o perdão do trocadilho, pode-se contar nos dedos as pessoas vivas que presenciaram (ou sofreram) tal castigo nas escolas. Oscar Niemeyer talvez seja um. Porém, o atual sistema de ensino não oferece um substituto com igual adequação. Ninguém em sã consciência vai considerar a possibilidade de, para demonstrar arrependimento, falar que “sim, me submeto a um convite à reflexão”. Mesmo sendo politicamente correta, a nova expressão nasce sem a metade da força.

Outra: caiu a ficha. Não imaginam o sorriso largo dos meus filhos no dia em que, vasculhando gavetas, encontraram um ficha telefônica de verdade. Foi um assombro darem-se conta de que aquele disco de metal significava, fisicamente, créditos para a conversa. Explicamos que, ao completar a ligação, ou quando terminava o tempo pago, a ficha realmente caía para dentro do telefone público, vulgo orelhão. Essa geração bem poderia dizer que “completou o download”. Então, por que continuam falando que a ficha caiu? A única justificativa que encontro me remete outra vez à palmatória: cair a ficha também é uma ação concreta, rica em movimento, som e significado. Tudo indica que sobreviverá Era Celular adentro.

Ainda no telefone, dois termos se inscrevem na categoria de expressões que, de tão bacanas, torço para que sobrevivam à nascente: passar um fio e ficar pendurado no gancho. Podem até ser usadas em uma única frase, por mais paradoxal que pareça: “o fulano ficou de me passar um fio, mas fiquei pendurado no gancho...”. Já andam raros os telefones com fio – só lembramos de instalar um desses quando a casa fica sem luz. E o gancho, a exemplo do disco, virou peça de museu. Mas, convenhamos, que maravilha de metáfora para a espera tediosa a de ficar pendurado no gancho. Ainda mais no tempo em que todo telefone tinha fio, o que obrigava uma imobilidade implícita!

Outro dia percebi que, nos supermercados, já não existem mais filmes fotográficos para vender. De tão raros, agora só em lojas especializadas. Com a popularização das câmeras digitais, ninguém mais corre o risco de, por acidente, ver queimado o seu filme. Mesmo assim, duvido que alguém reclame do outro dizendo: “ô meu, desse jeito você vai deletar minha imagem!”. Outra vez temos uma manifestação física suplantando em força de significado uma ação virtual. É um caso idêntico ao de virar o disco. “Camarada, você já me encheu: troca a pasta desse i-pod!” tem muito menos poesia do que “deixa de ser chato e vira esse disco!”. Isso sem falar na tagarelice repetitiva denunciada pelo disco arranhado...

Outra expressão que já não encontra mais eco em nosso cotidiano, mas, mesmo assim, é de perfeita e duradoura compreensão é “desandar a maionese”. Na época em que ela foi cunhada, as donas de casa empreendiam longo tempo e laborioso esforço para servir à mesa este alimento tão delicioso quanto calórico. Bater a maionese requeria cuidado, pois, caso desandasse, o trabalho restaria perdido e sem a menor chance de recuperação. Algo parecido com faltar luz justo agora, antes de eu salvar esse texto (ufa, salvei!). A noivinha que, hoje em dia, só conhece um fogão de ouvir falar, corre o risco de queixar-se para a mamãe que desandou a maionese no seu casamento sem jamais imaginar que o acepipe pode ser feito em casa, à mão.

Enfim, chego à conclusão de que as boas expressões, ricas em cores, sabor, movimento e plasticidade, sobrevivem ao tempo e enriquecem nosso vocabulário. Claro que as inovações tecnológicas podem deixar, por sua vez, seu próprio legado – isso o futuro dirá. Afinal de contas, não vão deixar o cavalo passar encilhado, né?!

PS: Quem lembrar-se de outras expressões e quiser me mandar, por favor: pegue esse bonde andando!

5.11.09

Número 342

LENHAS & LINHAS

Eu era bem pequeno, mas recordo a luta da mãe e suas irmãs para convencerem a minha avó a migrar do seu tradicional fogão à lenha para o fogão com bicos de gás. Frau Seth foi reticente e tinha argumentos inquestionáveis: estava habituada à cocção nas chapas de aço, não via nenhum desconforto em rachar e armazenar lenha e, principalmente, cozinhar em fogão com chamas de gás alterava o sabor dos alimentos. Não procurava a praticidade do moderno nem ligava para a economia de energia e tempo. Também na cozinha da outra avó, Morena, a transição foi nada veloz. Durante muitos e muitos anos os dois modelos acomodaram, lado a lado, a base das panelas.

Meus filhos acompanham outra peleja: não há Cristo que faça a minha mãe usar o forno de microondas. Ela até tem um, mas nem ligado na tomada o pobre permanece. Enlouqueço quando a vejo aquecer o leite na leiteira: um dos meus traumas de juventude era lavar a louça quando lá estava aquela panela de leite com seu tradicional anel de gordura a ser vencido. Haja sabão e Bombril! Ela usa, também, o fogão e três panelinhas para aquecer uma comida pronta, ao invés de servi-la gelada, direto no prato, e colocar no micro.

Minha mãe, de modo cíclico, é reticente e tem argumentos inquestionáveis: está habituada à cocção nas chamas azuis, não vê nenhum desconforto em lavar panelas e, principalmente, o aquecimento em microondas altera o sabor dos alimentos. Minha sogra, não: usa o micro todos os dias. Mesmo assim, reconhece que o eletrodoméstico jamais de substituirá inteiramente o fogão tradicional, o que projeta uma longa convivência de ambos em sua cozinha.

Lembrei disso para meter minha colher torta na entrada do e-book no mercado livreiro com mais efetividade. Fico pensando se a resistência de muitos será bastante eficaz a ponto de frear o processo. Mais: começo a ter muitas dúvidas se ela é, enfim, correta. O motivo para isso é o singelo exercício de imaginar grandes cidades como São Paulo com seus milhões de habitantes cozinhando em charmosos fogões à lenha.

A celulose, qualquer piá sabe, é a matéria prima para se fazer papel. Vem da madeira, aquele elemento que arde no fogão à lenha. Mesmo que na atualidade ela seja obtida exclusivamente de florestas artificiais e renováveis, o processo, no mínimo, utiliza-se de insumos e espaços agriculturáveis. Com o aumento brutal da população humana e a festejada redução dos índices de analfabetismo, o futuro fica complicado. E livros exclusivamente de papel podem ser algo tão anacrônico, poluidor e impraticável quanto fogões queimando lenha nos apartamentos das metrópoles.

E agora? Agora começa o período de tempo indeterminado (eterno?) em que livros tradicionais e eletrônicos passarão a conviver em nossas casas e bibliotecas. Muitas avós, pais, mães e tios serão alvo de incompreensão ao optarem pela compra de grandes volumes de brochuras ao invés de carregarem seus e-books. Se tudo isso resultar no desejável consumo da literatura, alimento insubstituível, tudo bem. Quem sabe, e eu rogo por isso, muito mais se produza e muitos mais terão acesso aos bons livros.

Porém, ninguém me convence de que é igual. Reticente, tenho argumentos inquestionáveis: estou habituado ao apelo tátil das páginas, não vejo nenhum desconforto em suportar o peso de alguns livros e, principalmente, ler em telas altera o sabor do que está escrito.

PS: dia 11/11, 19h30, na Casa do Pensamento, Armazém A do Cais do Porto, na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, estarei na mesa redonda A Literatura na Era Digital: possibilidades e desafios, ao lado de Dodô Azevedo e Luiz Paulo Faccioli. Feito o convite!



29.10.09

Número 341

O JOGO


Rapaz, peça azul, recebe suas cartas do destino. Moça, cor-de-rosa, idem. Em jogo, o cotidiano do matrimônio. Os dados ditam os possíveis avanços. Começa outra emocionante partida de devagar se vai (ou não) ao longe.

Rapaz atira os dados: cinco. Puxa uma carta que diz: a esposa chega do salão de beleza com os cabelos recém cortados. 1. Ele repara e elogia na hora: pula as cinco posições. 2. Ele até repara, mas comenta sem muito entusiasmo: avança uma só casa. 3. Ele não repara, mas elogia bastante quando ela chama a sua atenção: permanece no mesmo lugar. 4. Ele não repara e, quando ela conta a novidade, a resposta é: – Nossa, quanto custou isso? Volta para o começo do jogo...

Moça atira os dados: três. Puxa uma carta que diz: (ao telefone) – Querida, vou com o pessoal tomar um chopinho, tá? 1. Ela responde que sim e manda um abraço para a turma: avança as três posições. 2. Ela reclama, mas – vá lá – aceita, desde que ele chegue cedo: avança uma só casa. 3. Ela aceita relutando e deixa nas entrelinhas que isso vai ter um preço: permanece no mesmo lugar. 4. Ela não só proíbe, como ainda fica de mal quando ele chega em casa: volta para o começo do jogo...

Rapaz atira os dados: dois. Puxa a carta que diz: a pia está cheia de louça. 1. Ele toma a iniciativa, lava tudo e ainda prepara um cafezinho: avança as duas posições. 2. Ele faz de conta que não vê, mas atende ao pedido dela para que lave a louça: avança uma só casa. 3. Ele faz o serviço depois que ela insiste muito, e ainda guarda tudo nos lugares errados: permanece no mesmo lugar. 4. Ele chama a esposa de relaxada e, se ela pede para que ele lave dessa vez, de preguiçosa: volta para a casa dos pais, ao menos por uma noite.

Moça atira os dados: seis. Puxa a carta que diz: a TV vai transmitir a final do campeonato de futebol. 1. Ela prepara uma pipoca, veste-se para a ocasião e senta ao lado do marido: avança as seis posições. 2. Ela diz que vai ao cinema e, ao sair, deseja boa sorte ao torcedor: avança uma só casa. 3. Ela fica em casa cruzando propositalmente na frente da TV: permanece no mesmo lugar. 4. Ela marca um compromisso para os dois na mesma hora, e arma uma briga violenta quando ele se recusa a cumpri-lo: se o time for campeão, volta para o começo do jogo. Se não, vai para a ponte que partiu e não volta tão cedo!

Rapaz atira os dados: dois. Puxa a carta que diz: ela quer sexo. 1. Ele busca taças e o espumante que está na geladeira, deixa o ambiente em meia-luz e se desdobra em carícias: avança as duas posições. 2. Ele topa e parte para cima com uma urgência desproporcional: avança uma só casa. 3. Ele entra no jogo, mas mal consegue um empate aos quarenta e cinco do segundo tempo: permanece, perigosamente, no mesmo lugar. 4. Ele diz que está cansado, estressado, deprimido. E já não é a primeira nem a segunda vez... Aí ela pergunta: – Será que tem volta?

Moça atira os dados: quatro. Puxa a carta que diz: ele quer sexo. 1. Ela busca taças e o espumante que está na geladeira, deixa o ambiente em meia-luz e se desdobra em carícias: avança as quatro posições. 2. Ela topa, mas o recebe com mínima reciprocidade: avança uma só casa. 3. Ela, depois de certa insistência, entra no jogo sem nenhum tesão, consultando o cronômetro a cada minuto: continua, fria e estática, na mesma posição. 4. Ela diz que está cansada, estressada, deprimida. Ele suplica. Aí ela relembra que ele sequer reparou em seu novo corte de cabelo: ele volta para o começo do jogo.

22.10.09

Número 340

DESMATAMENTO

Casamento é mata fechada, densa, com delicada diversidade, mas com alguma chance de sufocar. Um estado civil bem diverso ao da solteirice: campo ensolarado e franco, cenário de batalhas para caça e caçador. No campo, o horizonte se mostra pleno, 360° de possibilidades para as mais loucas aventuras. No casamento, resta subir à copa dos sonhos para liberar a visão em todos os sentidos. Mesmo assim, lá não viveremos o tempo inteiro: não somos pássaros, e os sonhos apenas nos iludem com asas de nuvens.

A floresta chamada casamento é para além de sedutora, escondendo no lusco-fusco muitos encantamentos. Só nela, e em nenhum lugar mais, florescem orquídeas raras. A sombra é constante e prazerosa; o anoitecer, aconchegante. Quem conhece as trilhas encontra com facilidade cachoeiras de água pura. Também é lá que estão as árvores de raízes profundas e troncos com seiva perfumada ‒ ah, o amor! Há borboletas e filhos, canto dos passarinhos, cipós para servirem de varal, cheiro forte de terra. É nas cavernas da mata que estamos seguros das tempestades. Difícil mesmo é evitar o surgimento do limo nas pedras do caminho.

Por outro lado, todo homem casado, e toda mulher, antes de se embrenharem na mata, habitaram o campo. Conhecem muito bem a rotina do vento forte, dos rápidos deslocamentos, da vegetação rasteira ‒ composta de beijos orvalhados e pouco comprometidos. A amplidão do céu crivado de estrelas em noites solitárias. As árvores esparsas, nas quais se pode subir de vez em quando: nunca deixamos de sonhar! Eles ainda lembram que no campo era necessário, também, conviver com uma certa dose de perigo ‒ a exposição é típica neste cenário. Talvez seja por isso que os descomprometidos andem sempre em bando. Amigos ‒ nossa! ‒, como se protegem...

Houve um tempo em que estes dois ambientes eram menos permeáveis. Os humanos que se mudavam para a mata fatalmente morriam por lá. Ou, como alternativa, terminavam seus dias nas suaves clareiras da viuvez. Hoje, posso estar até enganado, vejo as pessoas entrando na floresta meio de costas, sem tirar os olhos da saída. Agindo assim, nem bem estão no campo, nem bem no mato. E, sem coragem para mudar de entorno, dificilmente penetram muito fundo. Que cachoeira qual nada! Sai para lá borboleta! Ao diabo com essa raiz que só me faz tropeçar! Êta tronco áspero! É lá fora que brilha o astro rei... Há, também, aqueles que estacionam nas margens ‒ um pé lá, outro cá.

Porém, mesmo quem se aprofunda na floresta pode um dia desejar sair. Ou de lá ser despejado, como se intruso fosse. De um momento para o outro, precisará se expor ao sol aberto, apelando para urgente proteção. Faltará fôlego para as correrias, malandragem na hora de arrumar alimento. Nenhum desespero: trilhar o campo é como andar de bicicleta ‒ descontada a pouca destreza (que sobrava outrora) ninguém desaprende. E mato não tem porta: é só voltar lá para dentro na primeira oportunidade. Ou na segunda, terceira, décima oitava... Pois é: às vezes fica complicado voltar ‒ querer não será o suficiente.

Enfim, nosso tempo está deixando a fronteira do mato com o campo mais frequentada que entrada de formigueiro. Mas essa não é nem de longe a pior (melhor?) notícia. Preocupante mesmo é a derrubada galopante da floresta. Parece que virou moda a idéia de que só o campo aberto é lugar de se colher felicidade. Estarei eu, bicho do mato, fadado à extinção?

15.10.09

Número 339

OBITUÁRIO

Uma querida amiga é fanática pela leitura de Obituários. Ela vê uma singela beleza naqueles resumos de existência, além de uma interessante paridade social: ao lado de um General, empresário ou professora emérita, pode estar uma costureira, um estudante, o fanático torcedor de um time da terceira divisão cuja especialidade era assar churrasco. Isso me fez pensar no caso de a seção de Obituário habitar outras partes do jornal, quem sabe rendendo bons textos. Economia & Negócios, por exemplo:

Depois de uma vida inteira dedicada à comunicação entre pessoas em diversas localidades, faleceu recentemente Telefonia Residencial Analógica, filha de Ligação por Telefonistas e neta do revolucionário Telégrafo ‒ este que, durante sua vida, chegou a sofrer uma séria intervenção ortográfica, tendo extirpado seu ph. DDD, como era conhecida, faleceu em virtude de um severo abalo tecnológico, que vitimou boa parte de sua família: a Ficha de Orelhão, o Telefone de Disco, a impertinente Linha Cruzada e DDI, sua irmã gêmea, esposa de Satélite de Comunicação. No Brasil, esteve casada com o Governo durante grande parte de sua vida, divorciando-se depois de um processo de privatização (para alguns, nem tão amigável). Partiu sem deixar herdeiros diretos vivos. Seu legado foi transferido aos sobrinhos, filhos de DDI e Satélite: Telefonia Digital e Telefone Celular. A comunidade jamais esquecerá a importância de DDD na aproximação entre vizinhos e amigos, na criação de serviços de tele-entrega e no auxílio à Defesa Civil ‒ sempre voluntariosa ao chamar o Corpo de Bombeiros, a Polícia e ambulâncias.

Pode-se dizer que as redações de jornal, as agências de propaganda, os escritórios contábeis e de advocacia, os cartórios, escolas e mesmo as residências jamais serão iguais depois da partida de Máquina de Escrever. Seus movimentos coordenados ‒ de grande engenhosidade mecânica ‒ e ruídos característicos acompanharam as mentes mais brilhantes da humanidade por muitos e muitos anos, registrando todas as idéias e documentos por elas produzidos. Gradativamente aposentada e vendo crescer a importância de Máquina Elétrica (com o prático Corretor Automático a seu lado), mantinha-se útil em repartições desatualizadas por todo lado. Porém, Máquina de Escrever foi atropelada pelo Editor de Texto que, junto com a Impressora de Dados, pilotavam um PC (Computador Pessoal) em altíssima velocidade. Com seu passamento, ficaram órfãos as Fitas de Tinta (Bicolor e Preta), o Curso de Datilografia, o Mimeógrafo e o cooperativo Papel Carbono. Ainda é possível encontrá-los por aí, mas sem o mesmo ânimo.

Contrariando o que faria supor sua pouca idade e encantamento, faleceu obscura e tragicamente Disquete de 5”1/4. Seu irmão mais novo, 3”1/2, está na UTI, sem esperanças de recuperação, enquanto Disco ZIP, o caçula, morreu logo depois de nascer. Foram todos vitimados por uma febre conhecida como obsolescência precoce aguda, doença desenvolvida por carências na capacidade de armazenamento, gerando pouca esperança tecnológica no longo prazo. Visto como símbolo de uma época, a aparência de Disquete 5”1/4 chegou a ser sinônimo de modernidade nos anos 80 (auge de sua utilização). Seus herdeiros convivem com a ameaça constante da mesma febre, que parece ser um mal genético na família Informática. Isso poderia explicar tamanha fertilidade criativa e a pressa com que se renovam, criando filhotes a cada semana: frágeis, um deles há de sobreviver para perpetuar o legado.

8.10.09

Número 338

FÁBULA FUTURÍSTICA

O homem parecia ter alcançado a fronteira final: depois de passar décadas aglutinando informações em bancos de dados e, ao mesmo tempo, desenvolvendo formas de armazená-las em espaços físicos cada vez mais exíguos, conseguira um meio de acessar os dados apenas com o pensamento. Funcionava assim: ao arranhar a pele e ali colocar um robô desenvolvido com nanotecnologia, este saberia chegar, por via circulatória, ao cérebro. Ali, e ligado ao conglomerado de bancos de dados do mundo, o nano robô passaria a ser um portal entre o indivíduo e todo o conhecimento acumulado pela humanidade.

Se o portador do robô pensasse: sânscrito, já saberia se comunicar nesse idioma. Pensasse: física quântica, saberia tudo sobre o tema, desde fundamentos até conceitos avançados. Pensasse: lista telefônica, e teria acesso a qualquer número do planeta. Pensasse: Beethoven, já seria capaz de executar qualquer sinfonia do mestre. Pensasse: energia nuclear, e seria capaz de construir de usinas até bombas. Enfim, não importaria mais o tema, pois todo o conhecimento acumulado estaria disponível ao indivíduo, como se ele conhecesse tudo sobre tudo.

Desenvolvida a tecnologia, a primeira providência foi a de controlar sua disseminação. Afinal, conhecimento sempre fora sinônimo de poder. Porém, nem todos pensavam dessa forma. E, depois de se autoinocular um robô, um dos cientistas envolvidos passou a deter todas as informações sobre o projeto, habilitando-se a fazer robôs piratas. Então, em cada um que recebia essa verdadeira maravilha falsificada, nascia o desejo de produzi-la também, tendo lucro com a comercialização. Por fim, em menos de um ano, a inteligência absoluta havia se espalhado em velocidade viral, com quase a totalidade dos homens transformada em verdadeiros gênios.

Chegara, enfim, o tempo da utopia. Ninguém seria mais do que ninguém, nem melhor, nem teria qualquer vantagem. Todos igualados pelo robô. Grego? Falamos todos. Anatomia? Sabemos todos citar cada um de nossos ossos, ou de qualquer animal. Propulsão a jato? Farmacologia? História da arte? Cálculo estrutural? Informática? Direito? Ninguém mais precisava do outro: sabia tudo. E o conhecimento deixou de ser uma marca de diferenciação, de hierarquia, de poder. Do agricultor chinês ao pescador amazonense; do presidente da ONU ao chefe do cartel colombiano; do príncipe árabe à prostituta de alguma ilha do Caribe, para ninguém mais existiam segredos.

Todas as tentativas de frear o processo acabavam abortadas ‒ durante as reuniões, invariavelmente as informações vazavam. As economias entravam em colapso. Todos sabiam tudo, mas ninguém sabia o que fazer, em quem confiar, para quem ceder o comando. A truculência física começou a fazer a diferença. Adultos começaram a matar crianças, homens eliminavam mulheres, maiores assassinavam menores. A luta passou a ser pela água, pelo alimento, pelo teto, pela roupa do corpo. Um homem de quase dois metros de altura matava a todos indistintamente usando uma marreta, enquanto recitava Pirandello ‒ no fundo, era alguém sensível. Até que mísseis nucleares começaram a alçar voo de todo lugar para todo lado.

Infelizmente, a humanidade sucumbiu com a plena, total e absoluta consciência de que nem todo o conhecimento do mundo seria capaz de transformar o homem em um animal racional. E de que a diferença individual é a chave para a igualdade social.