31.10.12

Coluna do Metro Porto Alegre 31.10.2012


COM VOCÊS, NOSSA SANTA SEDE
Resgatar para os encontros o hábito dos maiores cronistas do Brasil, que deixavam a redação dos jornais em grupo para terminar o dia (ou começar a noite) nas mesas de bar. Eis a proposta fez nascer minha oficina literária & livro Santa Sede, crônicas de botequim, em seu terceiro ano. O que pode parecer esperteza, combinar trabalho com boemia, é, na verdade, muito sério: devolver a crônica ao seu habitat natural – a vida ao rés do chão.
O resultado é mais do que positivo. A soma do ambiente descontraído e rico dos bares, a simpatia dos garçons e o aditivo dos petiscos e das bebidas potencializa a sensibilidade e reforça os laços. Desde os primeiros minutos, já não vemos orientador e alunos: são amigos esmiuçando a existência em cada texto. Enriquecemos nosso repertório com os diversos pontos de vista, ao mesmo tempo em que aprimoramos a técnica.
Por falar em técnica, exploramos várias formas da crônica com base em autores consagrados. Nos temas, cada componente estará obrigado a criar suas linhas seguindo modos que, necessariamente, influenciarão o resultado final. Mesmo os mais experientes veem-se defrontados com desafios constantes para compor e apresentar peças com brilho.
Renovo a turma todos os anos. Desde já, estou selecionando autores para a oficina seguinte, dando prioridade para jornalistas, escritores que passaram por outras oficinas literárias e amigos nos quais identifico potencial. Admiro os cultos, preciso dos criativos, mas dou preferência aos generosos, simpáticos e inquietos. São nove disputadíssimas vagas.
Convite: neste domingo (04/11) lançaremos a Santa Sede - crônicas de botequim, Safra 2012 (Ed. Literalis) na 58ª Feira do Livro. Será no Memorial do RGS, 18h. Turma linda e antologia imperdível. Como nas safras anteriores, deixará saudade.
Para quem não chegar do feriado, temos uma segunda chance ainda mais bacana: segunda-feira à noite (05/11) será a vez de autografarmos lá onde a oficina aconteceu, no Boteco Apolinário – José do Patrocínio, 527. Todos são meus convidados: venham conhecer o livro e o projeto. Sem falsa modéstia, recomendo.



25.10.12

Radical ou moderado?

Número 496
Rubem Penz
Engana-se quem imagina que é fácil, confortável ou ao menos indolor ser alguém moderado. Essa é uma opinião bastante comum entre os radicais:
– Veja, ele não se compromete, não luta. É um frouxo!
Para os que vivem nos extremos, todo moderado é covarde. Fraco, volúvel, inconfiável. Jamais pegará em armas. Seguirá as normas estabelecidas, obedecerá as leis, recuará diante do confronto. Eu, reconhecendo-me um moderado (perdão, bravos), ouso discordar e vou defender a classe. Há muito esforço para habitar o meio termo e conviver em harmonia com os extremistas. Serenidade demanda paciência. Suavidade é a mãe de todas as forças.
Puxando a brasa para cima do muro, o moderado é, na verdade, um corajoso: tem peito suficiente para admitir que pode estar errado e, por isso, se dispõe a ouvir o outro. Quanta bravura demanda essa atitude. Vivemos num mundo em que o homem se acostumou a erguer paredes de proteção, e um delas é a das certezas. Colocar em dúvida suas convicções diante de um argumento plausível é implodir a barreira para, assim, expor-se. Contemporizar.
Também é comum confundir a política de não agressão com fraqueza. Cordialidade nunca foi sinônimo de subserviência. Ninguém mais é santo para oferecer a outra face diante da bofetada: basta estar atento aos sinais que precedem a violência e agir antes, de preferência. Ao menos em tempo de evitá-la. Assim como negar um cigarro é mais fácil para quem não fuma, impedir a desavença antes de o mal estar ser instalado sempre funciona.
Na maior parte do tempo, combate quem se sente ameaçado. Isto é, agride quem teme por algo como, por exemplo, parecer diminuído diante do outro – diante da altivez de quem prova ser capaz de abrir-se ao diálogo sem erguer a voz. É quando o moderado exercita sua capacidade de escutar, compreender, manter-se acessível. Todo radical, não importa a causa, ouve apenas a si mesmo. E, ainda assim, ouve mal, pois vive acusando os outros de tomar atitudes iguais as dele.
Claro que o mundo precisa da ação dos radicais. Neles está o estopim de grandes e importantes mudanças na sociedade. Por vezes, imolam-se pela bovina coletividade. Rompem paradigmas e viram a página da História. Porém, para cada dia de conflito, há mil outros de negociações. Assim, salto em defesa dos que comandam a paz. Vida longa aos moderados, homens e mulheres de muito valor e que raramente ganham estátua na praça.

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24.10.12

Coluna do Metro Porto Alegre em 24.10.2012



INTELECTUALIDADE MÓRBIDA
Tenho cá minhas dúvidas se a medicina já catalogou essa patologia que chamarei de intelectualidade mórbida. Porém, há quem apresente sintomas do distúrbio, como arrogância crônica, mau humor e desprezo pela opinião alheia. Segue uma luz sobre o tema.
Intelectual mórbido gosta de ler. Óbvio, quem não gosta? Mal está com um livro nas mãos, já está pensando no próximo. Contudo, acumula conhecimento em desproporção com sua capacidade de compartilhar, o que faz dele alguém cada vez mais pesado. Vira o sabe-tudo e, em casos agudos, preconceituoso. O que era para ser libertador torna-se prisão.
A intelectualidade mórbida também faz muito mal ao coração. Fica difícil amar quando se está intoxicado pela complexidade humana. Quanto mais dela, menos espaço sobra para fluir a inocência dos sentimentos, a pureza das intenções. Isso faz crescer a pressão, exigindo do outro muito esforço para conquistar empatia, desejo, compaixão. Intelectual mórbido não se doa. Compete, desconfia, é impaciente. Na balança, o desencanto.
O SUS não ampara em seus procedimentos quem sofre de intelectualidade mórbida. Nem adiantaria, mesmo. Intelectual, mórbido ou não, só procura o serviço público de saúde no desespero – como acreditar nesse tipo de gestão? Descrença, aliás, é outra consequência da hipertrofia patológica da razão. Se um dia a pessoa teve alguma fé, religiosa ou na humanidade, ela foi sufocada por grossas camadas de pragmatismo.
Um aviso: em nenhum caso é recomendada cirurgia de redução de cérebro. A cura para esse mal passa por educação alimentar e mudança de hábitos. Primeiro, mesmo contra a vontade, há que se consumir alguma dose de frivolidades. A arte, na superfície, contém fibras: alimenta pouco, mas ajuda na formação do bolo (evito aqui a palavra que me veio). Paralelamente, mexer-se. Ir até o ponto de vista do outro, próximo ou distante, emagrece o ego enquanto tonifica a humildade.
Previna-se da intelectualidade mórbida. A inteligência bela e saudável é leve, flexível, aeróbica. Há exemplos assim para serem seguidos dentro e fora da Academia. E, aproveitando a abertura da Feira do Livro, comecemos com doces caminhadas na Praça da Alfândega.

19.10.12

Duas oportunidades para a Santa Sede


Dia 04 de novembro, domingo, 18h, durante a 58ª Feira do Livro de Porto Alegre, autógrafos no Memorial do RGS, 1º andar.



Dia 05 de novembro, segunda-feira, 19h em diante, autógrafos no boteco Apolinário (José do Patrocínio, 527).

De costas para o novo

Número 495

Rubem Penz

Hoje, dentro de um ônibus, sentei-me outra vez num daqueles bancos que ficam de costas para a dianteira do veículo. Não são muitos os que oferecem essa possibilidade, por isso aproveito sempre que posso. Assim é (ou deveria ser) a vida de cronista: sempre que o destino lhe dá uma chance, é bom olhar a cena cotidiana por outro ângulo.

Para quem ainda não experimentou, descrevo algumas sensações, a começar pelas físicas: quando o ônibus freia e todos se projetam para frente, quem está de costas cola no banco. E, ao contrário, ao acelerar, é você quem precisará segurar o corpo. Além disso, os demais passageiros estarão mais preparados para as mudanças bruscas de direção (quebra de esquina ou desvios), enquanto você gozará de inúmeras surpresas, sacudindo um pouco mais para os lados.

Há também diferenças que muito me aprazem: na posição convencional, passo o tempo inteiro visando cocurutos. Cocurutos ruivos, morenos e grisalhos. Lisos, crespos, pixains. No máximo, vemos um perfil ou dois, quando há passageiros conversando ou olhando para fora da janela. Já no banco invertido, não. Fico olhando para os rostos dos companheiros de viagem. Saberei se é bonita a loirinha que entrou no recente ponto, medirei o belo sorriso da mulata, ficarei comovido com a candura de uma criança no colo da avó. Os marmanjos são paisagens fora do foco, claro.

Quando a linha em que estou atravessa grandes avenidas, e elas estão pouco movimentadas, o motorista costuma ficar menos prudente, pisando fundo. É o momento em que quem está de costas parece ser aquela câmera que filma a montanha russa: todos com cara de espanto ou apreensão. Divertido. E, na freada mais brusca, o medo transparece, para logo guiar os olhos em busca da explicação para a manobra.

Por falar em filmagem, se acontecer o deslocamento no fim de tarde, a vista da janela me leva de volta para a obra Koyaanisqatsi, cuja trilha sonora de Philip Glass poderia embalar qualquer uma de nossas entrópicas metrópoles. Quando de manhã, na cálida luz de um sol ameno, sou transportado para a infância: proponho a mim jogos como os de contar quantas mulheres vestem saias nos carros que nos ultrapassam, quem tamborila música no volante, quais transbordam o tédio pelo para-brisa.

Hoje, quando sentei de costas para a dianteira do ônibus, me perdi nos óculos escuros de uma bela moça, bem diante de mim. Em determinado momento, ao seu lado, esteve uma jovem mãe que ofereceu o seio ao filho. No mesmo banco que eu, uma senhora reclamou bastante daquela posição invertida em que estávamos. Apenas respondi que gostava, e pensei: que outro lugar me daria vista mais afável? Ela praguejou um pouco mais e mudou de lugar, ficando lá, de frente para mim e de costas para o novo.


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17.10.12

Achado não é roubado

Não sou mais aquele. Tampouco menos.

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Coluna do Metro Porto Alegre em 17.10.2012



NOSSA ALMA NOS NEGÓCIOS
Hoje é o Dia Nacional do Profissional de Propaganda, espécie de arauto das marcas e produtos. Homens e mulheres que dedicam seu saber, sua sensibilidade, criatividade e perspicácia em favor dos clientes. Artistas. Com isso, algumas vezes, extrapolaram os limites do comercial, quando não do próprio objeto ou serviço oferecido, para conquistar um espaço cativo em nossos afetos.
Guardo, por exemplo, profunda saudade dos comerciais do Carlton, mesmo odiando cigarros. A malícia de associar a marca ao mundo elegante e idílico de seus filmes e anúncios era indiscutível e, óbvio, discutível. Mas a beleza, sem dúvida, um raro prazer. Ainda no universo fumante, lembro-me de outro: o fino que satisfaz. Era o bordão do Chanceller 100, mas eu dizia se referir a mim, sempre magrinho – segue valendo! E é impossível falar de cigarro sem citar o comercial que virou Lei: Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Horrível. Ótimo.
A simpatia e criatividade fez com que eu decorasse os ingredientes do Chokito e do Big Mac: comerciais bem bolados e executados. Indeléveis. A Coca Cola é outra que sempre investiu muito, e bem, em reforço de marca: é isso aí! E guardo com carinho os jingles dos guaranás Frisante Polar, da infância, e Antarctica com pizza e com pipoca. Líquida e certa foi a influência dos comerciais do Campari: gostava do bíter e, com ele, só eu era assim... Mas, nós viemos aqui pra beber ou pra conversar?
Em tempos duros, a liberdade já foi uma calça velha, azul e desbotada – outro exemplo de comercial que superava o produto e falava de todos nós. Na mesma linha, ainda hoje, no final do ano, desejo que tenhamos um novo tempo, de um novo dia que começou. De preferência, voando na Varig, a jato como o Papai Noel. Sim, sou saudosista mesmo sabendo que o tempo passa, o tempo voa, e o Bamerindus não existe mais, nem a poupança é “imexível”.
Primeiro sutiã, Brastemp, Bombril... Sou grato aos publicitários por dotarem de muita graça e encantamento minhas recordações. Ainda que faça ponderações contra o consumismo exacerbado – e quem me conhece sabe disso –, tenho orgulho de estar em um país que, ano após ano, conquista prêmios internacionais em Publicidade e Propaganda. São profissionais que nos oferecem segundos de encantamento. Fazem história. Por falar nisso, você já viu o último filme da Panvel?


12.10.12

Ditador em pele de democrata

Número 494

Rubem Penz

Quisera fosse simples assim: um ditador governa em período de ditadura e um democrata em tempos de democracia. Então, bastaria saber se num lugar existem eleições livres (diretas ou indiretas) para reconhecer que espécie de mandatário define os rumos da sociedade. Ao menos no campo político, é claro. E nem preciso entrar no mérito ideológico, pois ditaduras de direita ou de esquerda são, na essência, regimes de força. Mas nada é simples.

Eleger-se pelo voto faz de alguém um democrata? Provavelmente, mas não é certo que sim. A eleição, toda eleição, é uma aposta, um cheque em branco. Depois, dependendo de como o vencedor lida com o poder, suas atitudes podem transformá-lo num perfeito ditador. Toda comunidade corre o risco de eleger um desses, inebriada por discursos bem montados e promessas falaciosas.

A primeira nuance que diferencia um democrata de um ditador em tempos de democracia é a noção de comando: quem está a serviço de quem. Os democratas reconhecem que contraíram uma dívida a ser amortizada durante o mandato. Comprometeram-se com um plano de governo, com um viés ideológico, com metas a serem cumpridas ou, ao menos, perseguidas. Enfim, mais obedecem.

Os ditadores, não: sentem-se ungidos pelo divino voto e elevados ao patamar supremo. Do alto, prendem e deixam fugir, decretam e revogam, fazem e acontecem. Os fins justificam os meios e, no fim, o justo é o que eles pensam ser assim. O contraditório fica esquecido na gaveta, ou é varrido pelos garis junto com os restos mortais da campanha. Enfim, mais mandam.

Mas, nem é isso o que mais distingue um ditador e um democrata. É o apego. Todo ditador eleito sublima o fato de ser ele um temporário. Quer ficar. Então, desde os primeiros momentos, enfraquece os adversários e se cerca de caudatários. Qualquer ser pensante deve estar longe. O menor senso crítico deve ser abafado. Toda discórdia será traição. Enquanto isso, o verdadeiro democrata mede sua influência e, pensando no legado, cedo prepara a sucessão.

Empresas privadas, mesmo as constituídas por uma sociedade limitada, podem ser comandadas por ditadores ou por democratas – sem urnas, mas ao estilo. Os diretores que centralizam as decisões, que promovem medíocres e colocam suas melhores mentes no cabresto são ditadores. Por outro lado, quem tem facilidade de formar colegiados e grupos de trabalho, delega e cobra com o mesmo respeito com que aceita críticas. E, claro, sabe que não será eterno. Por isso, comanda democraticamente.

Acabamos de passar por mais um teste das urnas. Tomara que a sensibilidade coletiva tenha conseguido diminuir o domínio dos ditadores e fortalecer a instância dos democratas, afastando os lobos em peles de cordeiro. Poder existe para ser repartido e domado, jamais concentrado e desmedido. Erros e acertos acontecem em todos os governos. Humildade, apenas em alguns.

Boa sorte aos eleitores. Boa sorte aos eleitos!

 


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10.10.12

Coluna do Metro Porto Alegre em 10.10.2012


SORRISO: A PRIMEIRA MANCHETE DO METRO
Os motoristas que circulam pela Anita Garibaldi cedo da manhã encontram, ao chegar na esquina com a Carlos Gomes, um bom motivo para abrir a janela do carro: o sorriso de Geórgia, promotora do Metro Porto Alegre. Já ouvira falar dela e a conheci semana passada – um espetáculo à parte. E, citando-a, estou homenageando as dezenas de profissionais que alcançam nosso jornal para os leitores com muita simpatia e zelo.
Engana-se quem imagina ser esse um trabalho simples. Em poucas horas, quase mil jornais (quando esse número não é ultrapassado) trocam de mãos com a rapidez e sincronismo do bastão no revezamento 4X100 olímpico – o que transforma a tarefa em um misto de prova de velocidade e de fundo. Uma maratona no maior pique. A vitória é atender ao olhar ansioso de quem conta com a notícia ali ofertada, pois, assim como no mundo, o maior jornal em circulação já é uma tradição na cidade.
Especialmente, fiquei muito feliz em constatar a consciência dos promotores com relação à importância de seu trabalho. A presteza com que atendem a todos se irmana à urgência da notícia, essência do jornalismo. Eles são o derradeiro elo de uma enorme corrente de profissionais. E contam com o privilégio de travar contato com o leitor, olho no olho, colhendo suas impressões e conquistando sua fidelidade. Sim: seja na banca ou nas esquinas, escolhemos nossos preferidos para apanhar um jornal.
Vejo em atos quase instantâneos como a troca de olhares para que o Metro mude de mãos uma oportunidade para o espaço urbano manter viva a civilidade, a humanidade, a cidadania. Uma fresta para escaparmos do ensimesmado e competitivo trânsito, uma lufada de frescor em meio ao sufoco da metrópole. A chance de sermos gente falando com gente, e não operando máquinas ou escutando mensagens ditando procedimentos previamente programados. Um bom dia ao vivo, mesmo no átimo do semáforo, vale mais do que se imagina.
Desde a semana passada, ganhei um motivo a mais para dedicar carinho e atenção às linhas da coluna. Já tinha muitos: a responsabilidade de ocupar esse espaço nobre, o contentamento de fazer o que escolhi como profissão, o desafio de estar à altura dos leitores e a certeza de que posso, em algum momento, ser útil ou importante na vida das pessoas. O mais recente é ofertar aos promotores a segurança de que capricho na minha parte: seus sorrisos jamais serão em vão. Eles espelham o meu também.


5.10.12

Titanic

Número 493

Rubem Penz

Falsa paz submarina. Jaz entre os corais,

num barco submerso, o que não confesso.

Fátima Guedes

Ao deixarem o cais, quando da derradeira viagem, já formavam um casal tendendo à decomposição. Apodreciam por dentro, pelas vísceras do amor – nunca nada esteve exposto à flor da pele. Mas havia outros sentimentos em jogo. Integridade. Quase uma fleuma. Só sofriam em suas companhias. A sós, por sua vez – ou cada um por si –, resgatavam a alegria que nunca perderam.

Por isso tanta frieza, pose, paciência. Mar do Norte. Sem gelar os corpos, sem solidão ou silêncio, o processo de putrefação iria até o ponto de toda carne estar fétida. Hálito de cemitério, falência dupla, múltipla, explícita. Eles sofriam de um câncer anímico. Célula matando célula em consumo interno. Conservados. Abaixo do zero.

Falíveis, falharam. Está a folhas tantas do diário de bordo, página que nem buscam encontrar. Mas podem. Lá consta e a caligrafia denuncia. Repartir culpas já não consola. Desejá-las apenas para si não elucidaria nada, principalmente quando as explicações perderam a faculdade do resgate individual ou mútuo. Denunciar o outro, enfim, ou desfilar o rosário de queixas, afoga a razão.

E tudo é razoável, mesmo fora do plano. Futuro? Passo... Amargo, caro, intransferível. A memória muito sonega porque poucos sobreviveriam a uma minuciosa auditoria. Promissórias para um horizonte pouco alvissareiro. Iceberg. Mas o saldo em Celsius negativo suspende as promessas pré-datadas. Uma saída é buscar a recíproca dádiva: perdoarem-se a dívida. (A)moratória.

Uma força insuspeitada mantém de pé o castelo de cartas em meio ao naufrágio. Estranho equilíbrio entre passado e presente. De um lado, ouro e copas. De outro, espadas e paus. E pedras, fim do caminho. Boiam os restos de tocos. Poucos. Sozinhos? Não: irmanados por uma consciência pesada leve. Liquidez. Fundo pedido.

Por dentro tudo se precipita. De fora parece lento. É de se supor: um transatlântico não vai a pique de repente. A orquestra não parou. Nem todos estão a salvo. Nem tudo está perdido. Já foram os anéis, conta-se com os dedos. Dado momento, dão-se as mãos. Irmãos. Daqui a pouco darão adeus. O desejo não mais respira, afogado nos porões. Descartada a esperança boca a boca.

Frio. Manter-se frio. Levar-se a salvo, salva-vidas. O que há de carente ficará pelo caminho, desde que no tempo certo. Dor suportável. Era. Homens ao mar! O sempre se foi para sempre ser.


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3.10.12

Coluna Metro Porto Alegre em 03.10.2012

CEBOLINHA: ESSE PLANO NÃO VAI DAR CERTO
Passei a infância inteira acompanhando os planos infalíveis do Cebolinha para derrotar a Mônica. E, seja por solidariedade masculina, seja por admirar quem encarna a mais vã esperança, torci por eles em cada uma das histórias. Porém, nenhuma das mirabolantes criações dos meninos (sim, havia sempre o Cascão para ser o coadjuvante) foi capaz de suplantar a força da heroína dentuça.
Recordo disso porque soube que Maurício de Sousa prometeu uma data para o casamento de Mônica e Cebolinha. Um destino a ser adivinhado por quem acompanha a série de desenhos destes personagens dirigida ao público teenager – tenho na memória a polêmica revista na qual os dois, jovens, trocaram o primeiro beijo. Enfim, mais ou menos o que aconteceu com os (ex) implicantes Hermione e Rony na saga Harry Potter, marido e mulher ao final.
Agora, se isso for mais um dos planos do Cebola (seu nome na versão crescida) para vencer a Mônica, tenho uma má notícia: não vai dar certo. Talvez ele tivesse sucesso nos longínquos anos 1960, quando as personagens saíram do lápis do criador para ganhar o mundo. Na época, a autoridade masculina predominava na composição familiar. Vivíamos o tempo do pai provedor e da mãe dona de casa – papéis expressos nas próprias tirinhas do bairro do Limoeiro.
Os tempos são outros. As “Mônicas” que ousavam ser donas da rua durante a infância, hoje também são donas do próprio nariz – no mínimo. Viram suas mães exercendo o intangível controle sobre os maridos pelos fios do sentimento (maneira de deixar o jogo parelho) e almejaram mais. Para elas, já não bastam os afazeres domésticos ou a maternidade: dominam desde o mercado de trabalho aos destinos da República. Os “Cebolinhas” piam cada vez mais fino.
Mas, se, ao contrário, o “sim” no altar for um armistício (para não dizer uma rendição), aí o rapaz pode estar agindo com esperteza. Alguns homens já perceberam que nosso projeto vencedor está muito mais parecido com as antigas estratégias femininas. Nada de confronto: contornos. Nada de violência: carinho. Nada de autoridade: cooperação. Nada de controle: liberdade.
Pois é, Cebola... Ter para si o coração da Mônica pode valer mais do que qualquer outro domínio que ela – elas? – tanto perseguem. Mesmo que o casamento esteja longe de ser um plano infalível. Quanto ao Cascão, por favor: nessa história, seja no máximo padrinho. Senão é avançar demais com a carruagem.


28.9.12

Sílabas não são gametas

Número 492

Rubem Penz

É muito comum ao olhar para uma criança vermos a testa do pai combinada com o queixo da mãe, a orelha da avó e o sorriso da tia. Ou, em certos casos, olhos amendoados em inspiração oriental e, ao mesmo tempo, claros como só o ocidente produz. Ainda mais bacana: ser fisicamente parecida com a mãe, mas herdar o gênio do pai. É o que acontece quando os gametas geram uma nova vida, colhendo rastros do passado ao mesmo tempo em que seguem novos caminhos.

Por isso, gastamos nosso charme escolhendo parceiras bonitas (na verdade, sendo escolhidos por elas). A lógica é: se ela assenta com meu gosto, essa combinação funcionará bem com a prole. Porém, a mesma sorte não apresentam os nomes próprios. Pais inspirados na união semântica para compor a alcunha dos filhos correm o risco de compor aberrações, tudo muito bem intencionado. Sílabas, por mais que se queira forçar a relação, não casam necessariamente.

Se o garboso Mário resolve combinar seu nome com a amada Otília, pode nascer a Marília. Lindo, não? Mas, em nova gravidez, pode vir um Otário, quem sabe uma Matília – ou ambos, se forem gêmeos. Que perigo! Quando a bela Denise escolhe como par seu querido Marcos, a filha pode ganhar o exótico, mas ainda bem decente nome de Marise. Porém, um escorregão na criatividade e ela pare uma Marquise. Ou um Demarcos: basta uma apóstrofe e vira nome de restaurante...

Pois esse espírito de criatividade baseado em combinações parece ter incorporado na FIFA. O pessoal já sinalizava certo afã em surpreender quando desprezou as araras, papagaios, saguis ou tucanos – olha que perigo! – para ser o animalzinho símbolo da Copa do Mundo. Nada que fosse fácil e direto como um Brasil lindo e trigueiro cantado em imagens exuberantes por todas as agências de turismo do planeta pareceria correto. Daí vem o Tatu Bola que, vá lá, traz a gorduchinha na própria alcunha. Já me acostumei.

Porém, combinar conceitos em forma de sílabas de palavras como ecologia, júbilo, amizade, azul ou amarelo para formar o nome do mascote foi demais. E deu no que deu: Amijubi, Fuleco e Zuzeco. Enquanto nos Cartórios Civis de Registros de Pessoas Naturais já existe uma orientação para evitar o futuro vexame com Zigomires, Airtomélias, Lupolenos, Anastélios (ou qualquer esquisitice que pretenda representar a união dos pais para além da genética), na FIFA esse bom senso nem foi cogitado.

Há quem tente evitar o pior. Outros dizem que a entidade já registrou os três nomes em todo o mundo para garantir o ganho monetário. Enfim, pouco ou nada adianta eu protestar – o filho não é meu e não tenho nada com isso. Mas, depois, se o pobre Tatu Bola sofrer bulliyng, não foi por falta de aviso!

 


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26.9.12

Coluna do Metro Porto Alegre em 26.09.2012


CINDERELA, O PRÍNCIPE E O FINAL FELIZ
Era uma vez Cinderela, uma gata borralheira que, depois de ficar órfã, foi tiranizada por sua madrasta e filhas – todas invejosas de sua formosura. Rebaixada ao papel de criada, tinha nos animaizinhos seus únicos amigos. Mas, ao contrário do que se possa crer, conservava sua beleza e alto astral (seria o caso de aproveitar esse gancho para uma campanha publicitária desses novos e milagrosos produtos de limpeza).
A história mudou de rumo quando o Rei e a Rainha marcaram um baile para desposar o encantador filho – ele que, por romântica teimosia, relutava entre candidatas políticas. À época, fique o registro, era com alianças no altar se faziam alianças, e não com cargos ou ministérios. A madrasta, temendo pelo insucesso das filhas, boicotou a ida de Cinderela. Contudo, não contava com uma Fada Madrinha para garantir a presença da bela. À época, fique o registro, apadrinhamento já fazia a diferença.
O Príncipe – nossa! – surtou quando Cinderela entrou no salão. Era deslumbrante: cabelo, joias, maquiagem, lingeries, vestido e um incrível sapatinho de cristal. Aliás, um pezinho dele foi o que restou para trás quando bateu meia-noite e o encanto se desfez. A borralheira voltou para seu cubículo imundo e a vida continuou muito dura.
Porém, com o sapatinho nas mãos, desconsolado, o nobre decidiu reaver o que parecia perdido. Varou o reino em sua cruzada, fazendo a carruagem estacionar em cada endereço. Chegando à casa da madrasta, as feiosas esconderam Cinderela no sótão. Astuto, um ajudante real viu a moça na janela, resgatando-a. E, num passe de mágica, quando vestiu o pezinho dela com o sapato perdido, o outro pé apareceu! Que alegria!
O Príncipe deixou a casa levando, enfim, o par completo – mereceria destaque em seu closet. Antes, é claro, pagou para Cinderela um bom preço por ele e, ainda, deu-lhe o cartão do advogado do reino para que ela colocasse a madrasta na Justiça do Trabalho – havia sinais claros de exploração de menor, trabalho escravo, insalubridade, nada de horas extras ou férias remuneradas. Um horror!
Com a indenização, Cinderela abriu um atelier com a Fada e passou a vestir toda a Corte, a começar pelo Príncipe: marco no nascimento e ascensão da burguesia e da mulher independente. Ao final, todos, menos a madrasta, viveram felizes para sempre.

21.9.12

As lições de um hematoma

Número 491

Rubem Penz

Ler uma entrevista do Prof. Dr. Luiz Roberto Rigolin na Folha de São Paulo foi uma experiência de regressão: visitei minha vida passada de educador físico. E nem precisei mudar de encarnação, apenas voltar algumas profissões atrás. Na matéria do jornal, Rigolin defende que "estamos criando analfabetos motores". O termo é forte – talvez de propósito –, ainda que, para alguns casos, bastante adequado.

Sua tese recai sobre as crianças de classe média alta e alta, as quais perdem a oportunidade de desenvolver em plenitude seu potencial motor ao não experimentar determinados movimentos no tempo certo. Afinal, do mesmo modo com que capacidades cognitivas são adquiridas em etapas do desenvolvimento, a competência gestual também depende de estímulos múltiplos, adequados e pontuais.

Essa responsabilidade pode ser dividida entre vários culpados. Um deles é o medo: crianças não brincam mais nas ruas, livres para subir em árvores, atirar pedras, competir em brincadeiras como as de pegar ou jogos artesanais, escalar telhados, fabricar seus apetrechos ou lutar. Antes que alguém fique chocado, pergunte aos avós se não era essa a rotina fora da escola. Hoje, isso só acontece em zonas periféricas, e olhe lá. A violência ameaça crianças longe da tutela dos pais ou cuidadores.

Outro responsável é o excesso de zelo. Filhos de lares abastados parecem feitos com esqueleto de cristal, pele de porcelana e confiança delgada como a casca do ovo. Um bibelô cuja menor fissura pode significar a demissão da babá, um processo contra a escola, um drama desproporcional na família ou acusações mútuas em casos de pais separados. Enquanto isso, num passado recente, eu e meus contemporâneos nos esfolamos, nos quebramos (inclusive os dentes) e nos cortamos, entre outros traumas mais ou menos graves. E a consequência foi, ainda, ficar de castigo.

Por fim, ainda temos a confusão entre a educação física e o esporte. Cabe ao profissional alertar que são conceitos diferentes, ainda que complementares. Um desenvolve capacidades gerais, a famosa inteligência motora. Do mesmo modo como é mais fácil aprender uma terceira língua depois da segunda, é mais rápido reproduzir novos fundamentos quando se encontra relações com experiências motoras conhecidas. Depois, quando há um claro pendor (ou desejo), será o momento de se tornar especialista num só esporte. Com vantagens.

Os pais precisam ficar em alerta para o risco do tal analfabetismo motor. Isso influencia da inteligência à autoestima. Mais tarde, a vida real cobrará essa conta. Vida real? – pergunta alguém. Sim! Pois os avatares dessa turminha são ágeis, habilidosos, valentes, fortes, equilibrados, espertos e mortais. Tudo o que gostávamos de ser fora dos videogames.


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19.9.12

Coluna do Metro Porto Alegre em 19.09.2012


007 PERDE LICENÇA PARA ENCANTAR
A mais longa, célebre e lucrativa franquia cinematográfica completa 50 anos: as aventuras do agente secreto James Bond. Criada por Iam Fleming em 1953, foi adaptada pela primeira vez para as telas em 1962 no filme "O Satânico Dr. No", com o espião na pele do ator Sean Connery. De lá para cá, seis intérpretes viveram o papel e mais de 20 filmes oficiais foram produzidos. Mas o tempo deixa suas marcas.
Dá para saber a que geração alguém pertence perguntando qual foi seu primeiro Bond. Adianto o meu: "007, o Espião que me Amava", de 1977. Levarei para sempre na memória a cena inaugural: uma ágil perseguição de esquis na neve austríaca, culminando no salto da montanha, quando se abre o paraquedas com a bandeira britânica. E a música-tema de Monty Norman, com sua guitarra inconfundível na sensualíssima abertura com sombras de mulheres nuas, tiros e fugas. Recém-chegado na adolescência, enlouqueci!
Talvez por isso meu Bond preferido seja Roger Moore, ladeado no pódio por Sean Connery e Pierce Brosnan. O que me agrada em Moore é a canalhice explícita que dota o personagem. Numa análise distanciada, e depois de ter conferido os filmes anteriores e posteriores, considero aquela leveza de James Bond como o desejo inconsciente (ou plano sutil) de aliviar as gravíssimas tensões da Guerra Fria, ainda no apogeu naquele momento.
Sejamos honestos: o espião ganhara licença para matar em defesa do Ocidente capitalista. Nesse mesmo filme, o conflito gira em torno das armadas nucleares soviéticas e norte-americanas, cujo poderio estava por ser manipulado por um vilão inescrupuloso interessado em chantagear os dois lados, convenientemente unidos quando a linda agente russa Anya Amasova torna-se amante de Bond. Na política as partes não se entendiam, mas na alcova o enlace estava garantido.
Os britânicos comemorarão a data com a extensa viagem de uma caixa dourada contendo os 22 filmes já exibidos dentro de aviões, trens, automóvel, navio e até a pé. Nela, atores que participaram das filmagens serão protagonistas da aventura real. Tudo coincidirá com o lançamento do 23º filme oficial, terceiro a ser estrelado por Daniel Craig, um destruidor brutalizado e frio que em nada se irmana ao enigmático Connery, ao divertido Moore, ao sedutor Brosnan.
Assim que estamos: a luta do bem e do mal, seja em Londres, Moscou ou nas ruas de Porto Alegre, perdeu de vez o charme. A crua realidade parece ter matado o encantamento. Todos, agora, parecem vilões. Até 007.

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14.9.12

Dou voltas e Caio

Número 490

Rubem Penz

Foram tantas voltas feitas que deixei para escrever a crônica em cima do laço, na véspera, depois dos 40 do segundo tempo. Não é meu hábito, contudo a semana foi especialmente corrida, temperada com algumas novidades – entre elas uma pequena viagem e a interinidade para comentários sobre literatura numa importante emissora FM (BandNews). Nada do outro mundo, mas atividades que demandaram uma concentração mais apurada pelo caráter inaugural. E esse texto foi ficando para depois, para daqui a pouco, para agora. Quase que para ontem.

Porém, como sou alguém de muita sorte – o que jamais dispensa boas doses de juízo –, calhou de estar lendo um livro de crônicas recém-lançado, que folheio pelas bordas para não queimar a alma. Mais: decidi falar sobre ele na rádio, aguçando os sentidos para oferecer algo mais consistente do que o número de páginas ao ouvinte. Melhor: o autor estaria completando 64 anos durante a semana (em 12 de setembro), elevando a escolha ao patamar de efeméride. Perfeito: interrompi a leitura no exato instante em que o grande escritor queixa-se da urgência do gênero, cujo espaço no jornal aguarda nossas palavras.

Estou falando de Caio Fernando Abreu, autor gaúcho de envergadura universal, e seu A vida gritando nos cantos (Ed. Nova Fronteira, 2012). A obra é uma compilação de crônicas publicadas originalmente no O Estado de São Paulo, entre 1986 e 1996, textos galgando o suporte livro pela primeira vez. Uma publicação encorpada que talvez merecesse melhor cuidado em termos de artes gráficas – não que esteja ruim, apenas faria jus a mais. Para não deixar essa parte em todo desmerecida, a fonte escolhida – Brioni – é de confortabilíssima leitura.

De tudo de bom que se possa falar da prosa de Caio F., quero destacar sua virtude enquanto cronista: ele tem o dom de nos transformar em seus amigos achegados. Quase confidentes. Sua construção epistolar e intimista faz sumir o fato de que escrevia para milhares de leitores – parece que somos dois a trocar segredos, que o mundo inexiste. E olha que sequer o conheci em pessoa. De uma linha para outra, falando de si, comentando as angústias do cotidiano paulista dos anos 1980, desconfio que ele saiba de mim também. Muito impressionante. Quase mágico (palavrinha gasta, mas foi a que veio no momento e preciso terminar a crônica).

O título do livro – A vida gritando nos cantos – é um fragmento da crônica Querem acabar comigo, página 90. Nela, ele confessa a dificuldade em oferecer um bom texto ao leitor, uma produção de valor estimável, descrevendo um pouco de sua rotina. Adorei constatar (novamente) que não sou o único a sofrer a dor necessária para que a obra valha o investimento de quem se dispõe a nos acompanhar semanalmente.

Obrigado, Caio: se não bastasse a ótima literatura, você caiu como uma luva para salvar meu prazo!

 


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12.9.12

Coluna do Metro Porto Alegre em 12.09.2012



CHORE, VOCÊ SENDO FILMADO
Há um famoso jardim japonês chamado Ryoan-ji – Templo do Dragão Pacífico –, datado do século 11 e roteiro frequente de visitas. Nele, não existem flores, árvores ou arbustos. É um jardim de areia e rochas. Porém, acima do exotismo de sua natureza, está uma curiosa particularidade: com quinze pedras em seu interior, apenas quatorze são visíveis. Isto é, não importa de onde parta o ponto de vista, uma das pedras estará oculta. Sempre.
Tamanho cuidado em posicionar as peças não pode ser interpretado como coincidência (tudo na cultura oriental parece suscitar lições). Uma das leituras possíveis é a de humildade: o todo jamais será revelado a quem quer que seja. Outra probabilidade recai sobre a certeza de que a verdade absoluta não existe. Também podemos tirar uma lição de fé: é preciso crer na décima quinta pedra sem jamais vê-la, comprovar sua existência, contar com ela. Isso até o domínio dos ares, até o lançamento de satélites, até o Google Hearth.
Hoje, uma criança no Brasil, Austrália ou Finlândia consegue ver Ryoan-ji sem sair de casa e por diversos ângulos, inimagináveis no século 11. Sobretudo, ângulos que subvertem a proposta arquitetônica original. O todo parece estar ofertado para qualquer um; a verdade é pleiteada pelos olhos artificiais que tudo veem; Divina pretende ser a ciência que prova sem crer.  No momento em que o mero infante pode tanto, quando todos nós podemos nessa medida, fica a dúvida sobre a magnitude da visão de quem nos espia de propósito e almeja vantagens com tal poder.
Constatar essa nudez global (e aqui não é chiste) deveria desestimular as pessoas a atenderem ao irônico pedido “sorria, você está sendo filmado”. Ainda que as lentes sejam consideradas vigilantes para nossa segurança, duvido das boas intenções. Fosse assim, a violência teria declinado, e não o contrário – ou você sai para rua de coração leve? Acompanhando o resultado das câmeras, a única certeza que me ilude é a de estar entregue à barbárie. Prometem paz e entregam medo.
Porém, forçado por uma esperança que se justifica apenas na fé, quero crer na invisibilidade da décima quinta pedra. Preciso desesperadamente acreditar na metáfora de Royan-ji. Algo está escapando da tecnologia e permanece oculto. E, quem sabe, é algo bom, capaz de acalmar os espíritos, destronar a cobiça, estabelecer a tranquilidade.
De onde me encontro, quatorze pedras mostram o contrário.

10.9.12

Oficinas com inscrições abetras

Rubem Penz abre inscrições para duas oficinas de crônicas
O publicitário, músico e escritor Rubem Penz oferece a partir de setembro duas oportunidades para quem deseja conhecer e praticar o mais ágil gênero literário: a crônica. Em suas oficinas, depois de breve estudo conceitual, os participantes partem para a produção que explora a grande variedade de estilos presente na obra dos grandes expoentes nacionais. Mais: servem de vitrine para quem deseja se candidatar para a oficina Santa Sede, crônicas de botequim em 2013, cuja produção lança uma antologia por ano.
Aperitivo Santa Sede – no Dado Garden Grill. Encontros quinzenais em setembro, outubro e novembro, sempre nas segundas-feiras, 20h – 22h. Ideal para quem nunca participou de oficinas literárias e deseja investigar seu talento. Também para quem usa a palavra escrita em sua profissão e visa qualidade de estilo. 2 vagas
Crônicas no Templo – promoção do Templo do Oriente. Encontros semanais em setembro, outubro e novembro, sempre nas terças-feiras, 20h30 – 22h15. Concebida para acomodar tanto os novatos em literatura quanto os autores que já participaram de oficinas de outros gêneros (contos, poesia, infanto-juvenil). 6 vagas
Rubem é cronista do jornal Metro Porto Alegre (entre outros veículos) e do Blog Rufar dos Tambores  www.rufardostambores.blogspot.com. Ministra oficinas desde 2008, com destaque para a Santa Sede, crônicas de botequim – cuja safra atual lançará a terceira antologia da série em novembro.
Serviço:
O quê:             Oficina Aperitivo Santa Sede
Quando:         Quinzenal, a partir de 17 de setembro, segundas-feiras, 20h
Onde:                         Dado Garden Grill, Shopping Praia de Belas, Porto Alegre
Valor:              Três parcelas de R$100,00
Informações
e inscrições:   rubempenz@gmail.com ou (51) 9123.5540
O quê:             Oficina Crônicas no Templo
Quando:         Semanal, a partir de 18 de setembro, terças-feiras, 20h30
Onde:             Templo do Oriente Kebaberia, Rua Cel. Bordini, 92, Porto Alegre
Valor:              Três parcelas de R$150,00
Informações
(51) 3325.6138





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6.9.12

Acordos para acordar

Número 489
Rubem Penz
Há uma supervalorização do momento em que vamos dormir. Desde pequenos, somos instigados a cumprir algumas regras ditas "facilitadoras". Quem se tornou pai (mãe) por esses dias bem sabe disso. Dos pediatras aos consultores especializados (com colunas de jornal ou comentários no rádio), passando pelos avós, muitos contribuem com receitas para a hora de deitar. Sagrados tornam-se nossos rituais pré repouso.
Uns recomendam diminuir a luz dos ambientes; desligar a TV, rádio, videogame ou computador; criar rotinas de economia de movimentos; colocar pijamas; escovar os dentes, fazer pipi e botar toda a família na cama ao mesmo tempo... Existem os adeptos ao copo d'água, outros receitam leite, todos desaconselham refeições pesadas e muita carne. E, claro, tem a turma que aconselha a leitura, já bem acomodados debaixo das cobertas.
Porém, o despertar ficará por conta de cada um. Eis um momento em que as receitas esbarram no particular e intransferível. Pode até ser impressão, mas não me lembro de ver o mesmo ímpeto para dar conselhos sobre como encarar o dia que nasce. Logo, para um instante de tamanha fragilidade, há um vazio institucional. No alvorecer, nos deparamos com o império da intuição, do particular.
Por isso, talvez, seja muito (muitíssimo) mais complicado acordar ao lado de uma nova companhia do que levá-la para a cama. Atire o primeiro travesseiro quem nunca teve o desejo de fazer sumir alguém que está ao lado pela manhã. Arrisco o palpite de que alguns solteiros empedernidos assim o são pelo pânico de ceder espaços em sua rotina matinal. Por outro lado, quando a intimidade começa a ser conquistada, o encantamento que separa o fechar e o abrir de olhos marcará a diferença entre a conquista do "felizes" e a garantia do "para sempre".
Há quem pule da cama feito um jato (falante e articulado), enquanto tem gente que deseja matar quem ouse romper o silêncio. Uns programam o despertador para muito antes da hora (e curtem a preguicinha), outros querem dormir até o último instante. Tem aqueles que precisam de café com mesa posta em contraste com os jejuadores. Há adeptos do banho para acordar e os que usam o banho para adormecer. Isso sem falar nos programados (planejam a roupa na noite anterior): gente que jamais entenderá quem baixa todo o guarda-roupa antes de decidir-se por uma mísera calça. Como conciliar tudo isso?
Assunto tão sério deveria constar em acordos pré-nupciais. Tipo, Artigo 1º: jamais fale comigo antes das nove horas. Ou: Quer café? Aprenda a preparar. Ainda: Esqueça as notícias – prefiro música clássica. Fica a ideia aos escritórios de advocacia.



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5.9.12

Coluna do jornal Metro 05.09.2012

BRASIL NAS PARALIMPÍADAS: VISIBILIDADE PARA DEFICIÊNCIAS
Nossos atletas paralímpicos estão, outra vez, empilhando medalhas.  Em cada novo dia dos Jogos de Londres, mais e mais bronzes, pratas e ouros. E, se não bastasse, já batemos recordes mundiais e sobrepujamos favoritos. Outra peculiaridade: ótimos resultados em atletismo. Na comparação com os Jogos Olímpicos, os paratletas brasileiros levam nítida vantagem.
Eis uma boa notícia, mas... É impossível que só eu fique intrigado com essa situação. Deve ter uma explicação para tal fenômeno. Vamos às hipóteses: a primeira, numérica, faria crer que vivemos em uma nação de aleijados. Nunca antes na história da humanidade um país teve tantos cegos, amputados e demais portadores de necessidades especiais para competir. Confere? Não. Então, deve ser por outro motivo.
Já sei: há políticas públicas e ações privadas de pleno amparo ao nosso deficiente (a patrulha politicamente correta abomina esse termo). Aqui, eles encontram estruturas preparadas para acolhê-los, facilitar suas vidas, corresponder às suas necessidades e, então, incentivá-los ao esporte. Confere? Quem anda nas calçadas de nossas cidades, sobe em ônibus ou entra em prédios sabe que não. O motivo é outro.
Quem sabe seja pelo fato de o brasileiro ser especialista em driblar dificuldades? Estamos esquentando... Afinal, ultrapassar obstáculos (reais e metafóricos) está no DNA do povo brasileiro. A malandragem, o jeitinho e o "se dar bem" seriam apenas subproduto de uma cultura de superação, de ir contra a maré. Logo, nossos portadores de necessidades especiais têm garra de sobra para alcançar o pódio Paralímpico, pois vivem no dia a dia a obrigação de vencer apenas por si. Tudo que os atrapalha, fortalece.
Esse raciocínio, por um viés torto, explicaria nosso fracasso nas Olimpíadas: no povo, só temos paratletas. Fique claro, porém: suas deficiências são extrínsecas – não lhes faltam membros ou sentidos. Capengas, subdesenvolvidas, obtusas são as condições de trabalho. Esporte na escola? Só para meia-dúzia (particular). Treinamento especial? Quando há, está distante dezenas de quilômetros de sua moradia. Incentivo? Só o da família (mais conhecido como sacrifício). Grandes patrocínios? Quando (se) for campeão.
A contraprova vem nas tantas medalhas no Hipismo, Vela e outros esportes elitizados ou midiáticos, onde há paridade com o Primeiro Mundo. Fora deste Olimpo, estão nossos deficientes. Ou melhor, nossas deficiências. E os heróis.

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