23.1.09

Número 301

EM RUÍNAS

Na praia da infância e juventude, na mesma quadra onde minha mãe ainda preserva nossa casa de veraneio, um prédio resta aos pedaços. Ele esteve por muitos anos com ares de abandono, até ser consumido por um incêndio. Uma paisagem que, antes do fogo, maculava minha memória sob forma de cicatriz, agora escancara vísceras apodrecidas. Ela me dói. Dor compartilhada por veranistas tradicionais, da minha e de gerações anteriores, quando não se consegue evitar o nobre endereço de esquina. Mesmo não tendo qualquer responsabilidade sobre o trágico destino do lugar, uma parte fundamental da minha vida agoniza sob os destroços.

Refiro-me ao salão principal de um antigo hotel, desativado – se não me trai a memória – no final da década de oitenta. Até então, era sol de um sistema humilde de poucas casas em sua órbita. Metros quadrados de uma edificação encantadora em sua simplicidade, fonte inesgotável de luz e calor humano. Destino para onde convergiam todos os habitantes, atraídos por um magnetismo explicado, em parte, por ser o principal centro de serviços da época. Mas, também, pelo carinho verdadeiro com que as pessoas ali compartilhavam.

Era lá que buscávamos o jornal cedo da manhã, encontrando vestidas e perfumadas as mesas de café. No ambiente do bar, poucos já repercutiam as boas e más notícias do dia, ainda quentes. Defronte ao hotel cruzávamos a caminho do mar, carregados de guardassóis e esteiras. Diante dele passávamos na volta, exaustos, esfomeados, cobertos de areia e sal. Também ao hotel, um pouco mais tarde, voltávamos de roupas limpas e barriga cheia, sedentos por um picolé. Dependendo de encontros e desencontros, íamos para casa ou partíamos para os mais variados endereços, gozando de liberdade e autonomia conquistadas desde seis ou sete anos de idade.

À noite, de cabelo lambido e roupa caprichada, quase toda a praia se encontrava no salão principal, no bar e nos avarandados do hotel. Havia mesas de pife, canastra e sete e meio. Ainda no carteado, o ruidoso dorminhoco acontecia bem longe da televisão, iluminada pelas telenovelas. Muita correria de crianças para dentro e para fora. Os jovens ocupavam os bancos externos, ambiente ideal para o namoro, conversa fiada ou cantoria ao som do violão. Nem a chegada da madrugada espantava o pessoal, até o inevitável cartão vermelho em nome da tranquilidade dos hóspedes... Afinal, em poucas horas, as mesas do café estariam novamente postas, já teriam chegado os exemplares do novo jornal, trocariam bons-dias os primeiros pescadores.

No hotel acontecia o divertido bingo de cartelas marcadas com feijões. E a gincana, o carnaval infantil e adulto, bailes de casais. Rodas de samba de tarde inteira. Nossos encontros de antes e depois do vôlei e futebol. Defronte ao hotel era o ponto de partida do bloco carnavalesco para praias vizinhas, ponto de referência para quem viesse de outro lugar, relógio-ponto marcando meus primeiros vinte anos. Um palácio cuja maior riqueza foi construir a minha e outras tantas histórias simples, anônimas, irrisórias. Ou grandiosas.

A ruína que hoje me entristece contrasta com os relatos apaixonados que não poupo fazer aos meus filhos quando conto do hotel. Se ainda estivesse ativo, aposto que sua estrela seria capaz de vencer até mesmo o obscurantismo da violência, cujo resultado foi a transformação de todas as casas da praia em prisões gradeadas. Seu magnetismo, quem sabe, ainda seria capaz de promover novos encontros. Porém, ao contrário, os escombros do prédio expõem o cadáver insepulto de outro tempo. Um tempo sem videogame, sem celular, sem computador. Tempo de verões arrastados, tranquilos e doces como as músicas de Caymmi. Nas ruínas deste tempo, habita a agonia de minh’alma.

16.1.09

Número 300!

TORMENTOS, ARGUMENTOS E DOCUMENTOS

Se tamanho fosse documento, o elefante seria o dono do circo. Se tamanho fosse documento, era o homem quem puxava a carroça. Tais e outros argumentos com a mesma natureza estavam sempre na ponta da minha língua quando eu era pequeno. Não que hoje eu seja lá muito grande... Mas quando eu era pequeno, eu era muito menor do que os outros. Além de baixinho, miúdo. Magro de fazer a mãe, excelente cozinheira, passar vergonha. Não que eu tenha galgado muitos quilos na balança...

As frases prontas saltavam de minha boca por um só motivo: nunca me deixar diminuir pelo tamanho. Estar à altura dos amigos e colegas era um compromisso de guerra; bons argumentos, meu cavalo de batalha. Nas aulas de história, cedo reparei no porte físico de Napoleão, contrapondo-se com a saga de suas conquistas. A grandeza de alguém jamais deveria ser medida em centímetros de altura, mas na elevação de seu caráter, de suas aspirações. Os sonhos também seriam parâmetro mais fiel para a verdadeira estatura de um homem.

Na teoria tudo faz sentido. Mas na prática não era nada fácil. Sou de uma geração em que as turmas de primário, o ensino fundamental da década de setenta, perfilavam-se antes de entrar na sala de aula. E o sistema estabelecido para esta sessão de ordem unida era, da frente para trás, do menor para o maior – gigantes no fundo. E eu era tão pequeno, mas tão pequeno, que, para ser o primeiro da fila, precisava ficar na ponta dos pés. Vacilando, ganharia a pole position de todas as turmas, mesmo as de séries mais novas. Um vexame.

Na hora das disputas no braço também me via em maus lençóis. Nos dias de hoje, as crianças brigam menos do que em outros tempos, muitíssimo menos. A mediação de adultos e professores, agora sempre por perto, tende a suavizar as relações entre os pequenos. É muito feio bater no amigo, falam todos os dias, a toda hora. Antes, feio era apanhar do amigo. E, se os amigos batiam, imagina só o risco que se corria com os inimigos. O pau comia na escola, no bairro, na praia. E não adiantava muito meu ano e pouco de judô: contra o gorila, a técnica do sagui é irrelevante. Mais valia os planos de fuga – um paliativo, jamais a solução.

Se tamanho fosse documento, a girafa era a rainha das selvas, eu dizia. O problema estava em convencer a linda girafa que sentava ao meu lado na sala de aula de que meu reinado estava garantido desde o signo. Na sexta série, por exemplo, a menina mais baixa livrava de mim meia cabeça. A mais alta, meio corpo. E, mesmo o amor sendo reconhecidamente cego, todos os demais sentidos conspiravam contra meus anseios. Na pré-adolescência, fase em que transitamos da infância para o abismo, descobri a diferença entre o amor e a amizade: mais ou menos dez centímetros. Platão foi meu mentor amoroso.

Não: minha infância não foi um mar de tormentos e frustrações. Até porque tal quantidade de água não me daria pé. Como disse, quando me acusavam de baixinho, as respostas saltavam ligeiras. Jamais me deixei diminuir. Logo, o eventual destaque que tive ao capitanear a fila do pátio, usei para me tornar bastante conhecido. A dificuldade no combate corporal aguçou a diplomacia. À amizade das mulheres credito uma sensibilidade útil nos dias de hoje, quando o diálogo parece fundamental para as relações. Porém, se eu pudesse escolher, juro, queria passar a vida inteira em uma altura média. Tamanho, que inferno, sempre foi documento. Senão eu poderia dispensar a retórica – correndo o risco de jamais virar cronista.


7.1.09

Número 299

VÃO OS DEDOS, FICAM OS ANÉIS

Partilha. Aí está uma das coisas mais complicadas da vida. Melhor dizendo, da morte. Afinal, conta-se nos dedos quem não passou por algum descontentamento, grandes decepções ou um certo desconforto quando se viu implicado na situação de repartir bens. Não importa o tamanho da herança: seja ela composta de imóveis, contas numeradas, obras de arte etc; ou uma simples bandeja banhada em prata, o Fusca 1976 ou mesmo aquela faca de churrasco com o cabo de osso. Na verdade, o ato de partilhar sempre é passível de confronto, de resgate de mágoas, de espertezas.

Em uma cena clássica de encontro de partilha, é garantido identificar uns tipos bem característicos. Por exemplo, os ponderados. Cheios de dedos, trabalham em costuras quase impossíveis para contemplar os mais diversos interesses. Normalmente, já investiram muitas horas de negociações prévias, apelando para o bom senso e o sentimentalismo, em um esforço justificado pelo respeito à memória do recém falecido. Porém, a única certeza para eles é a de assistir seus próprios interesses como os primeiros a serem sacrificados.

Outros que não podem faltar são os exaltados. Com os dedos em riste, fazem das cordas vocais coração na hora de garantir meia dúzia de talheres. Acusam a todos de conspirarem contra seus interesses, resgatam frustrações desde os anos infantis, consideram-se prejudicados pelo destino. Para eles, qualquer guardanapo que terá como sina o fundo da gaveta, qualquer terreno de arrabalde para o qual ficará devendo o imposto territorial, tudo será resultado de uma guerra particular. São os exaltados aqueles que mais se beneficiam em uma reunião de partilha. E, paradoxalmente, os únicos que sairão dela se queixando.

Os soberbos, por outro lado, fazem questão de estarem ausentes. Dão as mais diversas desculpas para faltar ao encontro de partilha. Porém, claro, deixando nas costas dos ponderados uma pequena lista de bens que gostariam de receber – estes, escolhidos a dedo, para o desespero dos exaltados. Nunca faltará alguém para criticar a atitude dos soberbos, reclamando que eles pensam estar acima de questões tão fundamentais para a família. Irão duvidar de sua masculinidade, dirão serem mal amadas, lembrarão deslizes dos filhos, desejarão que sejam os primeiros a morrerem, pois na morte não se leva nada – bem feito! As orelhas dos soberbos arderão muito durante este período de tempo.

Os emocionais compõem o grupo sobre o qual nada mais importa. Para eles, nenhum bem material irá suprir a ausência deixada por quem partiu. Eles se consideram abençoados pelos anos de convivência, enriquecidos pelos ensinamentos, gratos pelo legado humano. Entram na reunião tão derrotados como um boi no abatedouro. Mas, em algum momento, terão seus cinco minutos de destaque ao versar, aos prantos, sobre as virtudes de quem agora está no céu. Condenarão o desrespeito à memória expresso em tanta mesquinharia. Lembrarão que Deus está assistindo atos tão vis. Azar o deles: voltam para casa com um joguinho de chá de porcelana cujo açucareiro perdeu uma das alças.

Bom, existe o caso de quem morreu deixar um testamento. Então, na presença de um advogado, o destino de cada bem terá o dedo do antigo proprietário. O dedo que, aliás, poderá pressionar diversas feridas. Em situações como essa, os exaltados gritarão ainda mais alto, aparteados pelo grupo dos ponderados. Os emocionais repetirão “mas nem precisava” dezessete vezes – quando não abrirem mão de algo para calar os exaltados. Os soberbos serão representados por alguém. E, ao final, quem terá as orelhas aquecidas será aquele que partiu. O mesmo que daria um dedo para assistir a cena. Dedo, aliás, apontado para a justiça, pois quem se preocupa em deixar testamento, viveu bastante para conhecer cada herdeiro como a palma de sua mão. Para desespero de uns e alívio de outros.

2.1.09

Número 298

TRÊS DESEJOS

Trata-se de um clássico: eu estou caminhando absorto pelas areias de uma praia qualquer, com os pensamentos boiando entre a segunda e a terceira rebentação, quando o dedão chuta um objeto cortante. Depois de um palavrão para aliviar a dor, de reclamar da falta de limpeza no litoral e de maldizer a sorte, verifico se está sangrando. Porcaria, está! Já com a vacina antitetânica no horizonte, eu resolvo averiguar o objeto mal sepulto na areia. É uma lâmpada. Nem incandescente nem fluorescente. É uma do tipo maravilhosa, parecida com um candelabro.

Descrente, eu junto o artefato e esfrego a camiseta em busca das três palavras mágicas do capitalismo: “made in China”. Porém, ao invés de descobrir a origem da lâmpada, uma fumaça branca e inodora revela o surgimento de um gênio. Um do tipo padrão, com roupas bufantes e transparentes, turbante e barba ao estilo Clóvis Bornay. E, como primeiro sinal de genialidade, ele fala comigo em português, sem o menor sotaque e na velocidade de um anunciante das Casas Bahia. Conta que foi ali aprisionado por um mago oriental há milhões de anos, que a maldição só seria quebrada no caso de a lâmpada ser friccionada por um tecido com 35% de polyester e que, em sinal de gratidão, me concederia três desejos.

Imediatamente, eu procuro os sinais de câmeras e microfones ocultos. Olho bem para o gênio para reconhecer o ator famoso por detrás daquele disfarce. Já imagino para qualquer momento a chegada daquela menina da produção com um contratinho padronizado para eu autorizar o uso de minha imagem na TV. Acredito piamente na oportunidade dos meus trinta segundos de fama ao pagar um mico em rede nacional durante algum programa de domingo. Por isso, e apenas por isso, topo continuar a conversa. E tento fazê-la render.

Pergunto, só a título de curiosidade, se os pedidos estariam sujeitos a algum patrocinador. Seu desejo será uma ordem, meu Amo, responde o gênio com uma mesura, como quem não entendesse a desconfiança. Ganho tempo: poderia ser algo só para mim, ou precisaria ser um pedido para a humanidade? Seu desejo será uma ordem, meu Amo, responde o gênio, repetindo o gestual com a ensaiada naturalidade de um guia turístico mirim. E o prazo de validade – quero saber – seriam pedidos perecíveis? O gênio devolve a questão com a mesma frase de sempre, curvando-se com suavidade. Percebo que não avançarei mais um segundo. É chegado o momento dos pedidos. E, claro, devem estar gravando.

Como em um rasgo de lucidez, uma revelação, um luminar, me dou conta de que não estou na praia coisíssima nenhuma. E meu dedão do pé está intacto. A moça da produção – morena, cabelos ondulados, vinte e poucos anos, jeans e camiseta branca, sandália rasteirinha, óculos – tampouco virá. Estou, isto sim, sentado diante de uma tela de computador, escrevendo a crônica da semana. Porém, de modo estranho, o gênio não some, aguardando meus três desejos. Desejos para 2009. E eu não sei o que lhe pedir.

Você, na mesma situação em que estou, teria condições de fazer três pedidos com sabedoria? Pergunto na hipótese de ser atendido de verdade, por este Clóvis Bornay das arábias que paira diante de mim, ou por qualquer outra força mágica. Se positivo, parabéns! Eu confesso que estou perdido, mesmo sabendo que, da feitura dos pedidos, depende o final do texto. Então, não tendo remédio, vamos lá:

Que em 2009 sejamos justos. Que em 2009 sejamos carinhosos. Que em 2009 sejamos agradecidos.

P.S.: e o gênio, safado, sem garantia nenhuma de vir a me atender, agora está indo embora de mãos dadas com a moreninha da produção...

25.12.08

297

REPETÊNCIA

Fazemos o mesmo. O mesmo. Sempre o mesmo.
Qualquer alteração, a qualquer tempo, virá diferir.*

Falei para ele: repetir o ano é o fim. A pior viagem. Inadmissível. Abala nossa auto-estima, destrói a gente por dentro. Estraga o Natal, arruína o Reveillon, mata o ânimo para nossas férias. E pouco me importa o que os outros possam estar pensando. Não é isso que conta. Para mim, a opinião de terceiros, nessa e em qualquer hora, é irrelevante. Minha preocupação é de foro íntimo: as conseqüências da repetência para a vida toda. Sim, pois cada vez que repetimos o ano, é como se o perdêssemos para sempre. Passado.

Falei para ele quando estava em tempo. Sei lá, ainda no começo de outubro, tivemos a oportunidade de tocar no assunto pela última vez. De lá para cá se passaram quase dois meses. Tempo hábil para alguma providência. Sobrando. Tem gente capaz de virar a vida do avesso em sessenta dias! E aí pergunto: o que ele fez? Nada. Certo, nada é exagero. Digamos que nada com relevância para, quem sabe, salvar o ano. Nenhuma atitude afirmativa. E acho que qualquer ação, por menor que fosse, poderia ter dado resultado. Mas não: se ele fosse um carro, teria ficado na banguela. Ou com o motor desligado. A direção, parada. Freio de mão puxado. Agindo assim, só andaria em caso de tornado. Ou enchente, Deus me livre!

Falei, mas ele nem ligou. O pior eu nem te conto: isto sequer está acontecendo pela primeira vez. Sim, daí o meu desespero. Ele já perdeu o ano antes e nem assim toma providências. Repetir virou rotina. Todo mundo avançando e ele lá, marcando passo. De bobeira. Engessado. Satisfeito em fazer tudo outra vez, outra vez, mais uma vez, igualzinho. Todos se ocupando com novidades, conhecendo mais, aprendendo, criando. Olhando para trás com aquela boa sensação de dever cumprido. Cansados, é certo. Uns meio esgotados. Poucos à beira de um ataque de nervos. Mas nem esses últimos em estado tão deplorável quanto ele. É de dar pena.

Antes, em outra ocasião, havia falado sobre piedade. Afinal, posso não ligar para o que os outros pensam. Ele pode não ligar para o que os outros pensam. Mas é impossível controlar o sentimento alheio. Quando despertamos pena, é quase como se estivéssemos deitados no chão. Nocauteados. O árbitro avançando indelével na contagem e nos faltando pernas para levantar. Um lutador pode passar por essa situação: é do jogo. Mas um ser humano não pode assumir essa condição para a vida. Atinge a si e a todos que o amam. Aliás, fica difícil amar quem não se ama. Mais fácil se afastar, negar o problema na esperança de que seja resolvido em um passe de mágica. Repetir o ano, penso agora, é preparar a poção e não ter o feitiço. Puf!

Falei para ele: para o ano que vem, chega de repetência. Ele me olhou com ares de reprovação. É muito dolorido mostrar justo para ele o que é certo ou errado. Esperar dele uma reação. Lembrá-lo que já foi diferente, produtivo, vivaz, sensato. Exemplo de vida! E agora, de um tempo para cá, irreconhecível. Não cogito uma vida de aventuras. Mas, nenhum livro? Nenhum passeio diferente? Nenhum novo amigo? Nenhum novo assunto? Isso que está acontecendo é uma eterna repetição de horas sem serventia, sem encantamento. Sem vida! Quem sabe um hobby? Um animalzinho para se sentir responsável? Faz tempo que dou a idéia de um curso diferente, para o qual tivesse talento. Em vão.

Não sei mais o que faço com meu pai.

*Do poema intitulado Em diferenças, que não considero pronto.

18.12.08

Número 296

PRESÉPIO NÃO TEM SOGRA

Dia desses, com a família, eu participava de um almoço de confraternização natalina entre amigos, quando a conversa fluiu para a tradição à mesa. Não para menos: apreciávamos um magnífico bacalhau na casa de um angolano de nascimento, casado com uma brasileira com raízes igualmente portuguesas. A arte culinária serviu de pretexto para muitas histórias, algumas emocionantes. Ato contínuo, os convivas abriram um tipo de concurso para noticiar especialidades de panela, cada qual fazendo a propaganda de seus dotes. Como não estávamos entre cozinheiros profissionais, muitos dos pratos procediam da singela herança familiar, mantendo a tradição no cardápio. E, quase todos, com receitas passadas de mãe para filha.

Todavia, por mais envolvente que estivesse nossa conversa, faltava para ela algum tempero capaz de transformar o almoço em crônica. Uma angústia chegando a ser indigesta, pois eu sentia no ambiente o aroma de um bom texto. Eu quase o via entre uma baixela com salada e outra de arroz. Escutava-o no tilintar das taças de cristal. Intuía guardado para a sobremesa. Crônica de Natal, conforme meu apetite dezembrino. Ingrediente que chegou, ufa!, com uma constatação lapidar de uma doce senhora que estava entre nós. Dona Terezinha. Pois ela e o marido Édio tiveram apenas filhos homens. Disse, então, e até com uma certa revolta, que desistira de passar suas receitas adiante. Resumiu: não ensino mais nenhum prato para minhas noras – elas modificam-nos.

Soaram os sinos pequeninos, sinos de Belém. Por natais e natais, durante muitas e longínquas eras, foram – são – as filhas mulheres as encarregadas da continuidade do legado materno. A elas cabe o privilégio, o dever e o direito de levar adiante as receitas de sua família. As noras, contaminadas que são por suas próprias influências, destinadas a manter o tempero de suas mães, jamais perderiam a oportunidade de marcar a diferença. Ainda mais que, em se tratando de algo tão íntimo como o alimento, igualar o pudim que fez o encantamento oral do marido em seus anos de infância é impossível. Covardia, até. Por isso, sogras elegantes, justas, jamais deveriam abrir concorrência com suas noras. E noras inteligentes devem estar atentas para essa armadilha.

Imagino, também, que o dilema de dona Terezinha ganhou novos ingredientes com a mudança dos tempos: as moças de hoje brilham – e muito – nas mais diversas áreas do conhecimento. Mas em bom número tendem a ser meio opacas na cozinha, levando à mesa refeições cada vez mais práticas e menos artesanais. Logo, não demonstram o menor interesse em, por exemplo, apurar o molho durante muitas horas, atribuição tranqüila para quem era dona de casa. Por outro lado, em muitos lares, são os rapazes os novos comandantes do fogão. Quem sabe a queixosa senhora esteja perdendo a oportunidade de manter seu legado por não enxergar o óbvio: deve ensinar os pratos de família aos filhos homens! Aqueles mesmos que já transportam adiante a habilidade do pai defronte a uma churrasqueira.

Tudo isso me fez recordar do presépio, uma das mais tradicionais imagens de Natal. Lá estão pai, mãe e criança. Ao redor, pastores e seus animais. Para breve, a chegada dos Reis Magos. Um anjo paira acima da gruta. Zero parentes. E as avós? Não seria o caso de alguma vovó dar uma mãozinha naquele momento tão delicado? Parece, mas não consta nas Escrituras, que ninguém da família de Maria podia acompanhar a moça grávida, quase parindo, na urgente fuga da insanidade de Herodes, o Grande. José, solícito, tratou de convidar sua mãe. Mas ela própria, a sogra da Virgem, torcera o nariz. Desde o advento do Pessach, em que as duas divergiram feio na receita do Charosset, a velha duvidava que Maria fosse assim, sei lá, tão santa.

O mar está para peixe


O mar está para peixe:

Convido vocês para conhecerem minha nova parceria com Eduardo “Dudu” Penz, postada no site da cantora Anne-Florence Schneider, www.myspace/donaflormusic. Em frente ao mar soma-se aos temas Amor platônico e Sambou, tá novo, também disponíveis para audição. O sotaque de Florence é um charme a mais...

11.12.08

Número 295

CONSERVADOR RADICAL

Das tantas possibilidades de classificação dos homens em diferentes grupos – gordos ou magros, fiéis ou disponíveis, otimistas ou informados – uma delas é fazê-lo entre radicais ou conservadores. Difícil, mas necessário, é saber se você é um radical nato, talhado para suportar as exigências que as atitudes extremas impõem, ou um conservador sem noção do perigo. Da mesma forma, é muito útil investigar o dom para a ponderação, pois um radical na condição de “murista” pode quebrar a cara por não ter, no DNA, o equilíbrio necessário para se manter neste patamar. Para isso existe a juventude. Veja o meu caso como exemplar.

Durante toda a minha vida fui convidado a flertar com o perigo. Já me propuseram parceria em aulas de pára-quedismo, mergulho submarino, alpinismo, rafting, kitesurf. Já estive perto de topar envolvimentos com mulheres malucas, sociedade com golpistas, transas sem preservativo, carona de estranhos. Também não foi por falta de oportunidade que levei uma vida distante das drogas ilícitas, dos rachas de automóvel, dos pastéis de rodoviária, dos sogros violentos, da filiação partidária. Aprendi a recusar educadamente: não é para mim. Tudo porque fui vacinado na juventude com passagens radicais mal sucedidas, das quais sobrevivi com poucas seqüelas – mas muitos ensinamentos. Como a memorável passagem pelo tobogã.

Foi em Florianópolis. Devia ter meus vinte anos. Até aquele momento, olhava com desconfiança para o tal brinquedo de parque. Se por um lado ele me prometia segundos de velocidade e emoção, por outro dava margem a muitas possibilidades. Já naquela altura, reconhecia no meu destino a ação constante do improvável, o ímã do infortúnio, o pendor pelo ineditismo. Porém, estava de namorada nova, que pedia a minha companhia para tal passagem. Éramos, os dois, toboganicamente virgens. Eu – óbvio! – não confessei a lacuna no currículo para a menina. Vesti a armadura dos homens vividos e sustentei a pose de encorajador.

Estávamos em dois casais. Pagamos o ingresso e partimos em busca de grandes aventuras. Nossos amigos, experientes, foram primeiro. Lá de baixo, sorriram para nós. E chamaram: venham! É delicioso! Minha namorada quis desistir. Seria vexatório naquele momento. Eu, acreditando na armadura metafórica, propus tutela: desceremos juntos, lado a lado, minha donzela. Dê-me a mão, Branca de Neve. Seremos felizes para sempre na contagem de três. Um, dois...

No três, ela fincou o pé. E desistiu sem soltar a minha mão. Só que eu partira. Resultado: quando livre, deixei o ápice da montanha deitado, sem equilíbrio, até meio de viés. Na primeira ondulada abandonei o contato com o solo e, a partir dali, devo ter pousado umas três ou quatro vezes, a cada uma de forma mais desengonçada. O que sobrou de mim, chocou-se com violência nos sacos de areia do final da pista sob o som de aplausos. Os pés estavam para cima. Se fosse um desenho animado, o tapetinho chegaria logo depois, encostando em minha cabeça com segundos de atraso. Como era a vida real, quem chegou na seqüência foi a namorada, que escutara do funcionário a orientação de jamais – jamais! – deitar-se no tobogã, para não abusar da velocidade.

Como disse, podemos dividir as pessoas em radicais ou conservadores. No meu caso, evitar o radicalismo é questão de conservar a integridade física e mental. Sou parceiro para uma partida de vôlei, xadrez, par-ou-ímpar. Topo relacionamentos estáveis e duradouros, misto-quente na rodoviária, voto secreto. Viver no Brasil já garante uma dose quase inadmissível de incertezas. Sou um conservador radical porque, fora de eixo, saio invariavelmente esfolado. Assombra-me o fantasma do tobogã.

4.12.08

Número 294

ULTIMATO

Enquanto penso, contrações involuntárias – mas não menos precisas – se ocupam em manter a musculatura postural com o tônus adequado para a posição de equilíbrio em que me encontro, de pé, ereto. Trabalham em um sistema de economia de energia: não tenho câimbras nem desabo ao chão. Há uma certa pose.

Enquanto penso, minhas pálpebras disparam piscares ocasionais na medida em que os olhos pedem um pouco de lubrificação. As pupilas se contraem e dilatam para ajustarem-se à luz do ambiente. Adrenalina. Nenhum movimento escapa de minha vista: nem mesmo aquele captado pela visão periférica. Permaneço atento.

Enquanto penso, o diafragma e os demais músculos auxiliares da respiração nem cogitam suspender seu ofício. Os pulmões, inundados de ar a cada onda respiratória, tratam de cumprir sua função de reter o oxigênio para, via corrente sangüínea, contemplar cada uma das células do corpo. Tudo no devido tempo. Ainda vivo.

Enquanto penso, movimentos peristálticos transportam lentamente aquilo que fora antes chamado de almoço por todos os muitos metros de intestino. Estão sendo absorvidos os nutrientes para, em algumas horas, ser descartado o restante. Antes disso, os esfíncteres estarão sob controle de um piloto automático – este que é responsável, entre outras atribuições, por não me fazer passar vergonha. Me controlo.

Enquanto penso, minhas unhas crescem, minha barba cresce, muitas células nascem e morrem. Alguns fios de cabelo caem. Pior: fora de qualquer previsão, uns caem para sempre. Outros, nossa!, antes escuros, estão nascendo brancos. Minha estatura diminui frações de milímetro a cada dia, vítima da implacável força gravitacional. Envelhecerei?

Enquanto penso, o coração compõe um número finito, mas indeterminado, de contrações. É uma ampulheta girada ainda no útero materno, escorrendo a areia da vida de grão em grão, sem volta, sem piedade. Se houvesse silêncio, escutaria suas batidas, teria consciência de seu ritmo, saberia de sua urgência. E nem assim faria muita diferença. Pulso. Repulso.

Enquanto penso, tudo em mim tem uma razão de ser, de estar e de acontecer, independente de meu raciocínio, ou mesmo apesar dele. A saliva continua brotando em minha boca (engulo), a cera em meus ouvidos, o suor na pele, diversos mucos. Mas essa não é a boa ou a má notícia. Quem quer saber?

Enquanto penso, tu me olhas com ar inquisitório, almejando algo mais do que uma existência instintiva, medular, peristáltica – justo essas que agora se mostram. E a lágrima que nasce não será capaz de saciar a sede das tuas expectativas. É isso que agora penso. Penso, também, que o ácido a me arder o estômago é uma resposta insuficiente, pois apenas eu o noto. E que ruborizar será pouco.

Enquanto estou em teu mirar (enquanto penso), meu silêncio aquece a arma que tens na mão. Comicha o dedo que está no gatilho. Agrava nosso impasse. Enquanto tudo no meu corpo funciona à revelia do pensamento, dispensando-o, paradoxalmente, o corpo depende mais do que nunca do que passa em meus pensamentos.

Enquanto penso, tu não pensas.

Luto.

27.11.08

293

TER OU NÃO TER

Parece ser consenso o fato de a classe média estar voltando a ser mais representativa no Brasil. Ainda bem, dirão os economistas, pois ela é o motor do crescimento econômico. Para eles, países desenvolvidos são marcados por ampla predominância desta fatia no prisma social. Ainda bem, dirão os governantes, já que a classe média é a vítima primordial dos impostos e, aqui, “fatia” ganha a conotação mais alimentícia para o apetite público. Segundo pude apurar em declarações recentes, estudiosos de economia e políticos divergem apenas na hora de classificar alguém como pertencente à faixa intermediária de consumo e renda. Na falta do número definitivo de salários mínimos para enquadrar determinada família na classe média, proponho uma classificação semântica: ricos e pobres são classes “e”. Os médios pertencem à classe “ou”. Explico.

Os ricos costumam morar em casas (apartamentos, coberturas, chácaras) amplas e localizadas em endereços considerados nobres. E são eles, também, os proprietários dos carros luxuosos e importados, quase nunca solitários nas espaçosas garagens – a regra costuma ser um para cada componente da família. E são ricos os melhores clientes de agências de turismo, hotéis e companhias aéreas. E as joalherias e as butiques e as escolas particulares e as casas de espetáculo e os restaurantes da moda e uma infinidade de comerciantes e prestadores de serviços são sustentados pelo estilo de vida dos ricos. Enfim, os ricos têm isso “e” aquilo. Fazem isso “e” aquilo. Freqüentam esse “e” aquele lugar.

Os pobres, ao contrário, habitam as mais modestas residências das cidades – algumas, inclusive, que nem mereceriam esta classificação: casebres localizados na periferia, em áreas invadidas, favelas e vilas populares. Pobres andam apenas de ônibus e trens e de bicicleta. Conhecem cidades charmosas pela TV – tela que os apresenta para hotéis, parques, aviões; praias de água cristalina e montanhas nevadas. Têm os filhos nas escolas públicas e têm direito às cestas básicas e recebem doações de roupas e freqüentam lazer gratuito e trabalham nos postos menos qualificados das empresas e são os clientes do mercado informal – o qual, muitas vezes, o compõem. Logo, aos pobres falta galgar quase todas as conquistas da civilização “e” tudo mais. Uma soma repetida de carências.

E a classe média? Bom, diferente dos que não precisam escolher e dos que não têm escolha, ela é a classe do “ou”. Ou moram em uma boa e bem localizada casa, ou guardam um carro de luxo na garagem. Ou conservam os filhos em escolas particulares, ou passam uma temporada por ano conhecendo o mundo. Ou se vestem com roupas de grife, ou estacionam no shopping um carro acima de mil cilindradas. Ou vão ao show do cantor famoso, ou mais de duas vezes por mês em restaurantes. Ou pintam a casa, ou trocam de carro. Ou são sócios do clube, ou pagam a prestação da casa na praia. Ou presenteiam a filha com uma festa de quinze anos, ou lhe proporcionam uma viagem. Ou se esfolam para pagar a faculdade dos filhos, ou já se esfolaram para que o jovem apenas estudasse – bastante – para passar em universidade pública. Ou, ou, ou, em infinitas combinações.

Assim fica fácil de saber se você, leitor, é de classe média: meça o quanto de sacrifício contém cada uma de suas conquistas. Toda vez que estiver abrindo mão de muitos hábitos ou algum patrimônio para galgar um objetivo mais elevado na escala de valores, estará honrando o pertencimento à Associação Permanente Trapezistas do Orçamento (APERTO), cuja bandeira se parece com um cobertor curto. A boa notícia é a enorme satisfação contida em cada esforço premiado. A má notícia é que, quando alguém de classe média alça uma vitória sublime (casa boa, carrão, temporada em Paris), acaba sendo rotulado de rico pelos pobres, e de inconseqüente pelos abonados. De uma forma ou de outra, parecerá viver uma ilusão. Para concluir, me sirvo da grande definição de classe “ou”, que até onde sei não foi cunhada por economistas ou políticos, e sim pela minha esposa: “classe média é aquela que sabe o que está perdendo”. Ou você tem uma melhor?

20.11.08

Número 292

AS TRINCHEIRAS DA ETERNIDADE

Múltiplas obras de ficção, tanto de literatura como adaptadas ao cinema, projetam um futuro aparentemente sombrio: homens despidos de suas conquistas tecnológicas e sujeitos, outra vez, às forças hostis da natureza. Quem imagina que tais presságios são fruto de autores ressentidos com os rumos da sociedade, protestando em delirantes brados de alerta, engana-se feio. Escritores são, especialmente, bons observadores. Percebem, assim, a transitoriedade do homem – que se julga tão poderoso – e a força da natureza, eterna em sua capacidade de recuperação.

Para a confirmação desta tese, proponho um exercício prático: escolha um pedaço de chão de qualquer tamanho e faça o mais caprichado jardim, tão lindo quanto possível. Cuide de cada detalhe: ph do solo, nutrientes, sombra, flores, pedras decorativas, folhagens e tudo o que mais lhe agradar. Zele por tal ambiente durante um ano – tempo que, creio, levará para a vida se fazer plena na beleza planejada. Então, finja morrer, isto é, não controle – altere – mais nada. Depois, acompanhe a evolução do seu jardim por igual período, com a acuidade de um cientista. A natureza, em sua vocação de vida, proverá ao espaço delimitado uma imensa diversidade, substituindo o tênue critério da estética humana por outro muito mais seguro: o do equilíbrio ambiental.

Em última instância, é essa visão que assombra os ficcionistas: a natureza aguarda apenas uma distração do homem – um mero acidente de percurso, uma fatalidade qualquer – para seguir seu rumo. Depois, terá muito tempo para restabelecer a ordem, mesmo sendo ela nova, posterior às alterações advindas de nossa passagem na terra. Porém, em nada parecida com os jardins artificiais por nós denominados de cidades – lugares com menos vida, no sentido de diversificação de espécies, do que qualquer inocente matinho de arrabalde. Um exemplo? No Parque Estadual de Itapuã, às margens do Guaíba, ambientalistas preservam as ruínas das casas de invasores para que nós, visitantes, possamos testemunhar a impressionante retomada da natureza, ocorrida em pouco mais de uma década. Calcule, agora, o que restará das habitações em milênios.

Quando os ecologistas defendem uma mudança de rumo na dita civilização, redirecionada ao equilíbrio ambiental, estão mirando muito mais na salvação da humanidade do que no socorro ao planeta em si. Em milhões de anos, a terra viu nascer e sucumbir todo tipo de animal e planta, cujos resquícios nos são oferecidos aos estudos paleontológicos. Se alterarmos demais o ambiente que permitiu nossa presença por aqui, fazemos crescer nosso próprio risco de extinção. Basta olhar o exemplo de tantas outras espécies – vítimas do desmatamento e da poluição –, outrora imponentes, transformadas em criaturas tão frágeis como as flores do nosso jardim. Há um limite nesta sanha de progresso: tornarmo-nos, com ironia melancólica, incompatíveis com o meio que modificamos.

Ao contrário do que se possa pensar, a sociedade não está imune a um colapso energético, tecnológico ou de saúde pública. E não são apenas os escritores a pressentir e temer por isso: há um alerta geral neste sentido, partindo de diversas áreas do conhecimento. Se a nossa vida tornar-se excessivamente dependente das alterações que propiciam um conforto de caráter imediato e consumista, ela estará em sérios apuros. Respeitar a natureza na qualidade de seres transitórios é nossa única chance de acompanhá-la em sua plenitude. Estar em harmonia com a diversidade biológica é a oportunidade de também fazer parte dela. Despoluir o meio ambiente e salvar espécies em vias de extinção é antecipar ações que, no futuro, podem garantir nossa própria continuidade. A vida sempre vencerá a batalha, já está decidido. Logo, é preciso lutar a seu favor, agora mais do que nunca, nas trincheiras da eternidade.

13.11.08

Número 291

EMENDAS E SONETO

Querida,

Se você está lendo esta carta, é porque abriu a gaveta que era só minha. E, prosseguindo na busca de documentos, é certo que chegará ao envelope pardo que está bem no fundo. Por isso, me adianto em explicar seu conteúdo... Caso não tenha desconfiado, sempre sonhei em ser poeta. Quando lhe conheci, compus um soneto dedicado ao mágico sonho que era o amor nascente. Porém, por perfeccionismo – insegurança? –, voltei ao poema a cada março, nosso mês. Minha idéia era revisá-lo para que fosse ao máximo fiel, sem medo de fazer supressões ou acréscimos.

A primeira grande alteração aconteceu depois do casamento. Para melhor, imaginava: muitos versos românticos cederam espaço para um conteúdo mais envolvente. Erótico, ouso dizer. Troquei minha imaginação por nossas descobertas. Seu corpo ganhou mais destaque a cada verso. Cantei suas formas e sabores; seus olhos e suspiros; seu sorriso ao amanhecer. Garanto que não poupei mesuras. Estava quase convencido a lhe mostrar o soneto quando chegou a notícia da gravidez. Senti que era preciso, contigo, esperar.

A chegada do Alfredinho deu novas cores à minha vida. Como havia intuído, meu soneto já pedia outros versos, com o encanto da maternidade, robusta e lânguida. Descobri em você uma nova mulher. Plena, eterna. Perdi noites em busca do melhor tom – um tanto de cantiga de ninar, outro de amor roubado nas madrugadas. Também tínhamos a casa nova, ambiente idílico para versos cabais. Paredes brancas, imaculadas; janelas nuas e poucos móveis. Tudo a me ocupar. Novas rimas, inclusive.

O soneto parecia novamente pronto antes mesmo da mobília estar completa. Mas a vinda de um novo filho impôs paciência. Filho nada: a nossa Ana Maria. O anjo mais lindo que Deus criou, agora estava posto em meus braços. Pergunto: como poderia deixá-la de fora dos versos, se Aninha era poesia em forma de gente? Além do mais, se um dia nossa flor quisesse ler minha obra, morreria de vergonha das confissões sensuais que cometia. Labutei na busca de casar aquele amor carnal à condição de família, legado de um novo tempo. Com o correr dos versos, o erotismo findou sutil, ainda que presente. O soneto, enfim, estava no ponto para ser revelado. O que não aconteceu...

André, rebento temporão, soterrou meu intento. Horror confessar algo tão imerecido, porém verdadeiro: já não conseguia cantar o terceiro filho com o mesmo lirismo de outrora. Junto a isso, sentia culpa em citar com tanta devoção o primogênito e sua irmã, relegando o caçula a uma emenda mal feita. Ou entravam os três com a mesma ênfase, ou saíam todos. Quando vi, o soneto, de pronto, ficou reduzido ao começo e umas rimas soltas pelo meio. Ainda mais que suprimi o cantar da casa, desiludido com aquela teimosa infiltração a nos escurecer as paredes. E você, minha amada, sempre exausta, em nada acudia o poeta.

Foram incontáveis os marços em que movi poucas linhas. Pobre soneto, restou abaixo das mensalidades escolares, das prestações da casa da praia, dos planos de viagens (adiados). Quando, enfim, os filhos saíram de casa, pensei que seria fácil concluir o trabalho: fazer o soneto definitivo. Passei vários anos, a cada fim de verão, lembrando contigo nossos tempos áureos. Aposentado, tinha paz, mas a inspiração me abandonara. Suprimir versos me parecia indiferente. Acrescentar, impossível.

Logo mais você encontrará, minha querida, sacramentadas no envelope pardo quase cinqüenta versões da mesma poesia. E nenhuma será melhor para a despedida do que o soneto original, de todos o mais fiel – meu retorno à magia dos sonhos.

6.11.08

Número 290 + 2 convites

Olá! Quer se encontrar comigo na 54º Feira do Livro de Porto Alegre?

Dia 7/11, sexta-feira, 20h, estarei autografando Pedra, Papel e Tesoura ‒ Contos de Oficina 38, junto com os demais autores, no térreo do Memorial. O livro, organizado pelo Prof. Assis Brasil, surpreende pela qualidade e diversidade de vozes literárias. Recomendo!

Sábado, 8/11, 17h30min, palestra Centenário de Cartola ‒ as rosas não falam, sala Arquipélago do CCCEV, com a Profa. Dra. Maria Regina Bettiol, o poeta Prof. Dr. Marlon de Almeida e o músico Rubem Penz (eu); canja sonora com David Sosa (voz) e Cristiano Fischer (violão), comigo na percussão. Horário bom, de graça e muito bacana!

Ficam os convites e meu abraço.


O OVO OU A GALINHA?

Quem nasceu primeiro: o homem na cozinha, ou a cozinha na área social da casa? Essa dúvida saiu da casca passeando com minha esposa pelas ruas do nosso condomínio. Afinal, em várias residências ‒ quase todas bastante novas ‒ a cozinha é vista na fachada, adiante até mesmo da sala de estar. E, não raro, são os homens que estão lá dentro, pilotando um belo fogão ao invés da churrasqueira. Aqueles mesmos que em tempos recentes se orgulhavam de não saber fritar um ovo ‒ atributo (defeito?) ligado ao machismo ‒, agora ostentam um avental bem-humorado.

Fácil de pensar que primeiro nasceu o homem na cozinha. Porque a mulher, depois de ser cozida em séculos de submissão, queimou o sutiã e quebrou os pratos. Assim, por livre e espancada vontade, o homem consentiu em dividir com ela as lides domésticas, cada vez menos realizadas por serviçais. Em um movimento coincidente ‒ e talvez não por coincidência ‒ uma série de inovações foram desenvolvidas para deixar a preparação do alimento mais fácil, prática e agradável. Eletrodomésticos com comandos eletrônicos; frigideiras, panelas e fôrmas antiaderentes; fornos e liquidificadores autolimpantes; cutelaria de luxo e molhos pré-cozidos, tudo criado por obra da engenharia de... homens! A galinha, também, passou a chegar limpa, separada em pedaços e sem pele. Uma barbada.

Porém, mesmo depois disso tudo, faltava o ornamento do prato: importar o status dos grandes chefs de cuisine e transformar o limão em limonada. Neste momento, preparar o almoço se transformou em artifício de sedução. O velho truque de conquistar pelo estômago mudou de lado e, cada vez mais, as mulheres passaram a apreciar os bons de colher de pau. Mas é complicado ser pavão em um ambiente arcaico e relegado aos fundos da casa. Foi quando caíram as paredes da cozinha ‒ que ganhou visual para a sala de jantar ‒ e seus móveis abiscoitaram uma beleza ímpar. Por fim, a peça conquistou um lugar de destaque nas plantas baixas, transformando-se na cereja do bolo. A novidade à mesa? Mulheres que, em matéria de panelas, não entendem um ovo. Com orgulho!

Ou nada disso: o macho da casa resistiu tudo o que pôde antes de esquentar a barriga no forno. Com isso, foi a cozinha em novo status quem primeiro nasceu. Todas as invenções que facilitaram a vida da dona-de-casa, mesmo quando criadas por engenheiros homens, vieram para ser usufruídas, sim, pela mulher. Ela, independente e brilhante, jamais poderia ficar excluída enquanto preparava o jantar, inspirando os arquitetos a integrarem os ambientes. E, só depois da rotina deixar de ser massacrante e a cozinha ganhar status na casa (e a empregada pedir as contas), apenas aí o homem foi convencido a aderir. Agora, mais do que nunca, está frito: o tempo do galo bebendo uisquinho no sofá terminou.

Eu não acredito que os homens sejam altruístas a ponto de revolucionarem a cozinha para suas mulheres e, depois, em generosidade suprema, ajudar em casa. Com a máxima de que a dor ensina a gemer, bastou a esposa começar a trabalhar fora para o mercado perceber a oportunidade de negócios ‒ homem no fogão, só sendo mais fácil e mais bonito. Com isso, o processador de alimentos nasceu depois de um marido chorar com a cebola. O teflon depois de ele gastar as mãos lavando uma leiteira. O forno de microondas para ele poder acordar dez minutos mais tarde. Entre o ovo e a galinha, acho que o primeiro a nascer foi o pinto: um rapazola solteiro, morando sozinho, precisando se virar e ainda conquistar a namorada. Isso: a idéia de integrar a cozinha à sala foi do pinto!

3.11.08

Indicação para pêmio


Com alegria trago uma boa notícia aos leitores do Rufar dos Tambores: o blog foi indicado finalista do 1º Prêmio Gaúcho de Arte Eletrônica. Desde já, divido esta honra com você, leitor!

30.10.08

Número 289


SAUDADE NA PONTA DOS DEDOS

Muita gente tenta entender a saudade. Muita gente tenta explicá-la. Outros tantos a cantam em versos dedicados (delicados?). Sevem-se de sua natureza de contrastes – uma alegria triste; uma melancolia que finda em uma lágrima desaguando em um sorriso. Tema recorrente, a saudade – lá vou eu me arriscar em palpites –, antes de ser um o quê, ou sua ausência, é um quando. Igual ao filho que se esconde na casa para assustar o pai que chega do trabalho, a graça da saudade, sua força, seu encantamento, reside em nos surpreender quando estamos distraídos. Mesmo que saibamos que ela estará sempre ali, na espreita, esperando a melhor oportunidade, ela vive de pregar peças.

Saudade é tempo. Saudade é passado. É o que se foi, ou o que um dia fomos. Por exemplo: morro de saudade do Ford Corcel azul 77 que dirigia até os vinte e poucos anos. Ainda sinto o seu cheiro e o toque frio do volante – tão liso de um lado, ondulado de outro. O ronco de seu motor ficará para sempre na memória, mesmo sabendo que nem de perto era contagiante como o dos possantes V8. Friamente, jamais trocaria o carro que tenho hoje para voltar a dirigir um Corcel. Aí que está: saudade, saudade mesmo, tenho de meus dezoito, vinte e poucos anos, e de tudo o que representava aquele carro para mim. Por isso, quando um Corcelzinho bem conservado cruza comigo no trânsito, assim de surpresa, bate a saudade.

Quando morava em um pequeno apartamento de um quarto, de aluguel, bem velhinho e nem tão bem equipado, eu sonhava e ter uma casa. De preferência com pátio. Melhor dizendo, nós sonhávamos, pois naquele espaço apertado nascia a minha família. Justamente por isso, por ser aquele um tempo assim precioso em minha vida, cheio de projetos, basta encontrar um ex-vizinho por entre os corredores de um supermercado para bater a saudade danada do apartamento no simpático bairro Petrópolis. Tão poucos metros quadrados, e tantas boas lembranças...

Ainda no final de semana, enquanto acompanhava meu filho em uma competição esportiva no ginásio da escola, senti saudade dos meus doze anos de idade. Não fui um atleta muito brilhante. Nem posso dizer que fui realmente um atleta, aliás. Porém, quando fora da quadra (por baixo, noventa por cento do tempo), a diversão estava garantida: à minha volta, juntavam-se os companheiros de charanga. Tarol, surdo, tamborim, ganzá e agogô, quase todos emparelhados no mesmo ritmo, enchíamos o espaço de animação. Saudade é um canto improvisado e caótico, motivando o time da turma, exaltando cada ponto ou cada gol.

Mas escolhi falar deste sentimento tão traiçoeiro por causa de uma passagem ainda mais recente. Este mês, em seu aniversário, meu pai teria completado setenta e três anos. No dia, claro, lembrei dele logo cedo. Estranhei um pouco não ter sentido uma arrebatadora saudade. Quase bateu uma culpa por causa da aparente frieza. Terça-feira, assistindo a um show musical, não pensei no pai nem mesmo quando entrou no palco o acordeonista Matheus Kléber – e olha que todo acordeão remete a ele, pois este era seu instrumento de músico bissexto. Permaneci com a memória distraída até reparar no movimento dos dedos do músico na direção das teclas graves: o que vi, foi a mão direita do meu pai. No ato, me deu um aperto no peito.

Não recordo do pai me fazendo qualquer carinho. Não era o jeito dele. Mesmo assim, quando o jovem acordeonista deslizou a melodia pela ponta dos seus dedos, foi como se a mão do pai me tocasse. Suave como um verso triste. Música para a minha pele. Tempo que ficou para trás. Muita saudade.

22.10.08

Número 288

ACHADOS E PERDIDOS

O que é a leitura de crônicas, senão uma visita periódica à sala de achados e perdidos? Dessas que fazemos pela força do hábito, quase como o abrir da geladeira para dar uma espiada na própria fome. Ou, quem sabe, movidos pela clara impressão de que estamos a todo o momento perdendo coisas no caminho, distraídos ou apressados, e que, com certeza, alguém juntou para nós.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos, por exemplo, a nossa infância. Aquele medo do escuro, a teatralidade do Natal, o ataque de risos durante a missa. A amizade descomprometida do colega de escola, a primeira paixão e, logo em seguida, a descoberta de que, naquela altura, ainda não estávamos preparados para as conseqüências do amor. Encontramos a mãe jovem, a irmã implicante, as chegadas e partidas do pai. Lembranças que pareciam perdidas até nos depararmos com elas ali, na crônica.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos os postais da viagem inesquecível chamada juventude. Paisagens que nem existem mais – a começar pela nossa própria silhueta –, mas que a memória registrou em fotos divertidas, relatou tudo em detalhes ali no verso, endereçou para a eternidade e deixou para o tempo a tarefa de selar. Encontramos muitos sonhos caídos de nossos bolsos sem que tenhamos notado sua ausência – que falta faz uma niqueleira na hora de guardar os centavos da vida – os quais agora perderam sua validade. Mas, na crônica, são resgatados para a nossa coleção.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos aquele detalhe que ainda ontem estava bem na nossa frente e, displicentes, deixamos que fosse levado pelo vento (ainda assim, mantenha as janelas abertas). Encontramos a mentira do político, a beleza da cura, a simplicidade do gesto, a violência das palavras, o encantamento da solidariedade. Encontramos também, meu Deus!, o sorriso franco que nem imaginávamos ter perdido. Encontramos os primeiros passos do filho, o ranço do chefe, o batom da esposa, ovos de gema cor-de-laranja, máscaras, sujeira embaixo do tapete. Como um espaço tão pequeno de texto pode abrigar tanta coisa perdida?

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos uns aos outros, todos em busca do que, em algum tempo, nos escapou. É quando ela vira, também, sala de bate-papos, com suas polêmicas e celebrações; revelações e preconceitos; partilhas e apropriações indébitas. Encontramos muita discordância, algumas inamistosas. Mas coincidências e identificações em número superior ‒ ainda bem! Encontrar-se na crônica é uma experiência tranqüilizadora: significa que não estamos loucos e os outros também pensam/sentem o mesmo que nós.

E o cronista é este sujeito meio à toa que vive perdido e, ao mesmo tempo, vive de achados. Se ninguém soltasse aquela frase peculiar, se todos guardassem os temores apenas para si, ou se o acaso não espalhasse os papéis em nossas mesas, o cronista estaria frito. É quando junta uma ilusão antes de ela entrar na boca-de-lobo, ao reparar em uma sutileza esquecida no espaldar da cadeira, no instante em que é o único que viu a graça rolando escada abaixo, nestes momentos o cronista se torna o fiel depositário do cotidiano. No jornal, no blog ou no livro, a porta desta sala de achados e perdidos estará sempre franqueada para quem se dispuser a ler. Bisbilhotar o que os outros perderam, ou mesmo procurar um espelho. Assim, sem muita pretensão, como quem abre a geladeira para averiguar a própria fome.

15.10.08

Número 287 e convite

Convite:
Lançamento de Ponto de Partilha I,

organização de Valesca de Assis & Rubem Penz, Ed. Kalligraphos

Tenho o imenso prazer em convidar você para a tarde/noite de autógrafos dos autores oriundos das oficinas literárias de Valesca de Assis. A saber, foi com Valesca que cursei minha primeira oficina e, ao lado dela, também estreei na função de orientador. Se já não bastasse, tive a honra de participar deste livro cumprindo a função de co-organizador, além de escritor. Venha compartilhar essa nossa conquista! Sua presença nos será grata.

Quando: 20 de outubro, segunda-feira, da 17 às 20h
Onde: Alameda dos Escritores do Shopping Total, Av. Cristóvão Colombo, 545, Porto Alegre

REPARANDO BEM...


“Reparando bem
Todo mundo tem *
Só a bailarina que não tem”

Edu Lobo, Chico Buarque & Censura


Reparando bem na primeira gravação de Ciranda da Bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, contida no álbum O Grande Circo Místico, o censor da época sonegou dos ouvintes a palavra pentelho. Este tema violentado, parcela de uma obra maior e desenvolvida para um espetáculo do Ballet Guaíra, vinha com a interpretação de um coral de crianças. Quanta ironia! Mesmo assim, seu alvo era, por tudo, o público adulto. Reparando em uma versão mais recente da mesma Ciranda, feita por Adriana Calcanhoto no CD e DVD Adriana Partimpim, o pentelho outrora suprimido aparece pronunciado com todas as letras, sem constranger ou escandalizar ninguém. E, olha a ironia outra vez, faz parte de um trabalho dirigido para crianças!

Reparando bem no manifesto de Pedro Cardoso contra o uso apelativo e indiscriminado do nu em espetáculos de teatro, cinema e TV, fulcro de uma polêmica em voga, é direta a associação de sua proposta com o antigo comportamento da censura. Afinal, tanto antes como agora, o que está em questão é a moral ou, mais especificamente, a pornografia. Reparando nos argumentos de quem repudia a iniciativa do ator, fica evidente que a sociedade está cada vez mais tolerante com a exposição corporal. A nudez, sim, tornou-se algo banalizado: de tanto ver homens e mulheres pelados, nem mesmo as crianças se escandalizam ou se surpreendem. E isso desmontaria a tese do apelo pornográfico no uso constante do nu.

Reparando bem no objeto da polêmica, no caso a mulher tornada objeto (e o homem também), Cardoso está coberto de razão quando denuncia uma grande dose de gratuidade na exposição de atores sem roupas. Cruel, até, pois condiciona os profissionais aos padrões estéticos das revistas especializadas, deixando os critérios da fita métrica em um patamar adiante do verdadeiro talento de interpretação. Reparando em seus detratores, a profusão de artistas desnudos viria a ser um desserviço para o uso do nu com determinada intenção, tenha ela um caráter sensual ou o objetivo de chocar, ferindo de morte tal recurso. Não nos esqueçamos de que um umbigo de fora já foi motivo de escândalo no passado recente!

Reparando bem no pentelho subtraído da música do Edu e do Chico, ele acabou premiado com um valor erótico superior ao da intenção original no momento em que o silêncio toma o seu lugar. Agora, de volta ao poema, o pêlo pubiano regride para a categoria do banal (todo mundo tem) e do infantil (todo mundo fala), quase suprimindo da impúbere bailarina o caráter de pureza. Assim, chega-se à conclusão de que frear em certa medida a nudez indiscriminada será uma forma de devolver ao corpo revelado o seu caráter dramático. E, neste sentido, quem condena o ator Pedro Cardoso por considerá-lo puritano, não vê o quanto, por assim dizer, se valorizará o nu ao evitarmos o exagero.

Reparando bem, o Agostinho/Pedro Cardoso é o verdadeiro sem-vergonha dessa história. E quem permite e promove a superexposição dos corpos, com o tempo, fará nosso ânimo amolecer de vez.

(Mini) Conto Contíguo

Ponto final

‒ Hei! Olá, você aí em cima: procurando o quê, dependurado nessa interrogação?

7.10.08

Número 286

NOTA FISCAL Nº 2180

Filhos sempre pedem. Muitas vezes pedem sem parar. Pedem até esgotar nossa paciência. Aprendem cedo a dizer: – Eu quero! E repetem esta ladainha como um disco arranhado. Alguns pais, por não conseguirem suportar a carga de pedidos, até evitam andar com os filhos na hora de fazer compras. Mas se a criança fica em casa, os comerciais da TV dirão: – Peça! Os vizinhos e colegas com suas mil novidades dirão: – Peça também! Conseguir negar se constitui uma das tantas tarefas dos pais/educadores. Preparar os filhos para lidarem com as frustrações desde cedo e mostrar-lhes o singelo fato de que não se pode – ou deve – ter tudo é o melhor caminho para forjar adultos saudáveis. Enfim, recusar-se é, antes de tudo, uma prova de amor.

Claro que aí tem um problema: os pais gostam de atender os pedidos dos filhos, tenham eles seis ou dezesseis anos. Por que negar um sorvete, uma pastilha de hortelã, uma barra de chocolate? Quando temos condições, qual o problema de comprar um brinquedo, um jogo, uma bicicleta? Será que aquela novidade eletrônica “que todo mundo já tem” precisará ser eternamente sonegada em prol de uma sólida formação de caráter? Ainda mais em uma data comemorativa? Não! O brilho nos olhos de quem tem o pedido satisfeito é indescritível. É muito gratificante ser capaz de oferecer aquilo que, se fôssemos crianças ou jovens, adoraríamos ter. Ainda mais se o filho vai bem na escola e não causa preocupações. A felicidade de quem oferece, ainda mais quando temperada por renúncias pessoais, também pode ser considerada uma das faces do verdadeiro amor.

Como toda criança, pedi muito mais do que fui atendido – e olha que, pensando bem, ganhei horrores de coisas. Lógico: pedi tudo aquilo que em minha época foi moda ou novidade. Agora, vejam só, me tornei julgador de pedidos. Com o risco de estar errando aqui e ali, resta o consolo de que, deixando de ganhar tudo de mãos beijadas, minha gurizada vai crescer com a consciência de que as coisas precisam ser conquistadas. Lembrando dos meus pais, o que me foi oferecido ou negado deve ter seguido mais ou menos os mesmos critérios que adoto na posição invertida, em pleno acordo de casal: balanços de viabilidade econômica, avaliação da real utilidade, palpite sobre o quanto o pedido reflete um desejo verdadeiro e percepção de importância do objeto (ou experiência) na vida do filho.

Tudo isso veio à baila neste momento, bem quando minha mãe me ofertou um documento caprichosamente guardado em sua casa: a nota fiscal de número 2180 da Casa Beethoven, emitida em 22 de dezembro de 1977. Nela, está descrita a compra de uma bateria profissional no valor de onze mil cruzeiros. Incrivelmente, no mesmo dia em que foi encontrado esse papel nas coisas do pai, eu, ainda sem saber, expus para amigos a circunstância daquela compra: a promessa feita e cobrada, o acordo entre pai e filho. Descrevi tudo em detalhes, pois, como não poderia deixar de ser, o dia – aquele Natal – se tornaria inesquecível.

Tenho medo de calcular o que representa na atualidade o valor pago pelo instrumento musical no distante ano de 77. Garanto aos mais jovens que deve ser uma cifra muito, muitíssimo superior ao que custa uma bateria comum nas lojas de shopping. Contudo, nem o dinheiro empregado, nem o barulho que estaria por vir até que eu me tornasse capaz de acompanhar a música, nada dissuadiu meu pai de me dar tal presente. Ainda bem! Tomara que, quando chegar a minha vez de atender a um pedido que venha a determinar a vida dos meus filhos, eu esteja assim atento. Devo isso a eles. E devo, também, ao avô deles.

1.10.08

Número 285

SEDUÇÃO

A mulher traz em seu código genético um compêndio rico e detalhado de estratagemas de sedução. O quanto e quando fará uso destas informações é mais um de seus mistérios. Certo mesmo, apenas a fragilidade masculina em lidar com a situação posta, caso ela resolva conquistá-lo. Vou dar um exemplo: você está lá inerte, desligado, em paz. Eis que chega uma morena com brilho fulgurante nos olhos e um sorriso tão acriançado que provoca, de imediato, o efeito espelho (meninas, sorrir de volta nem sempre é galanteio – pode ser apenas boa educação).

Ela puxa uma conversa sobre amenidades e, com maestria, divide o olhar entre um mirar direto e um desviar (falsamente) tímido. Fala de perto, quase sussurra – quando a mulher diminui o volume, usa um tom mais grave e gasta mais ar do que o necessário, permitindo que seu hálito se insinue. Preocupado em escutar, você se distrai do olfato e da visão, que passam a trabalhar contra a sua vontade, mandando relatórios sobre eventuais ferormônios e volume dos seios. A temperatura corporal sobe e, ato contínuo, todas as percepções sensoriais se aguçam, curiosas. Mais um pouco você estará fantasiando cenas luxuriantes.

Mas, digamos que você não reage (sei lá: é distraído, comprometido, tímido) e o silêncio se impõe. Neste momento, ela volta à carga parecendo responder a pergunta que não foi feita, brejeira: Sou laboratorista. Mas desejo mesmo cursar psicologia e trabalhar com crianças (falar de crianças assim, nessa situação – e com tal desfaçatez – é quase um crime). Gosta de crianças? E agora? Como negar? Impossível, todos gostamos de crianças... É tudo que ela precisa para engatar mais cinco minutos de hálito fresco e sorriso franco. Sua estrutura começa a ser corroída, mas você se mantém teso, cerimonioso. Ela avança: Soube que você é escritor. (ah, soube? como?) Minha mãe quem me contou.

Horror! Com uma mãe interessada por você, se é quase genro. Pior: você repara que a menina está naquela idade eqüidistante entre ser criança e ter trinta anos. Nada menos do que a melhor. Ela diz que não foi assistir a sua palestra porque estava em aula. Mas quer comprar o livro. E espera um autógrafo: Lindo! (massagem no ego, golpe baixo) Nocauteado em pé, você apenas agradece, preso no córner. Então, sem misericórdia, ela mordisca o próprio lábio inferior e desfaz o gesto com novo sorriso – maior, sem-vergonha. Traz o dedinho apontado e o encosta em seu rosto: Você tem um monte de pintinhas! Que bonitinho! Deixa eu contar...

Sedução, enfim, é isso: astúcia, ousadia bem medida, controle da situação. É muito do que experimentamos ao escrever. Quem cria textos sabe o quanto é excitante planejar o modo de conduzir o leitor pelo caminho imaginado. Por exemplo: agora, você pode estar pensando que o que foi narrado aconteceu de verdade, que a moreninha existe e, dia desses, veio falar comigo. Pensa também que uso essa crônica para contar o fato aos amigos, deixando-os podres de inveja – ainda mais depois de sugerir um final que só quem aprecia dedos curiosos sabe onde pode chegar. Isso, ou que eu tenha criado tudo para testar o humor da esposa, que lê todas as crônicas antes de serem publicadas.

Quem me conhece sabe do que eu seria ou não capaz.