8.5.09

Número 316

ESPERANÇA

Abre teus braços e canta
A última esperança
A esperança divina de amar em paz

Tom e Vinícius

Se esperança tivesse uma forma, ela seria esférica. Pois assim, redonda, é a forma da mulher que espera um filho. E nenhum outro momento é tão rico em esperança quanto o da gestação. Ele permeia cada sorriso, sublima o desconforto, supera a dor prometida. Ele inunda o coração de modo a fazer passar por ali os melhores fluidos. Ele cativa quem está próximo, ou mesmo quem só passa ao largo. Na gravidez, a mulher espera para si, para o filho e para todos nós um futuro melhor. Espera, também, estar apta para nutrir a vida que se renova. Espera que o pai saiba compartilhar tamanha responsabilidade. Espera viver o suficiente para ver seu fruto tornar-se frondosa árvore. Espera alcançar os netos. Nossa: é esperança que não acaba mais!

Nenhuma mulher perde por esperar. O final de sua espera, ao contrário, coincide com o momento de se ganhar. É quando a felicidade não cabe mais em si: rompe, transborda, derrama-se. E, depois de deixar o ventre, é no seio materno que o filho se alimenta de esperança, de afeto e de vida. O colo da mãe é o endereço do encontro sublime de duas vidas que esperavam uma pela outra – uma dentro da outra –, para firmarem um contrato jamais escrito, mas implícito e reconhecido por suas normas, direitos e deveres. A sociedade espera que as partes cumpram seus papéis. Outra vez, ou seria sempre, é esperança que não encontra fim.

A cada manhã, toda mãe espera ver seu filho despertar. Viverá na esperança de que nada de mal lhe aconteça; de que, com o passar do tempo, caminhe com suas próprias pernas; de que tenha juízo e discernimento; de que encontre bons amigos para compartilhar a vida. Viverá na esperança de que pouco (ou nada) ele sofra por amor. Vã esperança... A mãe espera que o filho seja estudioso na medida de sua capacidade, seja humilde para reconhecer-se aprendiz, seja perseverante e, com isso tudo, possa ter o êxito almejado. Pois o fracasso do filho será também o seu fracasso, sua desesperança.

No entardecer da vida, a mãe espera ter o filho ainda à sua volta. Contará os dias até o final de semana; ou as férias, Natal, Ano Novo. Contará também as novidades adiante e, quando menos o filho esperar, conhecidos distantes saberão detalhes de sua vida. Emoldurará fotografias em portarretratos coloridos, expostos na sala de estar para louvar a certeza de ter oferecido a melhor educação. Escondidas, bem escondidas nas gavetas da cômoda, ficarão algumas desconfianças sobre eventuais falhas aqui ou ali. E a mãe morrerá na esperança de que nada disso seja encontrado por noras e genros de má vontade, loucos para se depararem com explicações, por exemplo, para as manias do cônjuge à mesa. Mesmo na hora da partida, na memória da mãe habitará a esperança.

Faça qualquer maldade com sua mãe. Faça-a sofrer, deixe-a com saudade, ria de seu jeito antiquado, seja presunçoso ou soberbo. Até aplique corretivos, se ela voltar a ser uma criança. É grande a chance de ser perdoado bem no fundo do coração. Pior: ela tomará para si a culpa de, quem sabe, ser justamente punida e maltratada. Só um pecado jamais terá perdão: tirar de sua mãe a esperança. Não imagino ter sido outro o erro do rapaz que, conforme notícia recente, viciado em crack, levou a mãe ao desespero de matá-lo.

Morta a esperança, já não temos mais uma mãe. Já não temos mais nada. E, no vácuo e na vertigem do nada, que vida haverá?

29.4.09

Número 315

AS QUERELAS DE BRASÍLIA*
Boi Barroso & Brejo

Brasília (1), minha Brasília brasileira
Da mamata inzoneira
Vou cantar-te em tantas verbas

Ó Brasília trampa que dá
Bandoleiro que faz lucrar
Ó Brasília do meu pavor
Terra do nosso penhor
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Ô, abre a caixinha do plenário
Tira à mancheia do erário
Bota o imposto no otário
Brasília! Brasília

Deixa ganhar o especulador
Misericórdia é toda tua
Se é banqueiro o devedor
Quero ver essa grana caminhando
Pelos milhões se afastando
Do bolso do assalariado
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Brasília, terra tão onerosa
Da emenda sestrosa
De pilhar indiscreto

Ó Brasília vende que dá
Outra lei complementar
Ó Brasília do meu pavor
Terra do nosso penhor
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Ô esse empreiteiro que não pouco (2)
Fez aumentar a sua renda
Nas obras que soube ganhar
Brasília! Brasília!

Ô, oi essas fontes governantes
Onde mamatam-se com sede
E onde a viúva vai dançar
Ó essa Brasília linda intrigueira
É minha Brasília brasileira
Terra toda eleitoreira
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

* Paródia de Aquarela do Brasil, do mestre Ary Barroso.

Nota-se (1): esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com as teimosas notícias de política e economia das sucursais jornalísticas de nossa Capital Federal terá sido mera coincidência.

Nota-se (2): no original, este verso cita o “coqueiro que dá coco”. E o que mais poderia nos dar um coqueiro? – cabe a pergunta. Bom, em Brasília, dependendo da mão que aduba, coqueiros podem dar até cerejas nas noites claras de luar. Há quem duvide?

22.4.09

Número 314

SÃO TANTAS EMOÇÕES...

Agora é oficial: Roberto Carlos – o cantor e compositor da Jovem Guarda – dá início às festividades de seu cinquentenário musical, a completar-se em 2009. Serão diversos espetáculos e tributos, muita tietagem e mesuras dignas de um rei. Reconhecendo plenamente os méritos da prolongada e vencedora carreira, almejo para outros dedicados profissionais com este tempo de trabalho uma comemoração de semelhante vulto. E, inspirados na majestade dos palcos, poderiam agradecer assim:

Farmacêuticos, olhando a chegada de mais uma receita em suas mãos, diriam: são tantas emulsões...

Os agiotas e demais profissionais que labutam na generosa tarefa de cobrar juros escorchantes, em lágrimas, agradeceriam: são tantas extorções...

Cirurgiões gerais: são tantas incisões... Cirurgiões plásticos: são tantos esticões... Cirurgiões dentistas: são tantas restaurações...

Agentes e guias turísticos, ao completarem cinco décadas à frente de crianças e idosos, diriam: são tantas excursões...

O paramédico, percorrendo a cidade nas ambulâncias, comemoraria seu cinquentenário dizendo: são tantas remoções...

Políticos no palanque: são tantas eleições... E, depois, com seus cupinchas: tantas locupletações...

Os publicitários, gerentes e diretores de marketing anunciariam assim: são tantas ilusões...

Padres, pastores, rabinos e toda sorte de pregadores da palavra de cada um de seus deuses, diriam em ladainhas: são tantas orações...

Jornalistas e escritores, no ano em que completarem seus cinquentenários, autografariam: são tantas edições...

Em cinco décadas, caso tenha conseguido ludibriar as autoridades mundiais, o terrorista mandaria uma carta bomba: são tantas explosões...

Feirante: são tantos agriões... Churrasqueiros: são tantos salsichões... Cozinheiros e garçons: são tantas refeições...

Geneticistas, obstetras e demais pesquisadores da área da fertilidade poderiam agradecer às homenagens dizendo: são tantos embriões...

Motoristas, cobradores e maquinistas, chegando neste ponto, diriam: são tantas estações...

Matemáticos: são tantas adições... Físicos: são tantas equações... Astrofísicos: são tantas dimensões...

Professores de português diriam: são tantas redações... E os de educação física contariam: são tantas flexões...

Atores pornôs: são tantas ereções... Atrizes pornôs: são tantas felações... Censores: e tantas proibições...

Advogados e juízes de direito, afogados em nosso interminável oceano de processos e recursos, julgariam prudente dizer: são tantas petições...

Neurologistas: são tantas convulsões... Cardiologistas: são tantas pulsações... Traumatologistas: são tantas contusões...

Por fim, o cronista amigo, depois de cinco décadas em laudas semanais, agradeceria a sorte de poder escrever sobre qualquer tema, puxando o microfone de lado e atirando uma rosa para a platéia: são tantas opções...

15.4.09

Número 313

CRACK: QUEBRAR, PARTIR

O crack, uma das mais devastadoras drogas desenvolvidas pelo homem, pode ser escutado como uma palavra onomatopéica que significa quebra. E parece ser consensual a ideia de que, depois do crack (após o rompimento), são poucas as chances de as estruturas partidas voltarem à integridade como se nada tivesse acontecido. Cabe, então, pensarmos nas forças que atuaram antes do fato, criando as condições para tal quebra, ou, no mínimo, abstendo-se de cautela. Nossa chance está na antecipação.

Comecemos procurando as frestas, pois, diz a lógica, o rompimento tende a acontecer nas estruturas comprometidas. Quando olhamos para a família, outrora o elo mais forte da corrente social, percebemos que ela nunca esteve tão fragilizada. Sob o manto tecido com mil justificativas, algumas até certo ponto plausíveis como a falta de tempo (causada pelo excesso de trabalho), pais delegam para terceiros a educação integral de seus filhos. Neste cenário, deixam de passar valores básicos para uma boa composição emocional das crianças, tais como limites de conduta, ética, perseverança. Ou, pior, cultivam uma rotina distante, ou até violenta, eco de um ambiente sem fraternidade.

Digamos, porém, que a família esteja bem preservada, com o amor em dia e valores consolidados. A próxima rachadura que facilitaria o crack está no primeiro degrau fora de casa ‒ o espaço gerido pelo poder público. Nele, a impunidade e a permissividade nunca estiveram tão presentes. A falência da ordem institucional fez crescer poderes paralelos, financiados pelo dinheiro das drogas, instaurando um ambiente de terror e subserviência. Além do mais, o trabalho honesto, o estudo dedicado, em última instância a virtude, tudo passa a ser visto como uma fraqueza. Esperto, inteligente e próspero é quem está no lado marginal. Mané é o sujeito que trabalha o mês inteiro para comprar um par de calçado, pronto para ficar sem ele no primeiro arrastão.

Mas não basta atirar nas costas largas do Estado toda a responsabilidade sobre o bem comum. Se existem falhas na fiscalização e punição de agentes ligados ao narcotráfico, a incompetência estatal seria minimizada caso não houvesse consumo. E como há! Além disso, todos os crimes cometidos por usuários desesperados por dinheiro encontram na própria sociedade os receptadores, os comerciantes e os novos compradores do roubo. Cada pedra de crack acendida na esquina já movimentou uma cadeia econômica gigantesca. E isso não é uma rachadura fácil de ser mensurada, interrompida e novamente consolidada.

Por fim, a última falha que causa o crack está dentro do nosso próprio cérebro. Ironicamente, atende pelo nome de fissura. Em nome dela, tudo o que aprendemos com os pais é esquecido; o tanto quanto a escola nos fez crescer cai por terra; as recompensas do trabalho serão menores; nenhum esforço institucional parecerá suficiente. A fissura é a deusa do imediato, não mede consequências, desconhece limites, devora o homem. Antecipar-se à fissura, explicar seu preço e falar de seus riscos é evitar o triste rompimento, a quebra, o crack. Isso, ou ver nossos filhos, tão cedo, partindo.

9.4.09

Número 312

RESSURREIÇÃO

O orador prepara-se para fazer seu pronunciamento. Traz consigo um ar grave, solene. Apóia um pequeno volume de papéis no púlpito. Pousa suas mãos sobre as folhas e mira a plateia por alguns segundos. Nisso, um bêbado, ruidoso, entra e senta-se lá no fundo. O homem espera até que ele esteja acomodado. Limpa a garganta. Toma ar. Começa:
– Nosso tempo se mostra menos esperançoso do que outras épocas. Mas, creiam, houve alguns momentos em que a humanidade pareceu correr mais e maiores riscos ‒ pausa dramática. ‒ Mesmo assim, apesar dos sacrifícios, fomos salvos. E hoje, como ao contrair uma dívida, precisamos renovar nossa crença no amanhã. Nenhuma outra época é mais apropriada.
Neste momento, o orador tira do bolso do paletó um ovo. Olha para ele, gira, examina. Mostra-o a todos como quem exibe um trunfo. O bêbado, lá do fundo, diz:
‒ Já sei! É um ovo! – esperando ser ovacionado.
A assistência olha para trás e murmura em desaprovação. O bêbado desdenha com as mãos. O orador retoma sua linha de raciocínio.
– O ovo – ensina ele – está aqui para nos servir de metáfora. Ele representa a vitória da vida sobre a morte. A célula a partir da qual tudo se cria. Não importa o quanto tenhamos sofrido, o quanto estejamos abalados, diminuídos, carentes: a partir de um simples ovo, tudo o que é capital pode ressurgir. Uma vida nova, em outras condições, em outro cenário. Mais favorável, é claro!, por mais sombrio que sejam os escombros.
O bêbado ergue o braço pedindo um à parte. O orador atende com educação.
‒ Já sei! – fala, enrolando a língua. – O senhor quer nos chocar!
A plateia volta a protestar com mais veemência. O bêbado ri de sua esperteza. O orador agradece com meio sorriso, devolve o ovo para dentro do bolso, junta um cesto que estava no chão, atrás de si, e segue:
– Quando compartilhamos esse sentimento de renovação, é como experimentar a própria ressurreição. Isso, mais do que nunca, é uma garantia a ser repartida. Porém, é apenas o primeiro passo...
– Já sei! – levanta-se o bêbado. – Nunca devemos pôr todos os ovos no mesmo cesto!
Agora, já se escuta mais do que um burburinho na assistência. Não fosse um local civilizado, alguém teria partido para cima do inconveniente alcoolista. Mas o orador, demonstrando uma paciência monástica, pede silêncio e serenidade a todos. E aproveita o gancho:
– Vejam bem: crises como esta que experimentamos, meus caros, é tudo o que desejam os que não professam de nossas crenças.
Os ânimos, enfim, acalmam-se. É quando o orador retira do cesto um coelhinho branco. O bêbado levanta a mão novamente, mas não é atendido. Com o coelho no colo, e o cesto devolvido ao chão, o orador pergunta:
– E o coelho, qual a metáfora que nos apresenta o coelho?
O bêbado acena com insistência, querendo responder. O orador não lhe dá oportunidade, seguindo:
– Eu lhes digo: a fertilidade. A criatividade. A novidade. Crescer para multiplicar!
– Já sei! – salta o bêbado, sem se conter. – Já que é sacanagem, vamos nos f...
– Basta! – altera-se o orador. – O senhor passou de todos os limites. O tema de que estamos tratando é muito sério. É muito caro para a sociedade. Posso dizer... sagrado, até!
– Eu já sei! – comemora o bêbado, ainda de pé e abrindo os braços. – É a Páscoa!
– Óbvio que não! – responde o orador. – Estamos em um Seminário de Economia. Discutimos aqui as alternativas para a grave crise financeira internacional.
– Ih, então já sei... – lamenta o bêbado, mantendo os braços erguidos. – Vocês salvam a própria pele, e cruz vai sobrar para mim.

1.4.09

Número 311

1964

O ano de 1964 é, para mim, impossível de ser esquecido. Mesmo que eu quisesse, lá está ele na certidão de nascimento, na carteira de identidade, de motorista e em todo e qualquer cadastro que venha a preencher. Sim, foi quando eu nasci. Por outros motivos, os meados da década de sessenta estarão para sempre na lembrança do povo brasileiro. Brotaram ali os denominados anos de chumbo, a ditadura militar, nosso mais recente período de rompimento democrático. E, entre a alegria de comemorar o aniversário e a tristeza ao lamentar os fatos históricos, o sentimento que me surge com mais força quando este ano é citado é outro: o medo.

Em 31 de março de 64, data convencionada para marcar o início do levante que tirou Jango da presidência, eu ainda estava na barriga da minha mãe. Teoricamente, nada poderia temer. Mas a vida me deu mostras de que fetos e recém nascidos são criaturas reféns dos sentimentos da genitora. E, na época, minha mãe tinha muito, muito medo. A empresa onde meu pai era diretor estava na lista de estabelecimentos a serem incendiados por militantes de organizações inspiradas em ideologias totalitárias de orientação esquerdista. O patrimônio obtido a partir do trabalho do meu avô, que chegara do interior à cidade de Porto Alegre aos quatorze anos de idade com uma única muda de roupa na mala, corria o risco de virar cinzas. Daí o justificável medo.

Dito isso, não deixo a menor sombra de dúvidas de que fui criado em um lar apoiador das ações militares. Ou, simplificando, de direita. Meu pai viveu defendendo a tese pela qual os quartéis, aqui e em outros países da América Latina, livraram suas nações de grupos financiados, treinados e submissos à Cortina de Ferro, e que pretendiam transformar nossa ordem política e social em uma enorme Cuba. E, isso ocorrendo, ele estaria condenado à prisão ou morte. É impossível adivinhar como seria o Brasil neste caso, pois hipóteses não passam de exercícios de ficção e, assim, não se sustentam. O único parâmetro confiável é o da realidade: meu pai faleceu sem ver a ilha de Fidel abandonar um severo regime ditatorial, bastante impermeável às idéias opostas.

Na medida em que eu e minhas irmãs mais velhas fomos crescendo, todos os nossos heróis surgiam, que ironia, como homens de esquerda. Músicos, escritores, jornalistas, atores, mestres e amigos sofriam com o cerceamento de suas palavras e ações. As idéias que não habitavam no exílio se escondiam em metáforas, resistindo na medida do possível à censura. Multiplicavam-se os relatos de perseguição, morte e tortura. O livre pensar, por si, já era um libelo subversivo. E o medo de que uma palavra mal interpretada levasse a nós, ainda meninos, para os porões da ditadura, voltou para a minha casa. Afinal, claro, engrossávamos as fileiras que pediam o final da ditadura. Tudo o que condenava o Brasil a uma vida miserável de Terceiro Mundo era culpa da falta de democracia. Acreditávamos que o voto viria a nos redimir.

Por fim, a liberdade saiu vencedora. A redemocratização lenta e gradual, muito comemorada na conquista do primeiro governo civil, tanto mais quando pelo voto direto, sepultou o silêncio. Raiou a esperança já desejada e prometida em verso e prosa. Os militares voltaram para a caserna e o medo de emitir opiniões esmoreceu. O cálice de vinho tinto de sangue foi afastado; a noite terminou; o sol nasceu; as flores venceram os canhões. O Parlamento redigiu a Constituição Cidadã. O voto colocou, então, um a um, os principais nomes e partidos de esquerda nas diversas esferas do poder.

Hoje, trinta e um de março de dois mil e nove, no momento em que escrevo esse texto, a ditadura militar volta a ser pauta. Na mesma edição de jornal, pipocam notícias nada abonadoras sobre os poderes Executivo e Legislativo. A violência e a roubalheira crescentes denunciam a falência do Judiciário. Como em um círculo vicioso, o medo renasce em meu coração: o calote vexatório apresentado pela democracia brasileira redime, justifica ou permite cogitar governos de exceção? Temo, profundamente, que alguém responda que sim. Quero morrer acreditando que o voto continuará a ser a melhor maneira de impedir que a liberdade, cujas asas estão abertas sobre nós, defeque em nossas cabeças.

26.3.09

Número 310

FELIZ ANIVERSÁRIO

Todo casamento, seja ele celebrado no altar, no cartório ou em acordos menos formais ‒ mas tão sérios quanto ‒, traz consigo um manancial de regras. Basta lembrar das frases proferidas pelo sacerdote: na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando e respeitando etc e tal. Ou recordar o fato de que, no momento em que firmarmos um contrato de comunhão parcial de bens, por exemplo, toda uma jurisdição estará ali aglutinada. Quando nada é assinado, as leis do concubinato, quer se queira ou não, passam a rechear o colchão matrimonial ‒ conforto para alguns, insônia para outros. O que pouco se fala é dos princípios jamais ditos ou escritos, porém moldados e sacramentados pela tradição. Dentre eles, um dos que mais apavora os homens compila os deveres e direitos de cada uma das partes com relação ao aniversário de casamento.

Há quem defenda que um homem tem o direito de deixar escapar a data em que aconteceram as núpcias. Não que seja esse um direito líquido, muito menos que seja ele certo. Digamos que esteja enquadrado na categoria dos direitos adquiridos. Explico: o primeiro aniversário jamais pode ser esquecido. Jamais! Teoricamente, dentro do intervalo de um ano, ainda ferve nas veias o calor da paixão. Em seu nome, muitos fogos de artifício estarão posicionados para comemorar a data. Ignorar solenemente tal bateria é um pecado inominável, uma insensibilidade brutal, um desperdício ridículo. Do segundo até o quarto aniversário, com ou sem filhos, o lapso passa a ser incomum, mas já existe quem faça jus ao direito de mosquear.

Entre o sexto e o sétimo ano, em média, os homens começam gradativamente a obter um certo direito de esquecer a data que está impressa em baixo relevo no ouro da aliança. Sabe como é: muito trabalho, correria, responsabilidades... Futebol, música, pescarias, chopes, essas coisas de maridos. Com a atenção voltada mais para datas como as do vencimento do cartão de crédito, o prazo do imposto de renda ou a entrega de um relatório, os dias, semanas e meses se embaralham e, quando se vê, o dia chegou. Pior: chegou ontem. Muito pior: chegou semana passada. Aí bate a culpa... Porém, entre o décimo segundo e o décimo terceiro ano de matrimônio, se as falhas persistirem, a tal culpa acabará esquecida também.

Bom, mas se nós homens temos, ou adquirimos, o direito de esquecer a data de aniversário de casamento sem fazer disso um pecado mortal, nem por isso nos furtamos de alguns deveres. É nossa obrigação, claro, cobrar da esposa a razão pela qual ela abandonou um dos seus hábitos mais elementares: o de nos dar indiretas pouco antes do dia chegar. Ora, se ela jamais esquecerá a data, se ela sabe por tradição que corre o risco de ver o dia passar em branco, se ela conta com aquele jantar especial, por que atirar sobre nossos ombros toda a responsabilidade? Isso não faz o menor sentido! Nós crescemos assistindo nossas mães lembrando nossos pais de compromissos dessa natureza. Não é justo que, logo agora, não tenhamos mais esse direito. Devemos reclamar!

Outro dever do homem é o de cuidar especialmente dos quinquênios (nossa, que falta faz o trema...). O quinto, o décimo, o décimo quinto aniversário de casamento, e assim por diante, pede um esforço extraordinário de atenção. Fica abolida a regra das dicas por uma razão sórdida: elas estarão nos testando e, por isso, pouco darão pistas sobre a proximidade da data. Também existe compromisso tácito de presentear a esposa com algo marcante a cada cinco anos. O momento não é bom? Deu um presentão ano passado? Acabamos de nos mudar? Azar o seu! Faça o possível, o impossível e, de preferência, faça uma surpresa. É injusto dizer que as mulheres servem-se da memória tão somente para o mal. As recordações funcionam às vezes para o bem, garanto. Por isso, outro dia maravilhoso e inesquecível contará muitos pontos na relação. Ou, Deus nos livre, no indesejado rompimento. Lembre-se disso.

A propósito, ao meu anjo, Feliz (nosso) Aniversário!

19.3.09

Número 309

AMAR AINDA É?

Sabe você o que é o amor?
Não sabe, eu sei

Carlos Lyra e Vinícius de Moraes

Quando eu conheci o amor, amar era saber o nome e o sobrenome dela. Talvez até o nome da mãe, do pai e dos irmãos. Era transformar seu endereço em passagem para todos os destinos, fazer amizades na turma dela, aparecer nos sábados à tarde só para jogar um vôlei. Amar era somar cinco ou seis motivos para andar à sua volta quando, na verdade, o motivo era um só.

Amar era trocar correspondência. Receber dela a letra de Leãozinho, do Caetano, e responder com versos de Meu Bem Querer, do Djavan. Aliás, amar era ter uma música só para os dois, tal qual os pares das telenovelas. Escutar o mesmo tema uma tarde inteira ao lado dela, como se a poesia pudesse dar conta do passado e do futuro. Amar era ser fiel: a mesma música jamais serviria de trilha para outro amor.

Amar era descobrir encantos possíveis, pois nem todos os dotes nos eram franqueados. Assim, era preciso decorar o formato dos dedos dos pés, perder-se nas penugens da nuca, trilhar cada curva das orelhas, mergulhar nos olhos, curtir todos os segundos de um beijo. Brincar muito, pois, em jogos de sedução, as mãos podiam medir cada palmo de recusas e permissões. Amar era contar os sinais da pele com os dedos, fazer cócegas, dar sustos.

Amar era viver no eterno sobressalto da insegurança. Desconfiar do cochicho da amiga, principalmente quando seguido de sorrisos maliciosos. Temer a aproximação dos meninos mais velhos, manobrando exércitos para delimitar território. Morrer de paixão sem jamais declarar-se. Negar até a morte o que estava escrito na testa. Amar era tentar conhecer o outro no exato momento em que a própria anatomia se mostrava uma estranha.

Amar, para os meninos, era desejar o corpo e barganhar com a alma. Para as meninas, ao contrário, era desejar a alma e negociar com o corpo. Daí o sofrimento dos homens: desde os primeiros ensaios do que era amar, as trocas estavam flagrantemente desequilibradas. Isso explica, mas não justifica, a desonestidade daqueles que surrupiavam a contrapartida. Amar, então, era chorar o desamor nos ombros dos amigos. Amigos que, em alguns casos, morriam de amor em segredo.

Amar era, também, odiar. Odiar, antes de tudo, a própria inexperiência. Odiar o deboche dos outros, as dúvidas ruminantes, as recusas, os enganos. Odiar o ciúme, efeito colateral presente em quase todas as primeiras paixões. Sentir um ódio enorme por continuar amando quando jurávamos nunca mais amar. Amar era odiar o amor não correspondido e aprender a lidar com essa frustração.

Por fim, quando eu descobri o amor, amar era olhar com total desdém para as figuras Amar é..., criadas pela neo-zelandesa Kim Grove Casali, sucesso absoluto entre as meninas nos anos 70. Mesmo assim, comprar para elas cartões e outras lembranças com a adocicada mensagem decorada com infantilizados bonequinhos nus. Com isso, amar era aprender a fazer concessões, driblar nossa natureza de ogro, desde que ajudasse a conquistar a amada.

Será que hoje amar ainda teria chance de ser assim?

11.3.09

Número 308

SOMOS O QUE ESCUTAMOS

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?

Antunes, Fromer & Brito

Pergunte a um nutricionista o que aconteceria com uma criança ou adolescente cuja dieta fosse resumida a macarrão instantâneo. Mesmo sem ser um estudioso da matéria, posso adiantar com segurança que o jovem teria seu desenvolvimento fisiológico severamente prejudicado, apesar de ele não morrer de fome. Aliás, talvez até engordasse.

Agora, pergunte a um músico (ou poeta) o que aconteceria com uma geração inteira cujas obras prediletas cozinhassem em três minutos, pudessem ser engolidas sem mastigar e tivessem todas o mesmo gosto. E, depois de exigir esforço digestivo nenhum, elas quase nada nutrissem. Pois lamento informar que essa turma de ouvidos e consciências repletos de vento engorda entre nós.

A comparação entre a música popular que roda nos pratos (essa é velha) com o macarrão instantâneo pode até parecer forçada, mas é lamentavelmente correta. O que os produtores têm feito de melhor nos últimos anos é garimpar talentos submissos, moldar, embalar e rotular: sabor poprock, sabor sertanejo, sabor pagode, reagge, funck, melancia. Então, a base pálida é temperada despejando o envelope que contém figurino descolado, coreografia sensual e assessoria de imprensa com seus factóides pontuais.

Se não bastasse, depois de alcançada a fervura popular, artista e fã saem convencidos de que sucesso é sinônimo de qualidade na mesma medida em que barriga cheia é igual à nutrição. E que muitos anos de estudo ou aprimoramento formal é mera perda de tempo: todos querem consumir o que se engole mais rápido, surdos para as nuances. Cardápio turbinado pela internet, onde celebridades nascem, se reproduzem e morrem na velocidade de uma Drosophila Melanogaster.

Porém, atirar nas largas costas do mercado a culpa da sofrível condição da música popular brasileira (MPB), cuja perda de status é tão grande que ninguém mais se orgulha de pertencer à sigla, é uma redução conveniente. Pode-se dizer que miojos melódicos estão cada vez mais presentes nas prateleiras das rádios e demais veículos de comunicação. (Em algum momento foi diferente?) Apesar disso, obras eruditas, instrumentais, folclóricas, vanguardistas etc, bem ou mal, também estão expostas. E melhor estarão posicionadas quanto mais forem consumidas.

Logo, entre outras, é obrigação dos pais educar o paladar musical dos filhos, ao invés de adotar a confortável tese de que não adianta insistir ‒ eles só gostam de canções de massinha, mesmo. O caso ficará mais grave quando eles chegarem na adolescência: passar pela mais determinante fase de crescimento intelectual e afetivo sem ter a mínima profundidade musical vai gerar, para sempre, uma perda de vitaminas e sais minerais indispensáveis para o desenvolvimento do senso crítico. Sim, pois é na juventude que nossa bagagem estética é consolidada.

Bom, empurrar doses elevadas de jazz goela abaixo da meninada não será solução. Porém, se um jovem chegar até os vinte anos sem ouvir qualquer notícia de Pixinguinha, ou Noel Rosa, Villa Lobos, Cartola, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Chico Buarque, Egberto Gismonti, Milton Nascimento etc (a lista é grande), que não coloquem a culpa no KLB, no Latino ou na Cláudia Leite (outra lista enorme). Estes últimos entregam o que prometem e, com certeza, matam a fome. O problema é: nossos jovens devem ter fome de quê? Afinal, serão, até a última migalha, fruto do que escutarem.

6.3.09

Número 307

DELICADO

Ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino

Pepeu Gomes

Experimentei, de modo involuntário, algumas sensações que vejo cotidianas entre as mulheres que me cercam. (Não, não é nada disso que alguém possa estar pensando.) Tudo começou quando decidi escrever sobre o Dia Internacional da Mulher, comemorado em oito de março. Um tema aparentemente fácil de versar, pois admiro muito o sexo feminino, conheço-as razoavelmente bem, sou refém de seus encantos. O que jamais poderia imaginar, porém, aconteceu: como em um roteiro de filme hollyoodiano, uma parte indissociável da personalidade feminina me foi incorporada. Refiro-me à insatisfação crônica.

Estive por dias e dias diante da tela do computador tal qual uma mulher defronte ao roupeiro, ou dentro do closet. Primeiro, olhei para dentro de mim por um longo tempo para concluir apavorado: não tenho palavras para a ocasião! Um colossal exagero, óbvio. Era o espírito feminino pousado em meus ombros sem que pudesse desconfiar. Homens não costumam divagar muito para se vestir ‒ o critério muitas vezes é meramente geográfico, isto é, a posição da camiseta na pilha, a calça que já está no espaldar da cadeira, o sapato mais próximo. Da mesma forma, depois de escolher um tema, masculinamente, tenho a tendência de pouco sofrer até concluir o trabalho. A semana começava diferente...

Se não bastasse, comecei nada menos do que quatro textos sem avançar até o terceiro parágrafo. Havia uma boa chance de todos eles tornarem-se boas crônicas, dependendo de cuidados de elaboração. Mas quem disse que eles me satisfaziam? Então, nenhuma outra hipótese se mostrava mais correta do que o desprezo total às palavras escritas até ali: elas nunca me agradariam. Um detalhe curioso no processo ‒ e que considero mágico ‒ é a forma nublada de minhas dúvidas. Perguntei-me várias vezes o que havia de errado com a crônica nascente e em nenhum momento soube explicar o que estava me perturbando. A única certeza era a vontade de trocar de texto. Mais: trocar de abordagem. Ou trocar tudo, até eu mesmo. Que inferno!

Passada essa fase, e chegando perigosamente no final do prazo hábil, escrevi uma crônica inteira com uma idéia que parecia ótima. Voltei ao texto, fiz ajustes, mudei o título, troquei o final. Pronto! Então, como se fosse uma dama diante do espelho, odiei o resultado. O-di-ei, gente! Quer coisa mais mulherzinha do que produzir meticulosamente um trabalho e considerá-lo um horror tão logo chegue ao seu final? Alguém já viu um homem trocar de terno no penúltimo minuto antes de uma recepção social? Ou mudar o cardápio depois do jantar estar terminado? Ou mesmo retornar na loja com o produto recém adquirido, dizendo, lânguido, que repensou a cor? Pois isso me aconteceu desta vez...

Aqui, agora, peço a Deus que a maldição abandone minha mente. Ok, já aprendi a lição: a mulher estar insatisfeita sem conseguir explicar a razão não é uma condição transitória. Não é nada conosco, homens. Não depende de ciclo hormonal, fase da lua, estação. Acontece quando ela está de férias, trabalhando demais, em novo endereço. Ao contrário do que se pudesse supor, é algo muitíssimo mais delicado: faz parte de sua natureza. É intrínseca. Quando corretamente dosada, bem compreendida, a insatisfação feminina é mola propulsora, agente qualificador, princípio de evolução. Porém, funciona apenas com elas. Homens são mais simples, diretos e objetivos ‒ pão, pão; queijo, queijo. Sofrem muito quando estão em eterna dúvida.

O Rufar dos Tambores está atrasado e o texto vai sem revisão ‒ os leitores já estão buzinando no carro. Dou uma última espiada no espelho da tela e resisto à tentação de mudar algo. Respiro fundo, olho para a tecla ‘delete’, mas decido: ‘enter’.

27.2.09

Número 306

ABRIR OS OLHOS


Para M.H.


Quando ela abriu os olhos, o que viu foi a luz branca e fria do hospital. Tudo bem: hoje é sempre assim e, sob certo prisma, assim é bem melhor. Antes, para voltar um pouco no tempo, ela já escutava. O médico insistia para que todos falássemos com ela, pois, mesmo que não entendesse as palavras, receberia com toda a clareza as mensagens enviadas pelo coração. Ela, dizia ele, está presente e ligada ao mundo da mesma forma que todos nós. Falem, falem muito com ela. Digam do amor, contem da vida.

Ao abrir os olhos, a expressão dela foi de espanto. Compreensível. Porém, em poucas horas, o olhar serenou. Desconfio que a fragilidade a que todos estamos expostos nesse momento é a primeira grande lição, aquela que deveria ser nossa companhia por toda a estrada. Isto é: contamos uns com os outros, ou morremos. É assim desde as cavernas. Ali, deitadinha diante de nós, ela era o retrato da falta de autonomia. Não entendia muito bem o que estava acontecendo, não falava, quase não reagia – consigo, apenas os instintos. Precisava ser banhada, alimentada, acompanhada por olhos responsáveis vinte e quatro horas por dia. Isso por um bom período.

Com o passar do tempo, vi – estamos vendo – a alegria de cada uma de suas importantes conquistas: manipular talheres, falar, dar os primeiros passos. Reaprendi com seu exemplo a dar o valor mais elevado e justo a atitudes aparentemente banais, tais como tomar banho sem ajuda, fazer refeições, ir sozinho ao sanitário, dormir em paz. Afinal, é apenas quando estamos senhores de nossas necessidades que começamos a retribuir o auxílio que merecemos. E, cada um em seu ritmo, no momento certo, a retribuição de todos virá com trabalho produtivo e útil, como foi com nossos avós e com os avós de nossos avós.

Ela me disse, muito mais em atitudes do que com palavras, que é nesse paradoxo entre autonomia e dependência que se equilibra a grandeza da humanidade. E seu infortúnio. Quando a balança pesa mais para a autonomia, tomamos decisões erradas, basicamente egoístas. Esquecemos do passado e do futuro, atendemos nossos caprichos sem medir corretamente as consequências para os demais. No outro extremo, pecamos justamente por nada decidir, delegando ao outro, sem controle ou interferência, nosso próprio destino. O que se espera de um homem adulto é o domínio desta balança: ser, num só tempo, independente e solidário.

Quando abriu os olhos, ela estava em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Em questão de dias, reproduziu o mesmo caminho da primeira infância – justo, pois nascera de novo. Assim, passou da total dependência para uma autonomia regular, limitada pela enfermidade residual. Ontem mesmo, ela me garantiu que ninguém passa por isso sem máculas. Porém, mais do que cicatrizes e dor, ficam as lições. Na hora, lembrei da alegria de quando os filhos começam a caminhar, comer sozinhos, ler e escrever. Notei que, dia após dia, o dever dos pais é o de transformar as crianças em homens e mulheres capazes, completos. E, junto, fazê-los perceber que não estão sós – são parte de uma teia formada por direitos e deveres sociais, passado e futuro.

Para mim foi, sem dúvida, uma cena bastante forte ver o sorriso dela, exemplo de mulher independente, comemorando vitórias tão irrisórias como a de se erguer da cama ou banhar-se livre de auxílio. A evidência de uma similitude entre o começo e o final da vida é algo espantoso e pode vir a ser bastante revelador. Isso, no mínimo, está servindo para me abrir ainda mais os olhos.

18.2.09

Número 305

PÉ ATRÁS

Até onde sei, os jogos que envolvem lutas partem de uma postura corporal defensiva sólida e equilibrada – joelhos levemente flexionados e pés em desencontro. Boxe, esgrima, judô, capoeira... Seja qual for a escola, todo mestre cuidará para que seu aprendiz não ofereça ao adversário um flanco vulnerável. Até onde sei, ninguém consegue abraçar o próximo assim, com o pé atrás. O que vale para o confronto, não vale para o conforto.

A medo endêmico tem levado especialistas em segurança a ocuparem espaços privilegiados em veículos de comunicação, normalmente contíguos às ensanguentadas editorias de polícia. Suas dicas nos ensinam a entrar e sair de garagens, caminhar pela calçada, portar objetos, sacar dinheiro do banco. Aprendemos a escolher o melhor lugar para estacionar, conduzir de forma protegida uma criança, parar corretamente no sinal vermelho à noite. Passamos a reconhecer movimentos suspeitos em nosso redor, situações nas quais determinados riscos aumentam, rotinas que nos tornam frágeis. Em outras palavras, nos chega a mensagem de que precisamos encarar o mais inocente hábito como sendo uma manobra militar. A ordem é manter, sempre, o pé atrás.

O problema é que esse ar desconfiado, essa postura defensiva, esse eterno sobressalto, tudo acaba contaminando a nossa visão de mundo. O próximo, mais do que nunca, tornou-se um oponente em potencial. Querendo ou não, transmitimos esse medo para nossos filhos, seja em orientações explícitas – replicando as dicas de segurança –, seja em demonstrações involuntárias de temeridade. Aliás, parêntese fundamental, muito estranho seria não fazê-lo, ao menos nas metrópoles brasileiras. Todo o esforço de civilização acaba se perdendo e voltamos a ser o primata que um dia desceu das árvores, tomou a postura ereta e passou a enfrentar os lobos. De diferente, apenas o lobo – agora homem.

Por tudo isso, começa a ficar muito complicado projetar um futuro mais solidário: desde o berço, as crianças são treinadas a manter o pé atrás. Minha geração ainda circulou pelas ruas sem grandes receios, ou pelo menos sem achar que poderia sofrer alguma brutalidade no menor vacilo. Havia, sim, orientações preventivas de parte dos pais. Mas nada que se compare ao comportamento de guerrilha ao qual estamos expostos. O acirramento da violência e os traumas por ela gerados exacerbam o medo, alimentam a solidão e criam uma espiral de hostilidade.

E está se tornando cada vez mais difícil escapar deste círculo vicioso. O exemplo, porém, precisaria obrigatoriamente vir de cima: administração pública honesta, instituições sólidas, polícia confiável, direitos preservados, deveres a cumprir. Muito por isso, tenho sucumbido à desilusão. Quanto mais deveria avançar nossa consciência representativa, efeito direto de muitos anos com liberdade de escolha, menos fé eu deposito no estado brasileiro. Para mim, o poder constituído, em todas as esferas, parece divorciado do bem comum numa escala crescente. Faz um bom tempo que, da mesma forma como sou obrigado a me portar na rua, cumpro a obrigação de comparecer às urnas: com o pé atrás. Postura que torna impossível abraçar qualquer causa. Desconfortáveis, vivemos a ditadura do confronto.

12.2.09

Número 304

AA

Você está sentado, pressuponho. É sempre bom estar assim no momento de receber uma notícia com peso de confissão. E não pretendo fazer rodeios: sim, sou membro de um grupo de apoio chamado AA. Aprendi que tenho um mal que nasceu comigo, é hereditário e determinante. Algo que me impõe um enfrentamento diário, com coragem, perseverança, conhecimento. Uma característica que já passei para os meus filhos, com certeza, e, por isso, me força a ser um modelo de combate. Quem sabe, ao verem o pai agindo de modo a fugir do padrão estabelecido, consigam do pior se preservarem. E, de alguma forma, anularem isso para futuras gerações. Faço parte, acima do orgulho ou do embaraço, do AA – os Alemães Anônimos.

Quer dizer, anônimos até ali: quem nos olha, logo se dá conta de que somos alemães. Está na cara, a pele denuncia. Também a cor dos olhos, o cabelo, o modo de ser, o sobrenome. Nós vemos, todos veem. Até por isso, nosso AA dispensa reuniões. A quem resolve fazer parte deste grupo, basta estar atento a tudo que implica ser alemão. E cuidar, cuidar muito com as armadilhas. A principal delas, creio, é a de atender às expectativas de cunho preconceituoso, que se agravaram depois da Segunda Guerra Mundial. De pais para filhos, gastamos a pele para fazer sumir a suástica que todos acreditam ter migrado dos uniformes do exército de Hitler para nossos braços. Não é fácil.

Outro desafio diário para quem faz parte do AA é o de amenizar nossa rigidez, nossa severidade. Conseguir achar graça de si mesmo, permitir-se falível, carente, arrependido. Amolecer o coração, desenrugar a testa, relaxar os ombros – essas atitudes que são ridículas de tão fáceis para muita gente, para um alemão viram trabalhos de Hércules. Dois italianos, por exemplo, podem trocar impropérios, jurar-se até de morte em um dia. No outro, estarão à mesa, discutindo o mesmo tema, ou um novo, e a vida continua. Aos alemães de fato, basta uma palavra enviesada, um mal-entendido, e deixarão de se falar até a morte. Mesmo entre pais e filhos. Mesmo entre irmãos. Ou especialmente entre eles.

A melhor maneira de entrar para o AA é, primeiro e definitivamente, assumir-se alemão. Olhar para si e para seus pares e sussurrar: muito bem, o que vou fazer com isso que sou? Afinal, nem tudo é ruim. Aliás, a maior parte dos atributos da alemoada gera bons resultados sociais – garantia até de orgulho. É bem o caso da vergonha: metade do ânimo de um alemão em cuidar do seu jardim e varrer sua calçada vem do prazer de estar em um ambiente bonito e asseado. A outra metade, do que imagina estar pensando o seu vizinho a esse respeito. Sim, “o que eles vão pensar” é quase um lema entre os alemães puro sangue. Na verdade, a questão é “o que eu pensaria se fosse eles”. No mínimo, que sou um relaxado, é a resposta. De todo modo, a cidade dos alemães é sempre limpa e bem cuidada. E isso não é bom?

Diferentemente dos alcoolistas, que em seu AA aprendem a evitar todos os dias o primeiro gole, aos Alemães Anônimos é permitida – até preconizada – a alemoíce social. Fazer deste mal um bem: contribuir para colocar quem está fora dos trilhos na linha e, ao mesmo tempo, descarrilar uma vez que outra. Começar em casa, sendo afetuoso e aberto – desarmando o espírito dos filhos. Mas aplicar isso também na profissão, na vizinhança, na história. Andar de braços nus e mostrar que não existe a suástica presumida. Dar e pedir colo. Perdoar. E, principalmente, perdoar-se.

P.S.: recomendo a todos o excelente filme O Leitor, de Stephen Daldry. Quadro contundente e detalhista do que é ser alemão. Ou, para casos como o meu, um revelador espelho.

4.2.09

Número 303

PÉTALAS

Bem me quero velho contador de histórias. Crônico aumentador de histórias. Inventor de histórias. Todas elas menores do que uma fração de mini-conto. Muitas sem pé nem cabeça – histórias minhocas. Algumas, poucas, com chance de conter moral. Relatos de outros tempos, mas ainda capazes de seduzir netos, sobrinhos netos, filhos dos vizinhos: a meninada.

Mal me quero velho repetitivo. Incapaz de uma nuance, de um improviso. Cheio de certezas e verdades. O senhor dos fatos com dedo em riste a pressionar uma única tecla. O primeiro a desdizer qualquer fantasia, sonho ou mentira saudável. Duro como uma foto três por quatro. Previsível. Árido. Impermeável. Temido e respeitado.

Bem me quero velho de corpo. Gordinho, se engordar. Enrugado ao permanecer esquálido. Calvo, mas penteadinho. Parceiro para longas caminhadas e pequenas peraltices. Modelo de saúde, não de beleza. E, ao contrário do preceito dos mágicos, com os olhos mais rápidos do que as mãos. Aprendendo – que fazer – anatomia pelo método mais dolorido: a dor.

Mal me quero velho de alma. Talvez preservado por fora, mas carcomido no âmago. Ranzinza. Impaciente. Plúmbeo como um céu eternamente armado para temporais. Puído e desbotado como um uniforme em desuso, mofando no baú cadeado. Rancoroso, se pobre. Avaro, contando com a boa sorte do destino. Ensinando anatomia pelo método mais dolorido: a dor.

Bem me quero velho espiritualizado. Humilde. Aprendiz. Apto para sorrir da dificuldade crescente. Leve, sim, para que a vida – e a morte – ocorram obedecendo a lei do menor esforço. Amoroso sem ser trouxa, cauteloso sem ser covarde, alegre sem ser ignorante. Desapegado de tudo o que me invejam: com meus pássaros voando soltos, fora de gaiolas.

Mal me quero velho materialista. Senhor de escravos, carcereiro, majestade. Egoísta até o último suspiro, motivo de chacota, causador de lágrimas. Vampiro. Preconceituoso, prepotente, hipocondríaco. Assombrado por conspirações, incrédulo na humanidade, pessimista contumaz. Alguém que não tenha sentimentos, e sim interesses.

Bem me quero velho se estiver valendo a pena. Se não causar dano ou sofrimento. Se conseguir me reconhecer no espelho. Se a dignidade me acompanhar. Se merecer a companhia dos mais jovens. Se contar com alguns da minha geração para traçar paralelos. Se continuar um pouco útil. Se não estiver devendo. Se, vivo, não pareça morto.

Mal me quero um velho esquecido pela morte. Isso, mais do que tudo, será o fim. E, na derradeira pétala, para que não mal me queiram, o bem me quero.

29.1.09

Número 302

SERPENTE LUMINOSA

Quando é verão, os telejornais de sexta-feira e domingo à noite mostram uma imagem que se repete, repete e repete. Aliás, o faz com tanta certeza que dispensaria a equipe de filmagem no local: basta reproduzir a cena da semana passada, do verão anterior, de alguns anos antes. É o quadro sobre o qual o jornalista informa, em off, quantos automóveis passam por minuto em determinada praça de pedágio rumo às praias. Uma serpente luminosa do foco ao horizonte, que na sexta aparece vermelha e, no domingo, branca. Serpente gigantesca com um lado nascendo em cidades como Porto Alegre e São Paulo, e o outro chegando ao litoral. Serpente de um tempo voraz.

Cada célula epidérmica desta serpente é um automóvel em deslocamento. Em cada automóvel, alguém, grupo ou família, migrando para o clima ameno em busca de momentos de lazer. A luz que destaca o ofídio na paisagem é a reprodução do fogo primata – por onde anda o homem, leva consigo sua energia. É como se as lanternas e faróis fossem a tocha que saiu – e voltará – de uma pira urbana com o objetivo de acender a outra, esperando para ser iluminada na praia. Na verdade, é exatamente isso o que acontece: nos finais de semana, a faixa litorânea recebe a serpente e se inunda de luz.

Existe uma eloquente imagem de satélite que demonstra a coincidência entre desenvolvimento econômico (político, cultural, de infraestrutura) e a energia elétrica. Nela, é nas áreas iluminadas do globo terrestre que encontramos pujança. Nas outras, pobreza e índices de desenvolvimento deixando a desejar. Mais do que a presença de homens, o brilho noturno de determinada cidade, estado ou país indica seu quadro de prosperidade. Também se descobre se a riqueza está concentrada ou distribuída. A luz que serpenteia a paisagem – vista, com certeza, do espaço –, carrega consigo os homens brilhantes, bem sucedidos. À sua volta, trocas de bens e serviços estarão garantidas. Bendita serpente.

Maldita serpente, por outro lado. Tamanho jorro de luz significa estarmos trocando seis por meia dúzia: saímos de uma cidade para outra cidade. Nas duas pontas, prédios de apartamentos, ruas lotadas de automóveis, filas, supermercados, bancos, calçadões, bares, restaurantes, gente, gente, gente. Diferente, o mar. Quando não contaminado de coliformes fecais. A mesma luz que significa segurança e prosperidade, compromete todo o ecossistema. Afinal, junto com ela andam as garrafas PET, o papel, as latinhas e a falta de educação. O barulho, o solo alterado e a fumaça. O intenso apetite da serpente luminosa é pelo imediato.

Enquanto rasteja, a serpente humana termina, para o bem e para o mal, ofuscada por sua própria luz. Com suas lâmpadas claríssimas e tecnológicas, ela perde – quando não destrói – espetáculos tímidos e grandiosos oferecidos pela natureza, outrora os protagonistas de faixas litorâneas. Na mesma medida em que visores de telefones celulares se iluminam, vagalumes somem do entorno. Ao mesmo tempo em que postes elevados clareiam as areias da praia, apaga-se o branco azulado da espuma das ondas em noite de lua cheia. Os olhos-de-gato das sinaleiras dos automóveis refletem milhares de vezes mais do que os olhos das corujas. Enfim, para cada conquista, uma perda.

A linha do tempo desenhada pela serpente luminosa das estradas parece sem volta. Minha esperança é de que algumas praias e cidades turísticas resistam pequenas e, assim, mantenha-se certa penumbra. Refúgios acomodando, por exemplo, o equilíbrio entre o conforto e a preservação ambiental. Neles, e em outros ambientes bucólicos, ainda poderemos nos maravilhar com outra serpente de luz, especialmente revelada à sombra do progresso: a Via Láctea.

23.1.09

Número 301

EM RUÍNAS

Na praia da infância e juventude, na mesma quadra onde minha mãe ainda preserva nossa casa de veraneio, um prédio resta aos pedaços. Ele esteve por muitos anos com ares de abandono, até ser consumido por um incêndio. Uma paisagem que, antes do fogo, maculava minha memória sob forma de cicatriz, agora escancara vísceras apodrecidas. Ela me dói. Dor compartilhada por veranistas tradicionais, da minha e de gerações anteriores, quando não se consegue evitar o nobre endereço de esquina. Mesmo não tendo qualquer responsabilidade sobre o trágico destino do lugar, uma parte fundamental da minha vida agoniza sob os destroços.

Refiro-me ao salão principal de um antigo hotel, desativado – se não me trai a memória – no final da década de oitenta. Até então, era sol de um sistema humilde de poucas casas em sua órbita. Metros quadrados de uma edificação encantadora em sua simplicidade, fonte inesgotável de luz e calor humano. Destino para onde convergiam todos os habitantes, atraídos por um magnetismo explicado, em parte, por ser o principal centro de serviços da época. Mas, também, pelo carinho verdadeiro com que as pessoas ali compartilhavam.

Era lá que buscávamos o jornal cedo da manhã, encontrando vestidas e perfumadas as mesas de café. No ambiente do bar, poucos já repercutiam as boas e más notícias do dia, ainda quentes. Defronte ao hotel cruzávamos a caminho do mar, carregados de guardassóis e esteiras. Diante dele passávamos na volta, exaustos, esfomeados, cobertos de areia e sal. Também ao hotel, um pouco mais tarde, voltávamos de roupas limpas e barriga cheia, sedentos por um picolé. Dependendo de encontros e desencontros, íamos para casa ou partíamos para os mais variados endereços, gozando de liberdade e autonomia conquistadas desde seis ou sete anos de idade.

À noite, de cabelo lambido e roupa caprichada, quase toda a praia se encontrava no salão principal, no bar e nos avarandados do hotel. Havia mesas de pife, canastra e sete e meio. Ainda no carteado, o ruidoso dorminhoco acontecia bem longe da televisão, iluminada pelas telenovelas. Muita correria de crianças para dentro e para fora. Os jovens ocupavam os bancos externos, ambiente ideal para o namoro, conversa fiada ou cantoria ao som do violão. Nem a chegada da madrugada espantava o pessoal, até o inevitável cartão vermelho em nome da tranquilidade dos hóspedes... Afinal, em poucas horas, as mesas do café estariam novamente postas, já teriam chegado os exemplares do novo jornal, trocariam bons-dias os primeiros pescadores.

No hotel acontecia o divertido bingo de cartelas marcadas com feijões. E a gincana, o carnaval infantil e adulto, bailes de casais. Rodas de samba de tarde inteira. Nossos encontros de antes e depois do vôlei e futebol. Defronte ao hotel era o ponto de partida do bloco carnavalesco para praias vizinhas, ponto de referência para quem viesse de outro lugar, relógio-ponto marcando meus primeiros vinte anos. Um palácio cuja maior riqueza foi construir a minha e outras tantas histórias simples, anônimas, irrisórias. Ou grandiosas.

A ruína que hoje me entristece contrasta com os relatos apaixonados que não poupo fazer aos meus filhos quando conto do hotel. Se ainda estivesse ativo, aposto que sua estrela seria capaz de vencer até mesmo o obscurantismo da violência, cujo resultado foi a transformação de todas as casas da praia em prisões gradeadas. Seu magnetismo, quem sabe, ainda seria capaz de promover novos encontros. Porém, ao contrário, os escombros do prédio expõem o cadáver insepulto de outro tempo. Um tempo sem videogame, sem celular, sem computador. Tempo de verões arrastados, tranquilos e doces como as músicas de Caymmi. Nas ruínas deste tempo, habita a agonia de minh’alma.

16.1.09

Número 300!

TORMENTOS, ARGUMENTOS E DOCUMENTOS

Se tamanho fosse documento, o elefante seria o dono do circo. Se tamanho fosse documento, era o homem quem puxava a carroça. Tais e outros argumentos com a mesma natureza estavam sempre na ponta da minha língua quando eu era pequeno. Não que hoje eu seja lá muito grande... Mas quando eu era pequeno, eu era muito menor do que os outros. Além de baixinho, miúdo. Magro de fazer a mãe, excelente cozinheira, passar vergonha. Não que eu tenha galgado muitos quilos na balança...

As frases prontas saltavam de minha boca por um só motivo: nunca me deixar diminuir pelo tamanho. Estar à altura dos amigos e colegas era um compromisso de guerra; bons argumentos, meu cavalo de batalha. Nas aulas de história, cedo reparei no porte físico de Napoleão, contrapondo-se com a saga de suas conquistas. A grandeza de alguém jamais deveria ser medida em centímetros de altura, mas na elevação de seu caráter, de suas aspirações. Os sonhos também seriam parâmetro mais fiel para a verdadeira estatura de um homem.

Na teoria tudo faz sentido. Mas na prática não era nada fácil. Sou de uma geração em que as turmas de primário, o ensino fundamental da década de setenta, perfilavam-se antes de entrar na sala de aula. E o sistema estabelecido para esta sessão de ordem unida era, da frente para trás, do menor para o maior – gigantes no fundo. E eu era tão pequeno, mas tão pequeno, que, para ser o primeiro da fila, precisava ficar na ponta dos pés. Vacilando, ganharia a pole position de todas as turmas, mesmo as de séries mais novas. Um vexame.

Na hora das disputas no braço também me via em maus lençóis. Nos dias de hoje, as crianças brigam menos do que em outros tempos, muitíssimo menos. A mediação de adultos e professores, agora sempre por perto, tende a suavizar as relações entre os pequenos. É muito feio bater no amigo, falam todos os dias, a toda hora. Antes, feio era apanhar do amigo. E, se os amigos batiam, imagina só o risco que se corria com os inimigos. O pau comia na escola, no bairro, na praia. E não adiantava muito meu ano e pouco de judô: contra o gorila, a técnica do sagui é irrelevante. Mais valia os planos de fuga – um paliativo, jamais a solução.

Se tamanho fosse documento, a girafa era a rainha das selvas, eu dizia. O problema estava em convencer a linda girafa que sentava ao meu lado na sala de aula de que meu reinado estava garantido desde o signo. Na sexta série, por exemplo, a menina mais baixa livrava de mim meia cabeça. A mais alta, meio corpo. E, mesmo o amor sendo reconhecidamente cego, todos os demais sentidos conspiravam contra meus anseios. Na pré-adolescência, fase em que transitamos da infância para o abismo, descobri a diferença entre o amor e a amizade: mais ou menos dez centímetros. Platão foi meu mentor amoroso.

Não: minha infância não foi um mar de tormentos e frustrações. Até porque tal quantidade de água não me daria pé. Como disse, quando me acusavam de baixinho, as respostas saltavam ligeiras. Jamais me deixei diminuir. Logo, o eventual destaque que tive ao capitanear a fila do pátio, usei para me tornar bastante conhecido. A dificuldade no combate corporal aguçou a diplomacia. À amizade das mulheres credito uma sensibilidade útil nos dias de hoje, quando o diálogo parece fundamental para as relações. Porém, se eu pudesse escolher, juro, queria passar a vida inteira em uma altura média. Tamanho, que inferno, sempre foi documento. Senão eu poderia dispensar a retórica – correndo o risco de jamais virar cronista.


7.1.09

Número 299

VÃO OS DEDOS, FICAM OS ANÉIS

Partilha. Aí está uma das coisas mais complicadas da vida. Melhor dizendo, da morte. Afinal, conta-se nos dedos quem não passou por algum descontentamento, grandes decepções ou um certo desconforto quando se viu implicado na situação de repartir bens. Não importa o tamanho da herança: seja ela composta de imóveis, contas numeradas, obras de arte etc; ou uma simples bandeja banhada em prata, o Fusca 1976 ou mesmo aquela faca de churrasco com o cabo de osso. Na verdade, o ato de partilhar sempre é passível de confronto, de resgate de mágoas, de espertezas.

Em uma cena clássica de encontro de partilha, é garantido identificar uns tipos bem característicos. Por exemplo, os ponderados. Cheios de dedos, trabalham em costuras quase impossíveis para contemplar os mais diversos interesses. Normalmente, já investiram muitas horas de negociações prévias, apelando para o bom senso e o sentimentalismo, em um esforço justificado pelo respeito à memória do recém falecido. Porém, a única certeza para eles é a de assistir seus próprios interesses como os primeiros a serem sacrificados.

Outros que não podem faltar são os exaltados. Com os dedos em riste, fazem das cordas vocais coração na hora de garantir meia dúzia de talheres. Acusam a todos de conspirarem contra seus interesses, resgatam frustrações desde os anos infantis, consideram-se prejudicados pelo destino. Para eles, qualquer guardanapo que terá como sina o fundo da gaveta, qualquer terreno de arrabalde para o qual ficará devendo o imposto territorial, tudo será resultado de uma guerra particular. São os exaltados aqueles que mais se beneficiam em uma reunião de partilha. E, paradoxalmente, os únicos que sairão dela se queixando.

Os soberbos, por outro lado, fazem questão de estarem ausentes. Dão as mais diversas desculpas para faltar ao encontro de partilha. Porém, claro, deixando nas costas dos ponderados uma pequena lista de bens que gostariam de receber – estes, escolhidos a dedo, para o desespero dos exaltados. Nunca faltará alguém para criticar a atitude dos soberbos, reclamando que eles pensam estar acima de questões tão fundamentais para a família. Irão duvidar de sua masculinidade, dirão serem mal amadas, lembrarão deslizes dos filhos, desejarão que sejam os primeiros a morrerem, pois na morte não se leva nada – bem feito! As orelhas dos soberbos arderão muito durante este período de tempo.

Os emocionais compõem o grupo sobre o qual nada mais importa. Para eles, nenhum bem material irá suprir a ausência deixada por quem partiu. Eles se consideram abençoados pelos anos de convivência, enriquecidos pelos ensinamentos, gratos pelo legado humano. Entram na reunião tão derrotados como um boi no abatedouro. Mas, em algum momento, terão seus cinco minutos de destaque ao versar, aos prantos, sobre as virtudes de quem agora está no céu. Condenarão o desrespeito à memória expresso em tanta mesquinharia. Lembrarão que Deus está assistindo atos tão vis. Azar o deles: voltam para casa com um joguinho de chá de porcelana cujo açucareiro perdeu uma das alças.

Bom, existe o caso de quem morreu deixar um testamento. Então, na presença de um advogado, o destino de cada bem terá o dedo do antigo proprietário. O dedo que, aliás, poderá pressionar diversas feridas. Em situações como essa, os exaltados gritarão ainda mais alto, aparteados pelo grupo dos ponderados. Os emocionais repetirão “mas nem precisava” dezessete vezes – quando não abrirem mão de algo para calar os exaltados. Os soberbos serão representados por alguém. E, ao final, quem terá as orelhas aquecidas será aquele que partiu. O mesmo que daria um dedo para assistir a cena. Dedo, aliás, apontado para a justiça, pois quem se preocupa em deixar testamento, viveu bastante para conhecer cada herdeiro como a palma de sua mão. Para desespero de uns e alívio de outros.

2.1.09

Número 298

TRÊS DESEJOS

Trata-se de um clássico: eu estou caminhando absorto pelas areias de uma praia qualquer, com os pensamentos boiando entre a segunda e a terceira rebentação, quando o dedão chuta um objeto cortante. Depois de um palavrão para aliviar a dor, de reclamar da falta de limpeza no litoral e de maldizer a sorte, verifico se está sangrando. Porcaria, está! Já com a vacina antitetânica no horizonte, eu resolvo averiguar o objeto mal sepulto na areia. É uma lâmpada. Nem incandescente nem fluorescente. É uma do tipo maravilhosa, parecida com um candelabro.

Descrente, eu junto o artefato e esfrego a camiseta em busca das três palavras mágicas do capitalismo: “made in China”. Porém, ao invés de descobrir a origem da lâmpada, uma fumaça branca e inodora revela o surgimento de um gênio. Um do tipo padrão, com roupas bufantes e transparentes, turbante e barba ao estilo Clóvis Bornay. E, como primeiro sinal de genialidade, ele fala comigo em português, sem o menor sotaque e na velocidade de um anunciante das Casas Bahia. Conta que foi ali aprisionado por um mago oriental há milhões de anos, que a maldição só seria quebrada no caso de a lâmpada ser friccionada por um tecido com 35% de polyester e que, em sinal de gratidão, me concederia três desejos.

Imediatamente, eu procuro os sinais de câmeras e microfones ocultos. Olho bem para o gênio para reconhecer o ator famoso por detrás daquele disfarce. Já imagino para qualquer momento a chegada daquela menina da produção com um contratinho padronizado para eu autorizar o uso de minha imagem na TV. Acredito piamente na oportunidade dos meus trinta segundos de fama ao pagar um mico em rede nacional durante algum programa de domingo. Por isso, e apenas por isso, topo continuar a conversa. E tento fazê-la render.

Pergunto, só a título de curiosidade, se os pedidos estariam sujeitos a algum patrocinador. Seu desejo será uma ordem, meu Amo, responde o gênio com uma mesura, como quem não entendesse a desconfiança. Ganho tempo: poderia ser algo só para mim, ou precisaria ser um pedido para a humanidade? Seu desejo será uma ordem, meu Amo, responde o gênio, repetindo o gestual com a ensaiada naturalidade de um guia turístico mirim. E o prazo de validade – quero saber – seriam pedidos perecíveis? O gênio devolve a questão com a mesma frase de sempre, curvando-se com suavidade. Percebo que não avançarei mais um segundo. É chegado o momento dos pedidos. E, claro, devem estar gravando.

Como em um rasgo de lucidez, uma revelação, um luminar, me dou conta de que não estou na praia coisíssima nenhuma. E meu dedão do pé está intacto. A moça da produção – morena, cabelos ondulados, vinte e poucos anos, jeans e camiseta branca, sandália rasteirinha, óculos – tampouco virá. Estou, isto sim, sentado diante de uma tela de computador, escrevendo a crônica da semana. Porém, de modo estranho, o gênio não some, aguardando meus três desejos. Desejos para 2009. E eu não sei o que lhe pedir.

Você, na mesma situação em que estou, teria condições de fazer três pedidos com sabedoria? Pergunto na hipótese de ser atendido de verdade, por este Clóvis Bornay das arábias que paira diante de mim, ou por qualquer outra força mágica. Se positivo, parabéns! Eu confesso que estou perdido, mesmo sabendo que, da feitura dos pedidos, depende o final do texto. Então, não tendo remédio, vamos lá:

Que em 2009 sejamos justos. Que em 2009 sejamos carinhosos. Que em 2009 sejamos agradecidos.

P.S.: e o gênio, safado, sem garantia nenhuma de vir a me atender, agora está indo embora de mãos dadas com a moreninha da produção...

25.12.08

297

REPETÊNCIA

Fazemos o mesmo. O mesmo. Sempre o mesmo.
Qualquer alteração, a qualquer tempo, virá diferir.*

Falei para ele: repetir o ano é o fim. A pior viagem. Inadmissível. Abala nossa auto-estima, destrói a gente por dentro. Estraga o Natal, arruína o Reveillon, mata o ânimo para nossas férias. E pouco me importa o que os outros possam estar pensando. Não é isso que conta. Para mim, a opinião de terceiros, nessa e em qualquer hora, é irrelevante. Minha preocupação é de foro íntimo: as conseqüências da repetência para a vida toda. Sim, pois cada vez que repetimos o ano, é como se o perdêssemos para sempre. Passado.

Falei para ele quando estava em tempo. Sei lá, ainda no começo de outubro, tivemos a oportunidade de tocar no assunto pela última vez. De lá para cá se passaram quase dois meses. Tempo hábil para alguma providência. Sobrando. Tem gente capaz de virar a vida do avesso em sessenta dias! E aí pergunto: o que ele fez? Nada. Certo, nada é exagero. Digamos que nada com relevância para, quem sabe, salvar o ano. Nenhuma atitude afirmativa. E acho que qualquer ação, por menor que fosse, poderia ter dado resultado. Mas não: se ele fosse um carro, teria ficado na banguela. Ou com o motor desligado. A direção, parada. Freio de mão puxado. Agindo assim, só andaria em caso de tornado. Ou enchente, Deus me livre!

Falei, mas ele nem ligou. O pior eu nem te conto: isto sequer está acontecendo pela primeira vez. Sim, daí o meu desespero. Ele já perdeu o ano antes e nem assim toma providências. Repetir virou rotina. Todo mundo avançando e ele lá, marcando passo. De bobeira. Engessado. Satisfeito em fazer tudo outra vez, outra vez, mais uma vez, igualzinho. Todos se ocupando com novidades, conhecendo mais, aprendendo, criando. Olhando para trás com aquela boa sensação de dever cumprido. Cansados, é certo. Uns meio esgotados. Poucos à beira de um ataque de nervos. Mas nem esses últimos em estado tão deplorável quanto ele. É de dar pena.

Antes, em outra ocasião, havia falado sobre piedade. Afinal, posso não ligar para o que os outros pensam. Ele pode não ligar para o que os outros pensam. Mas é impossível controlar o sentimento alheio. Quando despertamos pena, é quase como se estivéssemos deitados no chão. Nocauteados. O árbitro avançando indelével na contagem e nos faltando pernas para levantar. Um lutador pode passar por essa situação: é do jogo. Mas um ser humano não pode assumir essa condição para a vida. Atinge a si e a todos que o amam. Aliás, fica difícil amar quem não se ama. Mais fácil se afastar, negar o problema na esperança de que seja resolvido em um passe de mágica. Repetir o ano, penso agora, é preparar a poção e não ter o feitiço. Puf!

Falei para ele: para o ano que vem, chega de repetência. Ele me olhou com ares de reprovação. É muito dolorido mostrar justo para ele o que é certo ou errado. Esperar dele uma reação. Lembrá-lo que já foi diferente, produtivo, vivaz, sensato. Exemplo de vida! E agora, de um tempo para cá, irreconhecível. Não cogito uma vida de aventuras. Mas, nenhum livro? Nenhum passeio diferente? Nenhum novo amigo? Nenhum novo assunto? Isso que está acontecendo é uma eterna repetição de horas sem serventia, sem encantamento. Sem vida! Quem sabe um hobby? Um animalzinho para se sentir responsável? Faz tempo que dou a idéia de um curso diferente, para o qual tivesse talento. Em vão.

Não sei mais o que faço com meu pai.

*Do poema intitulado Em diferenças, que não considero pronto.

18.12.08

Número 296

PRESÉPIO NÃO TEM SOGRA

Dia desses, com a família, eu participava de um almoço de confraternização natalina entre amigos, quando a conversa fluiu para a tradição à mesa. Não para menos: apreciávamos um magnífico bacalhau na casa de um angolano de nascimento, casado com uma brasileira com raízes igualmente portuguesas. A arte culinária serviu de pretexto para muitas histórias, algumas emocionantes. Ato contínuo, os convivas abriram um tipo de concurso para noticiar especialidades de panela, cada qual fazendo a propaganda de seus dotes. Como não estávamos entre cozinheiros profissionais, muitos dos pratos procediam da singela herança familiar, mantendo a tradição no cardápio. E, quase todos, com receitas passadas de mãe para filha.

Todavia, por mais envolvente que estivesse nossa conversa, faltava para ela algum tempero capaz de transformar o almoço em crônica. Uma angústia chegando a ser indigesta, pois eu sentia no ambiente o aroma de um bom texto. Eu quase o via entre uma baixela com salada e outra de arroz. Escutava-o no tilintar das taças de cristal. Intuía guardado para a sobremesa. Crônica de Natal, conforme meu apetite dezembrino. Ingrediente que chegou, ufa!, com uma constatação lapidar de uma doce senhora que estava entre nós. Dona Terezinha. Pois ela e o marido Édio tiveram apenas filhos homens. Disse, então, e até com uma certa revolta, que desistira de passar suas receitas adiante. Resumiu: não ensino mais nenhum prato para minhas noras – elas modificam-nos.

Soaram os sinos pequeninos, sinos de Belém. Por natais e natais, durante muitas e longínquas eras, foram – são – as filhas mulheres as encarregadas da continuidade do legado materno. A elas cabe o privilégio, o dever e o direito de levar adiante as receitas de sua família. As noras, contaminadas que são por suas próprias influências, destinadas a manter o tempero de suas mães, jamais perderiam a oportunidade de marcar a diferença. Ainda mais que, em se tratando de algo tão íntimo como o alimento, igualar o pudim que fez o encantamento oral do marido em seus anos de infância é impossível. Covardia, até. Por isso, sogras elegantes, justas, jamais deveriam abrir concorrência com suas noras. E noras inteligentes devem estar atentas para essa armadilha.

Imagino, também, que o dilema de dona Terezinha ganhou novos ingredientes com a mudança dos tempos: as moças de hoje brilham – e muito – nas mais diversas áreas do conhecimento. Mas em bom número tendem a ser meio opacas na cozinha, levando à mesa refeições cada vez mais práticas e menos artesanais. Logo, não demonstram o menor interesse em, por exemplo, apurar o molho durante muitas horas, atribuição tranqüila para quem era dona de casa. Por outro lado, em muitos lares, são os rapazes os novos comandantes do fogão. Quem sabe a queixosa senhora esteja perdendo a oportunidade de manter seu legado por não enxergar o óbvio: deve ensinar os pratos de família aos filhos homens! Aqueles mesmos que já transportam adiante a habilidade do pai defronte a uma churrasqueira.

Tudo isso me fez recordar do presépio, uma das mais tradicionais imagens de Natal. Lá estão pai, mãe e criança. Ao redor, pastores e seus animais. Para breve, a chegada dos Reis Magos. Um anjo paira acima da gruta. Zero parentes. E as avós? Não seria o caso de alguma vovó dar uma mãozinha naquele momento tão delicado? Parece, mas não consta nas Escrituras, que ninguém da família de Maria podia acompanhar a moça grávida, quase parindo, na urgente fuga da insanidade de Herodes, o Grande. José, solícito, tratou de convidar sua mãe. Mas ela própria, a sogra da Virgem, torcera o nariz. Desde o advento do Pessach, em que as duas divergiram feio na receita do Charosset, a velha duvidava que Maria fosse assim, sei lá, tão santa.

O mar está para peixe


O mar está para peixe:

Convido vocês para conhecerem minha nova parceria com Eduardo “Dudu” Penz, postada no site da cantora Anne-Florence Schneider, www.myspace/donaflormusic. Em frente ao mar soma-se aos temas Amor platônico e Sambou, tá novo, também disponíveis para audição. O sotaque de Florence é um charme a mais...

11.12.08

Número 295

CONSERVADOR RADICAL

Das tantas possibilidades de classificação dos homens em diferentes grupos – gordos ou magros, fiéis ou disponíveis, otimistas ou informados – uma delas é fazê-lo entre radicais ou conservadores. Difícil, mas necessário, é saber se você é um radical nato, talhado para suportar as exigências que as atitudes extremas impõem, ou um conservador sem noção do perigo. Da mesma forma, é muito útil investigar o dom para a ponderação, pois um radical na condição de “murista” pode quebrar a cara por não ter, no DNA, o equilíbrio necessário para se manter neste patamar. Para isso existe a juventude. Veja o meu caso como exemplar.

Durante toda a minha vida fui convidado a flertar com o perigo. Já me propuseram parceria em aulas de pára-quedismo, mergulho submarino, alpinismo, rafting, kitesurf. Já estive perto de topar envolvimentos com mulheres malucas, sociedade com golpistas, transas sem preservativo, carona de estranhos. Também não foi por falta de oportunidade que levei uma vida distante das drogas ilícitas, dos rachas de automóvel, dos pastéis de rodoviária, dos sogros violentos, da filiação partidária. Aprendi a recusar educadamente: não é para mim. Tudo porque fui vacinado na juventude com passagens radicais mal sucedidas, das quais sobrevivi com poucas seqüelas – mas muitos ensinamentos. Como a memorável passagem pelo tobogã.

Foi em Florianópolis. Devia ter meus vinte anos. Até aquele momento, olhava com desconfiança para o tal brinquedo de parque. Se por um lado ele me prometia segundos de velocidade e emoção, por outro dava margem a muitas possibilidades. Já naquela altura, reconhecia no meu destino a ação constante do improvável, o ímã do infortúnio, o pendor pelo ineditismo. Porém, estava de namorada nova, que pedia a minha companhia para tal passagem. Éramos, os dois, toboganicamente virgens. Eu – óbvio! – não confessei a lacuna no currículo para a menina. Vesti a armadura dos homens vividos e sustentei a pose de encorajador.

Estávamos em dois casais. Pagamos o ingresso e partimos em busca de grandes aventuras. Nossos amigos, experientes, foram primeiro. Lá de baixo, sorriram para nós. E chamaram: venham! É delicioso! Minha namorada quis desistir. Seria vexatório naquele momento. Eu, acreditando na armadura metafórica, propus tutela: desceremos juntos, lado a lado, minha donzela. Dê-me a mão, Branca de Neve. Seremos felizes para sempre na contagem de três. Um, dois...

No três, ela fincou o pé. E desistiu sem soltar a minha mão. Só que eu partira. Resultado: quando livre, deixei o ápice da montanha deitado, sem equilíbrio, até meio de viés. Na primeira ondulada abandonei o contato com o solo e, a partir dali, devo ter pousado umas três ou quatro vezes, a cada uma de forma mais desengonçada. O que sobrou de mim, chocou-se com violência nos sacos de areia do final da pista sob o som de aplausos. Os pés estavam para cima. Se fosse um desenho animado, o tapetinho chegaria logo depois, encostando em minha cabeça com segundos de atraso. Como era a vida real, quem chegou na seqüência foi a namorada, que escutara do funcionário a orientação de jamais – jamais! – deitar-se no tobogã, para não abusar da velocidade.

Como disse, podemos dividir as pessoas em radicais ou conservadores. No meu caso, evitar o radicalismo é questão de conservar a integridade física e mental. Sou parceiro para uma partida de vôlei, xadrez, par-ou-ímpar. Topo relacionamentos estáveis e duradouros, misto-quente na rodoviária, voto secreto. Viver no Brasil já garante uma dose quase inadmissível de incertezas. Sou um conservador radical porque, fora de eixo, saio invariavelmente esfolado. Assombra-me o fantasma do tobogã.

4.12.08

Número 294

ULTIMATO

Enquanto penso, contrações involuntárias – mas não menos precisas – se ocupam em manter a musculatura postural com o tônus adequado para a posição de equilíbrio em que me encontro, de pé, ereto. Trabalham em um sistema de economia de energia: não tenho câimbras nem desabo ao chão. Há uma certa pose.

Enquanto penso, minhas pálpebras disparam piscares ocasionais na medida em que os olhos pedem um pouco de lubrificação. As pupilas se contraem e dilatam para ajustarem-se à luz do ambiente. Adrenalina. Nenhum movimento escapa de minha vista: nem mesmo aquele captado pela visão periférica. Permaneço atento.

Enquanto penso, o diafragma e os demais músculos auxiliares da respiração nem cogitam suspender seu ofício. Os pulmões, inundados de ar a cada onda respiratória, tratam de cumprir sua função de reter o oxigênio para, via corrente sangüínea, contemplar cada uma das células do corpo. Tudo no devido tempo. Ainda vivo.

Enquanto penso, movimentos peristálticos transportam lentamente aquilo que fora antes chamado de almoço por todos os muitos metros de intestino. Estão sendo absorvidos os nutrientes para, em algumas horas, ser descartado o restante. Antes disso, os esfíncteres estarão sob controle de um piloto automático – este que é responsável, entre outras atribuições, por não me fazer passar vergonha. Me controlo.

Enquanto penso, minhas unhas crescem, minha barba cresce, muitas células nascem e morrem. Alguns fios de cabelo caem. Pior: fora de qualquer previsão, uns caem para sempre. Outros, nossa!, antes escuros, estão nascendo brancos. Minha estatura diminui frações de milímetro a cada dia, vítima da implacável força gravitacional. Envelhecerei?

Enquanto penso, o coração compõe um número finito, mas indeterminado, de contrações. É uma ampulheta girada ainda no útero materno, escorrendo a areia da vida de grão em grão, sem volta, sem piedade. Se houvesse silêncio, escutaria suas batidas, teria consciência de seu ritmo, saberia de sua urgência. E nem assim faria muita diferença. Pulso. Repulso.

Enquanto penso, tudo em mim tem uma razão de ser, de estar e de acontecer, independente de meu raciocínio, ou mesmo apesar dele. A saliva continua brotando em minha boca (engulo), a cera em meus ouvidos, o suor na pele, diversos mucos. Mas essa não é a boa ou a má notícia. Quem quer saber?

Enquanto penso, tu me olhas com ar inquisitório, almejando algo mais do que uma existência instintiva, medular, peristáltica – justo essas que agora se mostram. E a lágrima que nasce não será capaz de saciar a sede das tuas expectativas. É isso que agora penso. Penso, também, que o ácido a me arder o estômago é uma resposta insuficiente, pois apenas eu o noto. E que ruborizar será pouco.

Enquanto estou em teu mirar (enquanto penso), meu silêncio aquece a arma que tens na mão. Comicha o dedo que está no gatilho. Agrava nosso impasse. Enquanto tudo no meu corpo funciona à revelia do pensamento, dispensando-o, paradoxalmente, o corpo depende mais do que nunca do que passa em meus pensamentos.

Enquanto penso, tu não pensas.

Luto.

27.11.08

293

TER OU NÃO TER

Parece ser consenso o fato de a classe média estar voltando a ser mais representativa no Brasil. Ainda bem, dirão os economistas, pois ela é o motor do crescimento econômico. Para eles, países desenvolvidos são marcados por ampla predominância desta fatia no prisma social. Ainda bem, dirão os governantes, já que a classe média é a vítima primordial dos impostos e, aqui, “fatia” ganha a conotação mais alimentícia para o apetite público. Segundo pude apurar em declarações recentes, estudiosos de economia e políticos divergem apenas na hora de classificar alguém como pertencente à faixa intermediária de consumo e renda. Na falta do número definitivo de salários mínimos para enquadrar determinada família na classe média, proponho uma classificação semântica: ricos e pobres são classes “e”. Os médios pertencem à classe “ou”. Explico.

Os ricos costumam morar em casas (apartamentos, coberturas, chácaras) amplas e localizadas em endereços considerados nobres. E são eles, também, os proprietários dos carros luxuosos e importados, quase nunca solitários nas espaçosas garagens – a regra costuma ser um para cada componente da família. E são ricos os melhores clientes de agências de turismo, hotéis e companhias aéreas. E as joalherias e as butiques e as escolas particulares e as casas de espetáculo e os restaurantes da moda e uma infinidade de comerciantes e prestadores de serviços são sustentados pelo estilo de vida dos ricos. Enfim, os ricos têm isso “e” aquilo. Fazem isso “e” aquilo. Freqüentam esse “e” aquele lugar.

Os pobres, ao contrário, habitam as mais modestas residências das cidades – algumas, inclusive, que nem mereceriam esta classificação: casebres localizados na periferia, em áreas invadidas, favelas e vilas populares. Pobres andam apenas de ônibus e trens e de bicicleta. Conhecem cidades charmosas pela TV – tela que os apresenta para hotéis, parques, aviões; praias de água cristalina e montanhas nevadas. Têm os filhos nas escolas públicas e têm direito às cestas básicas e recebem doações de roupas e freqüentam lazer gratuito e trabalham nos postos menos qualificados das empresas e são os clientes do mercado informal – o qual, muitas vezes, o compõem. Logo, aos pobres falta galgar quase todas as conquistas da civilização “e” tudo mais. Uma soma repetida de carências.

E a classe média? Bom, diferente dos que não precisam escolher e dos que não têm escolha, ela é a classe do “ou”. Ou moram em uma boa e bem localizada casa, ou guardam um carro de luxo na garagem. Ou conservam os filhos em escolas particulares, ou passam uma temporada por ano conhecendo o mundo. Ou se vestem com roupas de grife, ou estacionam no shopping um carro acima de mil cilindradas. Ou vão ao show do cantor famoso, ou mais de duas vezes por mês em restaurantes. Ou pintam a casa, ou trocam de carro. Ou são sócios do clube, ou pagam a prestação da casa na praia. Ou presenteiam a filha com uma festa de quinze anos, ou lhe proporcionam uma viagem. Ou se esfolam para pagar a faculdade dos filhos, ou já se esfolaram para que o jovem apenas estudasse – bastante – para passar em universidade pública. Ou, ou, ou, em infinitas combinações.

Assim fica fácil de saber se você, leitor, é de classe média: meça o quanto de sacrifício contém cada uma de suas conquistas. Toda vez que estiver abrindo mão de muitos hábitos ou algum patrimônio para galgar um objetivo mais elevado na escala de valores, estará honrando o pertencimento à Associação Permanente Trapezistas do Orçamento (APERTO), cuja bandeira se parece com um cobertor curto. A boa notícia é a enorme satisfação contida em cada esforço premiado. A má notícia é que, quando alguém de classe média alça uma vitória sublime (casa boa, carrão, temporada em Paris), acaba sendo rotulado de rico pelos pobres, e de inconseqüente pelos abonados. De uma forma ou de outra, parecerá viver uma ilusão. Para concluir, me sirvo da grande definição de classe “ou”, que até onde sei não foi cunhada por economistas ou políticos, e sim pela minha esposa: “classe média é aquela que sabe o que está perdendo”. Ou você tem uma melhor?

20.11.08

Número 292

AS TRINCHEIRAS DA ETERNIDADE

Múltiplas obras de ficção, tanto de literatura como adaptadas ao cinema, projetam um futuro aparentemente sombrio: homens despidos de suas conquistas tecnológicas e sujeitos, outra vez, às forças hostis da natureza. Quem imagina que tais presságios são fruto de autores ressentidos com os rumos da sociedade, protestando em delirantes brados de alerta, engana-se feio. Escritores são, especialmente, bons observadores. Percebem, assim, a transitoriedade do homem – que se julga tão poderoso – e a força da natureza, eterna em sua capacidade de recuperação.

Para a confirmação desta tese, proponho um exercício prático: escolha um pedaço de chão de qualquer tamanho e faça o mais caprichado jardim, tão lindo quanto possível. Cuide de cada detalhe: ph do solo, nutrientes, sombra, flores, pedras decorativas, folhagens e tudo o que mais lhe agradar. Zele por tal ambiente durante um ano – tempo que, creio, levará para a vida se fazer plena na beleza planejada. Então, finja morrer, isto é, não controle – altere – mais nada. Depois, acompanhe a evolução do seu jardim por igual período, com a acuidade de um cientista. A natureza, em sua vocação de vida, proverá ao espaço delimitado uma imensa diversidade, substituindo o tênue critério da estética humana por outro muito mais seguro: o do equilíbrio ambiental.

Em última instância, é essa visão que assombra os ficcionistas: a natureza aguarda apenas uma distração do homem – um mero acidente de percurso, uma fatalidade qualquer – para seguir seu rumo. Depois, terá muito tempo para restabelecer a ordem, mesmo sendo ela nova, posterior às alterações advindas de nossa passagem na terra. Porém, em nada parecida com os jardins artificiais por nós denominados de cidades – lugares com menos vida, no sentido de diversificação de espécies, do que qualquer inocente matinho de arrabalde. Um exemplo? No Parque Estadual de Itapuã, às margens do Guaíba, ambientalistas preservam as ruínas das casas de invasores para que nós, visitantes, possamos testemunhar a impressionante retomada da natureza, ocorrida em pouco mais de uma década. Calcule, agora, o que restará das habitações em milênios.

Quando os ecologistas defendem uma mudança de rumo na dita civilização, redirecionada ao equilíbrio ambiental, estão mirando muito mais na salvação da humanidade do que no socorro ao planeta em si. Em milhões de anos, a terra viu nascer e sucumbir todo tipo de animal e planta, cujos resquícios nos são oferecidos aos estudos paleontológicos. Se alterarmos demais o ambiente que permitiu nossa presença por aqui, fazemos crescer nosso próprio risco de extinção. Basta olhar o exemplo de tantas outras espécies – vítimas do desmatamento e da poluição –, outrora imponentes, transformadas em criaturas tão frágeis como as flores do nosso jardim. Há um limite nesta sanha de progresso: tornarmo-nos, com ironia melancólica, incompatíveis com o meio que modificamos.

Ao contrário do que se possa pensar, a sociedade não está imune a um colapso energético, tecnológico ou de saúde pública. E não são apenas os escritores a pressentir e temer por isso: há um alerta geral neste sentido, partindo de diversas áreas do conhecimento. Se a nossa vida tornar-se excessivamente dependente das alterações que propiciam um conforto de caráter imediato e consumista, ela estará em sérios apuros. Respeitar a natureza na qualidade de seres transitórios é nossa única chance de acompanhá-la em sua plenitude. Estar em harmonia com a diversidade biológica é a oportunidade de também fazer parte dela. Despoluir o meio ambiente e salvar espécies em vias de extinção é antecipar ações que, no futuro, podem garantir nossa própria continuidade. A vida sempre vencerá a batalha, já está decidido. Logo, é preciso lutar a seu favor, agora mais do que nunca, nas trincheiras da eternidade.

13.11.08

Número 291

EMENDAS E SONETO

Querida,

Se você está lendo esta carta, é porque abriu a gaveta que era só minha. E, prosseguindo na busca de documentos, é certo que chegará ao envelope pardo que está bem no fundo. Por isso, me adianto em explicar seu conteúdo... Caso não tenha desconfiado, sempre sonhei em ser poeta. Quando lhe conheci, compus um soneto dedicado ao mágico sonho que era o amor nascente. Porém, por perfeccionismo – insegurança? –, voltei ao poema a cada março, nosso mês. Minha idéia era revisá-lo para que fosse ao máximo fiel, sem medo de fazer supressões ou acréscimos.

A primeira grande alteração aconteceu depois do casamento. Para melhor, imaginava: muitos versos românticos cederam espaço para um conteúdo mais envolvente. Erótico, ouso dizer. Troquei minha imaginação por nossas descobertas. Seu corpo ganhou mais destaque a cada verso. Cantei suas formas e sabores; seus olhos e suspiros; seu sorriso ao amanhecer. Garanto que não poupei mesuras. Estava quase convencido a lhe mostrar o soneto quando chegou a notícia da gravidez. Senti que era preciso, contigo, esperar.

A chegada do Alfredinho deu novas cores à minha vida. Como havia intuído, meu soneto já pedia outros versos, com o encanto da maternidade, robusta e lânguida. Descobri em você uma nova mulher. Plena, eterna. Perdi noites em busca do melhor tom – um tanto de cantiga de ninar, outro de amor roubado nas madrugadas. Também tínhamos a casa nova, ambiente idílico para versos cabais. Paredes brancas, imaculadas; janelas nuas e poucos móveis. Tudo a me ocupar. Novas rimas, inclusive.

O soneto parecia novamente pronto antes mesmo da mobília estar completa. Mas a vinda de um novo filho impôs paciência. Filho nada: a nossa Ana Maria. O anjo mais lindo que Deus criou, agora estava posto em meus braços. Pergunto: como poderia deixá-la de fora dos versos, se Aninha era poesia em forma de gente? Além do mais, se um dia nossa flor quisesse ler minha obra, morreria de vergonha das confissões sensuais que cometia. Labutei na busca de casar aquele amor carnal à condição de família, legado de um novo tempo. Com o correr dos versos, o erotismo findou sutil, ainda que presente. O soneto, enfim, estava no ponto para ser revelado. O que não aconteceu...

André, rebento temporão, soterrou meu intento. Horror confessar algo tão imerecido, porém verdadeiro: já não conseguia cantar o terceiro filho com o mesmo lirismo de outrora. Junto a isso, sentia culpa em citar com tanta devoção o primogênito e sua irmã, relegando o caçula a uma emenda mal feita. Ou entravam os três com a mesma ênfase, ou saíam todos. Quando vi, o soneto, de pronto, ficou reduzido ao começo e umas rimas soltas pelo meio. Ainda mais que suprimi o cantar da casa, desiludido com aquela teimosa infiltração a nos escurecer as paredes. E você, minha amada, sempre exausta, em nada acudia o poeta.

Foram incontáveis os marços em que movi poucas linhas. Pobre soneto, restou abaixo das mensalidades escolares, das prestações da casa da praia, dos planos de viagens (adiados). Quando, enfim, os filhos saíram de casa, pensei que seria fácil concluir o trabalho: fazer o soneto definitivo. Passei vários anos, a cada fim de verão, lembrando contigo nossos tempos áureos. Aposentado, tinha paz, mas a inspiração me abandonara. Suprimir versos me parecia indiferente. Acrescentar, impossível.

Logo mais você encontrará, minha querida, sacramentadas no envelope pardo quase cinqüenta versões da mesma poesia. E nenhuma será melhor para a despedida do que o soneto original, de todos o mais fiel – meu retorno à magia dos sonhos.

6.11.08

Número 290 + 2 convites

Olá! Quer se encontrar comigo na 54º Feira do Livro de Porto Alegre?

Dia 7/11, sexta-feira, 20h, estarei autografando Pedra, Papel e Tesoura ‒ Contos de Oficina 38, junto com os demais autores, no térreo do Memorial. O livro, organizado pelo Prof. Assis Brasil, surpreende pela qualidade e diversidade de vozes literárias. Recomendo!

Sábado, 8/11, 17h30min, palestra Centenário de Cartola ‒ as rosas não falam, sala Arquipélago do CCCEV, com a Profa. Dra. Maria Regina Bettiol, o poeta Prof. Dr. Marlon de Almeida e o músico Rubem Penz (eu); canja sonora com David Sosa (voz) e Cristiano Fischer (violão), comigo na percussão. Horário bom, de graça e muito bacana!

Ficam os convites e meu abraço.


O OVO OU A GALINHA?

Quem nasceu primeiro: o homem na cozinha, ou a cozinha na área social da casa? Essa dúvida saiu da casca passeando com minha esposa pelas ruas do nosso condomínio. Afinal, em várias residências ‒ quase todas bastante novas ‒ a cozinha é vista na fachada, adiante até mesmo da sala de estar. E, não raro, são os homens que estão lá dentro, pilotando um belo fogão ao invés da churrasqueira. Aqueles mesmos que em tempos recentes se orgulhavam de não saber fritar um ovo ‒ atributo (defeito?) ligado ao machismo ‒, agora ostentam um avental bem-humorado.

Fácil de pensar que primeiro nasceu o homem na cozinha. Porque a mulher, depois de ser cozida em séculos de submissão, queimou o sutiã e quebrou os pratos. Assim, por livre e espancada vontade, o homem consentiu em dividir com ela as lides domésticas, cada vez menos realizadas por serviçais. Em um movimento coincidente ‒ e talvez não por coincidência ‒ uma série de inovações foram desenvolvidas para deixar a preparação do alimento mais fácil, prática e agradável. Eletrodomésticos com comandos eletrônicos; frigideiras, panelas e fôrmas antiaderentes; fornos e liquidificadores autolimpantes; cutelaria de luxo e molhos pré-cozidos, tudo criado por obra da engenharia de... homens! A galinha, também, passou a chegar limpa, separada em pedaços e sem pele. Uma barbada.

Porém, mesmo depois disso tudo, faltava o ornamento do prato: importar o status dos grandes chefs de cuisine e transformar o limão em limonada. Neste momento, preparar o almoço se transformou em artifício de sedução. O velho truque de conquistar pelo estômago mudou de lado e, cada vez mais, as mulheres passaram a apreciar os bons de colher de pau. Mas é complicado ser pavão em um ambiente arcaico e relegado aos fundos da casa. Foi quando caíram as paredes da cozinha ‒ que ganhou visual para a sala de jantar ‒ e seus móveis abiscoitaram uma beleza ímpar. Por fim, a peça conquistou um lugar de destaque nas plantas baixas, transformando-se na cereja do bolo. A novidade à mesa? Mulheres que, em matéria de panelas, não entendem um ovo. Com orgulho!

Ou nada disso: o macho da casa resistiu tudo o que pôde antes de esquentar a barriga no forno. Com isso, foi a cozinha em novo status quem primeiro nasceu. Todas as invenções que facilitaram a vida da dona-de-casa, mesmo quando criadas por engenheiros homens, vieram para ser usufruídas, sim, pela mulher. Ela, independente e brilhante, jamais poderia ficar excluída enquanto preparava o jantar, inspirando os arquitetos a integrarem os ambientes. E, só depois da rotina deixar de ser massacrante e a cozinha ganhar status na casa (e a empregada pedir as contas), apenas aí o homem foi convencido a aderir. Agora, mais do que nunca, está frito: o tempo do galo bebendo uisquinho no sofá terminou.

Eu não acredito que os homens sejam altruístas a ponto de revolucionarem a cozinha para suas mulheres e, depois, em generosidade suprema, ajudar em casa. Com a máxima de que a dor ensina a gemer, bastou a esposa começar a trabalhar fora para o mercado perceber a oportunidade de negócios ‒ homem no fogão, só sendo mais fácil e mais bonito. Com isso, o processador de alimentos nasceu depois de um marido chorar com a cebola. O teflon depois de ele gastar as mãos lavando uma leiteira. O forno de microondas para ele poder acordar dez minutos mais tarde. Entre o ovo e a galinha, acho que o primeiro a nascer foi o pinto: um rapazola solteiro, morando sozinho, precisando se virar e ainda conquistar a namorada. Isso: a idéia de integrar a cozinha à sala foi do pinto!

3.11.08

Indicação para pêmio


Com alegria trago uma boa notícia aos leitores do Rufar dos Tambores: o blog foi indicado finalista do 1º Prêmio Gaúcho de Arte Eletrônica. Desde já, divido esta honra com você, leitor!